30 novembro, 2006

«Do Outro Lado» - O Triângulo do Mar


Que há laços históricos a unir géneros musicais portugueses, brasileiros e africanos já se sabe desde há muito tempo. Mas só agora parece estar a haver uma consciencialização global, efectiva e com frutos criativos, desse facto. Três exemplos são o recente e espantoso documentário «Lusofonia, A (R)evolução», o espectáculo «Cantos na Maré» (que junta cantores e músicos galegos, portugueses, angolanos, cabo-verdianos, brasileiros e que vai ser mais uma vez apresentado na Galiza, em Pontevedra, dia 16 de Dezembro...) e o projecto «Do Outro Lado», de Carlos Martins. Dos dois primeiros falarei aqui proximamente. Do terceiro, dá-se conta de mais uma apresentação, hoje, dia 30, no Teatro Municipal de S.Luiz, em Lisboa.

«Do Outro Lado» é um disco dirigido por Carlos Martins - respeitadíssimo saxofonista de jazz que também esteve à frente da «orquestra» Sons da Lusofonia - em que se juntam jazz, fado, mornas cabo-verdianas e modinhas brasileiras (e não é preciso referir o «mistério lundum» para se perceber o conceito por trás da ideia). No espectáculo de hoje à noite participam - e este é um elenco de luxo! -, para além de Carlos Martins (saxofone e direcção musical), os fadistas Carlos do Carmo e Camané, a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade (na foto), Bernardo Sassetti (piano), Nélson Cascais (contrabaixo), Alexandre Frazão (bateria) e a Orquestra Sinfonietta de Lisboa. O concerto - o segundo do projecto, depois da estreia em Grândola - está incluído na programação da Lisboa Mistura.

28 novembro, 2006

«Acorda!» - 60 Bandas Portuguesas em MP3


Quase a caminho de Aveiro para o Sons em Trânsito (ver programação mais em baixo, neste blog, sff) aqui deixo o alerta para aquele que deve ser o disco português mais barato de sempre. Por uns míseros sete ou oito euros estão na colectânea «Acorda!» sessenta - sessenta! - grupos e artistas portugueses, cada um representado por duas canções. De todos os géneros, latitudes musicais e feitios. A selecção dos grupos esteve a cargo de Henrique Amaro (da Antena 3), o melhor divulgador de música portuguesa desde há muitos anos. E o resultado da venda reverte para a Pediatria do Instituto Português de Oncologia em Lisboa.

VÁRIOS
«ACORDA!»
Cobra Discos/Antena 3

Espelho panorâmico, alargado, riquíssimo, de muita da nova música que se faz em Portugal, a colectânea «Acorda!» integra projectos que vão da folk ao noise, do experimental ao punk, da pop ao reggae, do afro-beat ao jazz, do pós-rock ao hip-hop, do electro ao metal... Um apanhado sem fronteiras nem preconceitos, em MP3, de modo a caber muita informação, e tão boa que ela é... A pop infectada por Sérgio Godinho dos maravilhosos Ovo, o kuduro estilizado e novíssimo dos Buraka Som Sistema, a folk descarnada e bela de Old Jerusalem, o afro-funk-reggae-rap dos Nigga Poison e ecos de música agolana na modernidade excitante de Coca o F.S.M., o afro-beat dos Cacique'97, a explosão klezmer-Balcãs-Ena Pá 2000 da Kumpa'nia Al-gazarra (na foto), o reggae dos Sativa, One Sun Tribe e de Freddy Locks, o rock-globe-trotter dos Houdini Blues, a charanga de coreto/surf em ácidos dos Fat Freddy, o jazz infectado por muitas outras músicas da Tora Tora Big Band, a alt-country/free-folk indíssima dos Partisan Seed, a memória de muita MPB e MPP n'O Projecto É Grave, o inesperado (e tão bom!) electro-rocksteady-hip-hop dos Cartell 70, os ecos de fado, Durutti Column e António Variações nos surpreendentes Novembro, os blues de mais uma boa surpresa, The Soaked Lamb, o divertimento e a liberdade nos instrumentos de brincar dos Munchen, o rock livre (com Herbie Hancock, John Zorn e... klezmer lá dentro) dos Gnu... E ainda: 2008, 1 Uik Project, Alex Fx, At Freddy's House, Camarão & Dk, Electric Willow, Erro!, Frequency, GaiaBeat, Genius Loki, Green Machine, Hiena, Intermission, L-Hyo, Linda Martini, Mazgani, Micro Audio Waves, Monstro Mau, Nicorette, Nuno Prata, Oddawn, Orangotang, Rock Group Tiger, Rocky Marsiano, Sagas, SAMP, Sir Scratch, Sizo, Soma, SP&Wilson, Spartak!, StereoBoy, Tatsumaki, The Boy With the Broken Leg, The Ultimate Architects, The Weatherman, Veados com Fome, Vicious 5 e Woman in Panic - e espero não ter saltado nenhum... (9/10)

(o álbum pode ser pedido à cobrança na Cobra Discos, aqui)

Blasted Mechanism - A Saga Continua...


De dois em dois anos, no início do ano. É este o relógio biológico, místico, criativo dos Blasted Mechanism. Sim, vem aí um novo álbum, previsto para os primeiros meses de 2007, do colectivo de Karkov, Ary, Valdjiu, Sync, Zymon e Winga. Enquanto o disco não chega, aqui ficam duas entrevistas com a banda a propósito dos seus dois últimos álbuns, «Namaste» e «Avatara», originalmente publicadas no BLITZ em Fevereiro de 2003 e Março de 2005, respectivamente.


BLASTED MECHANISM
O DIVINO QUE VIVE EM NÓS

Quem são os 22 bebés-diamantes que irão conduzir a Terra a um futuro melhor e mais brilhante? Quem são os músicos africanos que iluminam alguns temas do novo álbum, «Namaste», dos Blasted Mechanism? E o que é que os Blasted têm a ver com a cultura rave? Porque é que parece haver algo de muito importante a acontecer num armazém de uma aldeia chamada Abóboda? E o que é que Bilal e Giger têm a ver com isto tudo?... As respostas seguem já a seguir, nesta entrevista em que respondem Karkov, Valdjiu e Ary e que tem como mote «Namaste» e tudo à sua volta (do Divino ao mais humano).

O que é que significa «Namaste» (NR: leia-se «Namastê»)? Tem alguma coisa a ver com a palavra em sânscrito que significa «o Divino que vive em ti»?

É isso mesmo. E é uma saudação. Para nós, é uma saudação à Humanidade, como se nós nos curvássemos perante a Divindade dos seres humanos. Em 1986 os Blasted criaram um conceito, uma história ficcional, que tem tido desenvolvimentos. Houve uma raça de seres de outro planeta que aportou à Terra. Houve o desenvolver de seres vindos de um ambiente aquático e que povoaram a Terra. Agora, há seres que estão espalhados pelo planeta e que ninguém sabe quem são - os bebés-diamantes - que poderão levar o planeta a uma nova dimensão. Os bebés-diamantes, que têm sido estudados pela cultura nepalesa, são mentes altamente predispostas para fazer a mudança da Humanidade, uma mudança de modo de vida, de mentalidades, de conceitos. Na nossa ficção, os Blasted anunciam a chegada, preparam o terreno, dessas crianças-diamantes... E esta ficção poderá passar para uma narrativa, em banda-desenhada, proximamente.

O novo álbum começa a ter características mais electrónicas a partir do tema 6, até parecendo um velho LP com dois lados. Esse «lado B» - que é mais «Mechanism» apesar de continuar a ser «Blasted» - parece ser a continuação lógica do álbum de remisturas «Mix00» e até de alguns concertos vossos mais recentes. O álbum de remisturas fez mesmo os Blasted repensarem a sua música?

Essa parte dos dois lados está correcta: gostávamos que as pessoas tenham tempo para entrar no ambiente do disco, para fazer uma viagem que tenha um princípio, um meio e um fim coerentes. O álbum de remisturas foi importante porque nos deu a oportunidade de exprimirmos aquilo que queríamos fazer em estúdio, experimentando. As remisturas foram muito feitas por nós próprios, em estúdio, com uma forma diferente da produção clássica; e com algumas pessoas exteriores a ajudar.

Mas os vossos concertos mudaram a partir daí...

O «Mix00» foi um disco de transição porque, finalmente, conseguimos misturar ambientes musicais que já queríamos recriar há muito tempo e que não conseguiam saltar só com o baixo, a bateria, a guitarra, a voz... Mas, mesmo antes de termos feito as remisturas, nós já ouvíamos aqueles ambientes atrás das músicas. Depois, em cima do palco, com a energia rock inerente à banda, conseguimos transformar esses temas em grandes paredes, grandes massas, de som.

Vocês nunca foram apenas um grupo rock - desde o início que há outras músicas na vossa música. Mas em «Namaste» ainda está mais presente o recurso a músicas de diversas proveniências (África ou Índia, por exemplo, mas também a electrónica, o funk, o dub, o ragga...). Os Blasted estão, definitivamente, cada vez mais fartos do rock?

Os Blasted nunca foram rock. Nós acabamos por nos servir do formato rock para dispararmos para todo o lado. Nós temos uma formação rock mas extravasamos para outros lados. O que se mantém rock, neste momento, é mais a energia dos espectáculos ao vivo. E nesse caldeirão rock nós damos um espelho do que é o mundo - mas longe da world music -, do que são outras músicas.

Essa vossa aproximação a sonoridades vindas de várias partes do mundo parte de que tipo de necessidade? Uma necessidade estética - no sentido de precisarem de diversificar a vossa música - ou uma necessidade que tem a ver com a vontade de comunicar algo de diferente: uma mensagem de abertura ou uma postura política e de intervenção?

Tem a ver com a nossa vontade de transmitirmos um conceito, de chegarmos a mais pessoas, de irmos à procura de outras sonoridades. Nós não somos uma banda de intervenção social ou política - se bem que, se tivéssemos gravado o álbum agora e devido à conjuntura mundial, talvez tivéssemos ido mais por aí -, mas temos as nossas convicções e temos temas em que mostramos as nossas ideias. O tema «I Believe» (NR: em que Karkov canta: «I believe in the power of people», etc.) é um manifesto de quem tem necessidade de uma mudança. Aqui, o cantor é um pregador que faz um alerta ao acordar das consciências.

E pode dizer-se que os Blasted, acima de tudo, pretendem fazer uma música tribal, xamânica, de festa e comunhão?

Sim. Nós criamos um cerimonial, uma celebração de festa, de comunhão; que obedece à conjugação de forças que nós extravasamos para a nossa ficção (NR: ver resposta à primeira pergunta). Principalmente ao vivo, pretendemos fazer uma celebração - e desde sempre que se celebram as divindades através da música e da dança - e descobrir a Divindade que existe em nós e em quem assiste aos nossos espectáculos. Às vezes, costumamos fantasiar acerca dessa celebração e imaginamos que as pessoas que estão à nossa frente começam a dançar e a formar padrões de dança, como se fossem espirais ou fractais, surgindo um cone de energia enorme que nos envolve e suga a todos - Comunicação!!!... O público dos Blasted procura mais a felicidade e a harmonia do que algo obscuro e pouco perceptível. E isso vem um bocado da cultura rave e das novas drogas, como o ecstasy. É xamânico, é um cerimonial... Mas nos nossos concertos também há momentos menos agradáveis, que pretendem consciencializar as pessoas de que nem tudo é tão bom assim. Nós encontramo-nos, também, no público. O nosso concerto no último Sudoeste foi de um carinho absoluto: nós gostamos muito de vocês e vocês gostam muito de nós. Houve ali um brilho incrível.

Onde é que foram descobrir os músicos africanos que cantam e tocam em «Taman Taman» e «Bolivian Feel» e, já agora, podem falar também um pouco das outras pessoas que também participam no disco?

Nesses temas quem participa são o Mestre José Brahima Galissa (voz e kora) e o Mestre Kabun (percussões), que vêm do Ballet Nacional da Guiné... O Galissa é musicólogo, é um mestre da cultura mandinga. Neste momento, estão cá músicos e bailarinos fabulosos - mais de trinta - que pertenceram ao Ballet Nacional da Guiné e que agora estão em Portugal a trabalhar nas obras. Estes dois músicos que participaram no nosso disco são músicos excepcionais, pessoas que têm uma maneira muito especial de estar na vida. Temos um grupo de músicos que, aqui, vai às Índias e à música klezmer que é a Bigodes Band, um trio de bombardino, acordeão e clarinete-baixo, em que participa o Luís Bastos, que já tinha colaborado no «Plasma». Aliás, é curioso que antigos membros dos Blasted lançaram também as suas sementes: o Miguel Cardona foi formar os Coldfinger; o Alex partiu para os Terrakota... Tivemos o Virgul, dos Da Weasel, num toast; o Salvatori, no didgeridoo. E tivemos quatro bateristas: o João Lencaster, que foi dos Blasted e que depois partiu mundo fora, e que é um fabuloso baterista, mais jazz e drum'n'bass; o Pantera, dos Montecara, mais dub e reggae; o Pedro Leal, que colabora com o Carlos Zíngaro, e aqui tocou guitarra e um kit de bateria bastante estranho; e o Fred Stone, que nos acompanha ao vivo. Nós tínhamos que diversificar as nuances rítmicas e foi necessário trabalhar com pessoas diferentes. Depois, o trio de produção Toolateman (Valdjiu, Ary e Dominique Borde; com Karkov a fazer o trabalho de «rato de biblioteca» e as letras) tratou isto tudo. Estivemos um ano em estúdio a trabalhar com todas as pessoas e a tratar estas nuances todas. Isto, em termos financeiros, não tem preço.

Já parecem os Pink Floyd, vocês...

Só não estamos é num barco no meio do Tamisa (risos).

E como é que vão ser os novos concertos?

Nós passámos uma fase, os últimos três anos, em que praticamente só trabalhámos nós os três e estivemos sem banda, praticamente sempre a ensaiar e a gravar em estúdio. Agora, o Luís Simões (dos Saturnia) começou a tocar ao vivo connosco, em guitarra eléctrica e sitar eléctrica... Ele fez uma remistura para o «Mix00» e vai também entrar para o núcleo de composição de um próximo disco; e temos desde há algum tempo um baterista brasileiro, o Fred Stone. Nenhum dos temas do novo álbum foi antes tocado ao vivo e estamos a ensaiar intensivamente para passarmos as canções para o formato ao vivo.

Vocês pensam integrar-se, falando de uma forma simplista, nalgum tipo de movimento ou consideram-se um absoluto OVNi no panorama musical?

Os Blasted estão a tentar potenciar o talento de outros artistas, tanto em termos de estúdio como de sala de ensaios (NR: os Blasted transformaram um armazém, na Abóboda, perto de S.Domingos de Rana, em estúdio, sala de ensaios e escritório da sua editora, a Toolateman). Nós, por exemplo, fazemos o «Salvem a Música Portuguesa» à nossa maneira: temos uma editora, a Toolateman, para a qual já gravaram ou vão gravar o Mercado Negro (NR: projecto de Messias, dos Kussondulola), o José Brahima Galissa (NR: guineense, cantor e tocador de kora, que participa em «Namaste»), os Montecara (NR: reggae), os Cartel 70 (NR: ragga/drum'n'bass), os Ylang Top (NR: projecto paralelo de Valdjiu) e, possivelmente, um duo romeno de acordeão e violino. Queremos que as coisas funcionem de igual para igual entre a editora e os músicos. Procuramos novos talentos, pessoas que poderão também vir ou não colaborar com os Blasted; criar, talvez, um pequeno movimento... (NR: para além de alguns destes nomes, pela sala de ensaios passam também, sem ligação à editora, os Toranja ou os Dazkarieh). E a primeira edição da Toolateman é este novo álbum dos Blasted - neste caso muito bem casada com a Metrodiscos e com a EMI, que distribui e promove o disco.

Há alguma possibilidade de o vosso disco ter distribuição internacional?

Temos uma empresa inglesa que está a trabalhar connosco activamente, a Other Kind, que nos levou ao Atlantic Waves. Estivemos na Holanda, no festival Eurosonic, em Londres. E há possibilidades - já com contactos feitos - de o nosso álbum ser editado nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Austrália.

Vai haver remisturas de temas do vosso novo álbum?

Vai. Mas neste caso gostávamos de enviar os temas a remisturadores de top: os Thievery Corporation, os Groove Armada, o Lee Perry, o Mad Professor, os Air, os Daft Punk, os Gotan Project, os Sofa Surfers... Se for feito, será um projecto completamente externo a nós. E é uma tentativa de criar uma rede maior, conhecer novas pessoas, abrir novas portas...

Os Blasted sempre se preocuparam com uma série de coisas paralelas à música: a imagem, as luzes, os fatos e por aí fora. Desta vez, os novos fatos parecem saídos do imaginário de HR Giger...

E do Bilal, também. E do George Lucas (NR: leia-se «Guerra das Estrelas»). Nós partilhamos muitos interesses e muita informação entre nós. E é natural que as influências externas de vários tipos de arte possam estar adjacentes ao projecto. Mas isto só existe porque temos uma grande equipa a trabalhar connosco: o Cristóvão Veríssimo, que faz as luzes e que, como trabalhou em teatro, partilha connosco esse lado mais cénico; o Nuno Elias e o Frederico Gouveia, que fizeram e desenharam os fatos e as máscaras; o Dominique Borde - engenheiro-de-som que é nosso sócio na Toolateman e traz um background muito grande de França, tendo trabalhado com o Sakamoto, o Peter Gabriel, o Eric Serra, fez som para o Luc Besson; o Paulo Prazeres, que é o realizador do teledisco, «Are You Ready»; a Desorgan, que está a fazer o nosso site (NR: já acessível em www.blastedmechanism.clix.pt); o Tó Trips (NR: dos Lulu Blind e artista gráfico), que fez a capa e os anúncios; e os outros todos.


BLASTED MECHANISM
AGARRA O RAGGA, GARRA NAS RAGAS

Depois de «Namaste» (ou, em sânscrito, «o Divino que vive em ti»), os Blasted Mechanism dão-nos mais um capítulo da saga que começaram a escrever há alguns anos: «Avatara» (ou, em sânscrito, «o Descendente de Deus incarnado»). Se calhar, não é mesmo por acaso que que o novo álbum da banda está cheio de sitars, unindo raggas jamaicanos às ragas indianas.

Os álbuns conceituais estão fora de moda - é coisa dos anos 60 e 70, pensa-se, dos Beatles de «Sgt. Pepper's...» e das sagas do Rick Wakeman... -, mas, então, se isso é verdade, porque é que há uma banda portuguesa - os Blasted Mechanism - que, desde os primeiros discos, desenvolve sempre o mesmo conceito, disco após disco, espectáculo após espectáculo, como se toda a sua carreira fosse um livro - religioso? místico? new-age? de ficção científica? - e cada etapa mais um capítulo de uma história que parece interminável? E porque é que há cada vez mais tantas músicas na música dos Blasted, do reggae ao rock progressivo, das ragas indianas às novas electrónicas, de percussões africanas ao hip-hop?

Valdjiu e Ary - os dois Blasted que falam nesta entrevista - começam por explicar o que liga, tematicamente, o novo álbum, «Avatara», ao anterior, «Namaste» e em que fase da «grande narrativa» Blasted é que estamos agora. Diz Valdjiu: «"Avatara" é um conceito que transporta, em si, o espírito daquilo que os Blasted sentem em relação à vida e à música. "Avatara" está presente em muitas culturas ancestrais e actuais, inclusive na portuguesa. Significa "Aquele que vem"...». Tem, portanto, algo de messiânico e de sebastiânico, até... «Sim, é o "Encoberto" e é alguém que vem transmitir uma nova consciência cósmica. Chegámos ao "Avatara" através de uma filosofia chamada Eubiose...». Na ficção dos Blasted, «Avatara» surge na sequência lógica da «fase da recolha e da tutoria dos bébés-diamantes (presente em "Namaste"), que vieram para sincronizar o Homem com o mecanismo cósmico». E acrescenta Ary: «Traduzido à letra, "Avatara", é um Messias, mas para nós é mais a ideia da concretização de uma "conspiração", aqui no bom sentido, que tem como objectivo, através do "Avatara", termos todos a consciência global de que temos que mudar a maneira como encaramos o tempo, o calendário, e como mecanizamos a nossa vida ao ponto de perdermos quase completamente o nosso lado espiritual».

Digo-lhes que há poucos dias tinha entrevistado outro artista português, José Castro - a propósito do álbum «Tree of Life» - e que ele tem algumas ideias paralelas aos Blasted: «o Homem precisa de parar para sentir; como as árvores». Os Blasted não conhecem José Castro, mas revêem-se na ideia: «É isso mesmo. A ideia é parar o tempo. A forma de estar mais harmoniosa está presente nas árvores, que comunicam inclusive entre elas... São pontos fixos, de uma grande longevidade, que largam sementes para se espalhar no vento... No "Avatara", agora falando mais da (nossa) ficção, se viemos tutorizar e preparar as crianças-diamante, há que preparar agora o cenário para o "alinhamento": a compreensão de que o tempo tem que deixar de existir. Enquanto o Homem estiver ligado ao calendário pobre que é o gregoriano, há-de estar sempre ligado à robotização, a um mecanismo dependente de terceiros, nunca dele próprio. Como dizia o Agostinho da Silva, o importante não é ter, é ser». E acrescentam que «ser um artista, um músico, é um privilégio que nos permite pensar mais no ser do que no ter. Estamos um pouco à parte, em contra-corrente, a puxar as coisas para o outro lado... E também vemos o resultado disso no público. Há fãs nossos que mudaram de vida, que nos dão conta de que, a partir do concertro X - e apanhando coisas do ar, "I believe", "are you ready?", "children of the re-evolution" - foram investigar o calendário maia, apanharam a onda "namaste", e mudaram a sua forma de viver».

Os Blasted vêem-se, então, como gurus de alguma coisa?... «Não somos nós, porque estas ideias já vêm de trás. A religião que se pratica agora é a religião do consumo, do ter. É curioso porque fomos filmar o nosso teledisco a Marrocos e não fomos lá porque é "giro", mas porque, apesar de tudo, o Islamismo é uma religião que é mais espiritual do que algumas das outras. Eles param cinco vezes ao dia (para rezar). E parar é reflectir, é repor os nossos níveis de bem-estar. Lá, em alguns sítios, eles têm a consciência de "Avatara", de não olhar para o relógio, nem para o ontem nem para o amanhã. O problema da Europa é que não está em 2005, já está em 2006: o espírito das pessoas está num amanhã constante, num objectivo... um crédito no banco, ter mais e mais...». E fala-se de Enki Bilal: «O Bilal (célebre autor de BD) tem um filme, "O Imortal", em que ele vê as pessoas, no futuro, não com um nome e uma nacionalidade mas como números de grandes corporações globais. Imaginemos: o meu bilhete de identidade não é português, é da Sonae...».

Essa transmissão da «mensagem», que já afectou alguns dos fãs dos Blasted, é uma das razões para o grupo ter adoptado, no novo álbum, quase por completo a língua inglesa, em detrimento do dialecto «karkoviano»: «Foi uma necessidade que o Karkov (vocalista e letrista) teve para fazer passar uma mensagem concreta. Essa preocupação já existiu no "Namaste" e é agora ainda mais premente. Assim fica mais fácil a compreensão deste imaginário Blasted. Mas não estamos presos a isso. Se calhar o próximo álbum é todo em karkoviano. Somos "deuses" do nosso próprio universo, por isso podemos criá-lo à nossa medida. E isto só há-de acabar, se calhar, um dia, quando já não tivermos mais nada para dizer. Com um final feliz (risos)».

E enquanto esse final não se vislumbra no horizonte (digamos, temporal), há outras coisas a saber sobre os Blasted. Por exemplo, que «Avatara» é o primeiro álbum do grupo a ter lançamento mundial através da editora alemã A-Label e que, através de um agente europeu, «o novo álbum foi já apresentado em duas cidades da Suiça e duas da Alemanha. Eram públicos que nunca tinham visto Blasted e no início dos espectáculos ficaram um bocado a olhar, mas depois deixaram-se levar. E, digamos assim, aquele gajo que estava lá à frente a tirar-nos a onda toda rapidamente se tornou um aliado de festa. Em Munique foi uma grande festa mesmo». E, dizem, é bom que o «Avatara» possa chegar a muito mais pessoas. Mais a mais porque «finalmente, os Blasted são outra vez uma banda», com a entrada de Luís Simões (dos Saturnia e com o pseudónimo Zymon nos Blasted Mechanism) na sitar e na guitarra eléctrica, ainda na digressão de «Namaste» e entrando para o núcleo de compositores de «Avatara» - «o Luís é uma pessoa única, completamente fora, e é super-perserverante no seu trabalho de músico. E é um grande conhecedor de muita música que os Blasted não conheciam, inclusive de música portuguesa que nós não conhecíamos -- os anos 60, 70, rock progressivo, psicadélico...»; o percussionista Nuno Patrício (Dumdumba, Dazkarieh, Uxu Kalhus...; aka Winga), «pela necessidade de voltar ao tribalismo das peles, ao ritmo, a África... e ele toca imensos instrumentos diferentes, das steel-drums a uma trompa tibetana de seis metros de comprimento»; e o baterista Fred Stone (Sync), que já acompanha a banda há alguns anos.

Os Blasted como «banda» - e também por serem uma «banda» - são, neste álbum, mais orgânicos de que em discos anteriores e - apesar de imensas ramificações musicais presentes no disco - parece, muitas vezes, um encontro de raggas jamaicanos com ragas indianas. «Há um calor vindo de África e das suas ramificações em músicas jamaicanas, americanas, com a sensualidade oriental que não vem só da sitar, vem também das melodias e das harmonias. Há aqui uma mescla de coisas que, no fundo, sempre foram influências dos Blasted e que, agora, ao vivo, têm muito mais potencial. Há muito mais actividade física, ao vivo, paralelamente a cenários e projecções de imagens em que exploramos o nosso universo (conceito presente nos concertos da digressão de apresentação do álbum)».

Em «Avatara» estão presentes vários convidados, entre os quais a cantora Maria João: «ela canta num dialecto africano, mas não a convidámos só por causa dessa ligação a África, foi mais pela liberdade como ela encara a música, pelo experimentalismo, pela improvisação. Ela improvisou, nós não, e isso abre portas que nós nunca abriríamos. Ela é fantástica... é um sintetizador humano, faz sons inimagináveis com a voz». E outros: «o clarinetista Luigi Lust (Luís Bastos), que já colabora connosco há alguns anos - foi ele o grande responsável pela nossa entrada no klezmer...», outro colaborador habitual, Salvatori Tiliba (aka Henrique Figueira; coros; responsável pelo projecto de imagem ao vivo), e duas contribuições de fora da «família»: o grupo hip-hop Dealema «numa música que tinha uma cadência old-school, e os Dealema foram muito rápidos e profissionais, escrevendo uma coisa muito gira - uma espécie de um tributo - e é um choque ouvir o disco, chegar ali e ouvir uns gajos em português»; e o DJ NelAssassin, que «é um mágico dos pratos».

Ainda antes do álbum saiu o DVD dos Blasted, «um documento para os fãs, os coleccionadores. Tem muitos espectáculos, principalmente de 2000 a 2003, tem telediscos, imagens de bastidores... Tem N coisas que, de outra maneira, os fãs teriam que ir roubar a cassetes VHS. Deu uma grande trabalheira mas também deu muito prazer». E, para o futuro próximo, a estrutura editorial dos Blasted, a Toolateman, prevê a edição de álbuns dos Cartel 70 (ragga/drum'n'bass/hip-hop) e do DJ Dimitrivzki (o alter-ego dos Blasted para remisturas), e o apoio editorial a dois projectos guineenses, Tama La e Bela Nafa, e a um outro, euro-africano, Kandoo (projecto paralelo de Valdjiu).

27 novembro, 2006

Festival Etnias - Em Dezembro no Contagiarte


O melhor espaço nocturno do Porto, o Contagiarte, recebe nos dias 7, 8 e 9 de Dezembro mais uma edição do Festival Etnias, marco maior desta casa que nasceu a 11 de Dezembro de 2003 e que já acolheu «centenas de eventos, para cima de um milhar de artistas e muito, muito público». Uma casa onde é habitual ouvirem-se sons de todo o mundo - folk, tango, reggae e ska, world-ambient... até heavy-metal de desvairadas proveniências - e onde o Etnias, agora em quarta edição, cai sempre que nem uma luva.

O Festival Etnias apresenta, no dia 7, o Beat Box Show (Beat e Osga, este músico dos Mu, DJ no Contagiarte e programador do Festival) e os holandeses 3ple-D (dois didgeridoos na boca de Lies Beijerinck e Michiel Teijgeler, e tablas, cajon, congas e outras percussões nas mãos de Terence Samson). No dia 8 há espaço para o jazz manouche à Django Reinhardt (o genial guitarrista de jazz cigano, belga mas francês de adopção e com menos dedos do que seria suposto) dos albicastrenses Comcordas (António Preto na guitarra-solo, Gil Duarte na guitarra-ritmo e Gonçalo Rafael no baixo acústico), os portuenses Terrae (duo de música e dança constituído por Marc e Diana) e os lisboetas festivos e incendiários Roncos do Diabo (isto é, os ex-Gaitafolia, isto é bis, os gaiteiros André Ventura, Mário Estanislau, João Ventura e Victor Félix, e o percussionista Tiago Pereira). E no dia 9, para fim de festa, há danças africanas com as bailarinas dos Djamboonda (Teresa Pinto e Eva Azevedo) e um espectáculo dos próprios Djamboonda (na foto), grupo da Tábua que vai a África buscar os ritmos, a cor e o sabor das suas actuações (os Djamboonda são agora formados por cinco percussionistas com raízes em Portugal, Cabo Verde, Angola e Guiné–Bissau: Gueladjo Sané, Kula, Paulo Rodrigues, Dez e Tito Silva). Todas as noites há também sessões de DJs até às tantas da manhã. Mais informações, aqui.

26 novembro, 2006

Prémio José Afonso - Um Júri Alternativo


O Prémio José Afonso, anualmente atribuído pela Câmara Municipal da Amadora desde 1988, não distinguiu desta vez nenhum artista ou grupo que tenha editado um álbum durante o ano de 2005 porque, alegadamente, o júri não encontrou «mérito consonante com o prestígio do Prémio» entre as obras a Concurso. O júri - constituído por António Moreira (vereador da Cultura da Câmara Municipal da Amadora), Olga Prats (pianista), Carlos Pinto Coelho(jornalista), Manuel Freire (cantor e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores) e António Victorino d'Almeida (maestro, compositor, músico e concorrente ao cargo de presidente da Sociedade Portuguesa de Autores) - ao que parece cingiu-se aos regulamentos e apenas avaliou os álbuns enviados para a Câmara Municipal da Amadora pelas suas editoras ou pelos próprios músicos; uma lista que incluía «Apontamento» (Margarida Pinto), «Mulheres» (Vozes da Rádio), «Amores Imperfeitos» (Viviane), «Éramos Assim» (Boite Zuleika), «Groovin'on Monster`s Eye-ball's» (Hands on Approach), «Cacus» (José Peixoto e Carlos Zíngaro), «Coisas Simples» (María León), «Almadrava» (Marenostrum) e «Cantes d'Além Tejo» (Francisco Naia). Uma fraca - fraca porque bastante incompleta - amostra da produção nacional, o ano passado, nas áreas geralmente distinguidas pelo Prémio. Um Prémio que, segundo os seus regulamentos, homenageia a memória de José Afonso (na foto) e incentiva a produção nacional.

Considerando que esta é uma oportunidade desperdiçada - mais a mais numa altura de crise da indústria discográfica e de fraca visibilidade junto da generalidade dos media da produção musical de raiz tradicional ou popular portuguesa -, o Raízes e Antenas associa-se a uma votação promovida pelo site Crónicas da Terra (é favor carregar no link e votar...) no sentido de, alargando o leque de álbuns elegíveis para o Prémio José Afonso, se fazer uma petição que resulte na atribuição efectiva deste Prémio. Os votos, no referido site, contam até dia 28 e as obras a «concurso» incluídas são: «Ulisses» (Cristina Branco), «Modas I Anzonas» (Galandum Galundaina), «Balancê» (Sara Tavares), «Mandrágora» (Mandrágora), «Ascent» (Bernardo Sassetti), «Single» (Carlos Bica), «Almadrava» (Marenostrum) e «No Castelo de Chuchurumel» (Chuchurumel).

No mesmo sentido, e em acrescento aos álbuns constantes da lista do júri e da lista do Crónicas da Terra, o Raízes e Antenas deixa aqui mais uma lista de álbuns saídos em 2005 que poderiam ter sido considerados, e não foram, pelo júri do Prémio José Afonso: «Alice» (Bernardo Sassetti, para juntar ao «Ascent»), «Tudo ou Nada» (Katia Guerreiro), «Diário» (Mafalda Arnauth»), «Faluas do Tejo» (Madredeus), «Transparente» (Mariza), «Gincana» (Roldana Folk), «Ilha do Meu Fado» (Carla Pires), «Gritar o Fado Revisitado» (Fadomorse), «Abertura» (Lupanar), «Viola Toeira» (Luís Baptis), «(H)á Fado» (Mário & Lundum), «Drama Box» (Mísia), «Condição de Louco» (Danae), «Mundanças» (Mu), «Decantado» (Notas & Voltas), «Moinhos de Vento» (Trovas ao Vento) e «O Cantar Que Nos Embala» (Belaurora). Na certeza de que ainda faltam alguns...

24 novembro, 2006

Algumas Canções Pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres


Há milhões de mulheres em todo o mundo que carregam consigo o peso de um segredo, de uma dor, de uma tragédia. Atlas involuntárias, Sísifos à força que transportam uma pesada nuvem negra sobre os ombros. Mulheres espancadas, violadas, psicologicamente subjugadas, economicamente submetidas, hierarquicamente sujeitas a maus-tratos. Na Índia há mulheres-escravas. Em África há mulheres condenadas à morte por terem um filho fora do casamento. Na Tailândia, meninas de dez anos ou menos são obrigadas a prostituir-se. Da Rússia e do Brasil vêm para o centro e sul da Europa prostitutas à força. Em Portugal cerca de 30 mulheres morrem, por ano, às mãos dos seus maridos, amantes ou namorados. Em alguns países muçulmanos as mulheres são obrigadas à excisão do clítoris. Em França, país da igualdade e da fraternidade, há um provérbio que diz «as mulheres, tal como os castanheiros, devem levar uns abanões todos os dias». 25 de Novembro é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres e uma cadeia internacional de blogs está a ser formada em torno desta temática (ver lista de links aqui). O Raízes e Antenas associa-se a essa cadeia e toma como mote a espantosa escultura de Steve Garden que encima este post.

Talvez muita gente não se aperceba mas um dos mais amados temas musicais dos anos 60, a versão de Jimi Hendrix da canção «Hey Joe», é uma canção de ciúme, sim, mas acima de tudo uma canção de violência extrema exercida sobre uma mulher: a morte de uma mulher às mãos do seu amante, por uma traição não confirmada. «Hey Joe» é um blues sangrento baseado numa história real, como o são muitos outros blues, e assustador naquilo que sugere. Como assustadores são muitos outros temas tradicionais norte-americanos (vf. em «Murder Ballads», em que Nick Cave recupera velhas canções de amor e morte, e, de um modo geral, em todo o cancioneiro popular norte-americano). Como o é «Delia's Gone», de Johnny Cash. E como o é, também, a sugestão que fica em «Run For Your Life», dos Beatles («I'd rather see you dead little girl than to be with another man»). Numa adenda importante a esta temática, uma zona do site Creative Folk, coordenada por Gerri Gribi - ela própria compositora e intérprete de várias canções relacionadas com este tema -, faz um levantamento exaustivo de canções de vários géneros e de várias proveniências que abordam a temática das mulheres assassinadas, sujeitas a maus tratos ou violadas (e também de maus tratos exercidos sobre homens e crianças). No site são referidas canções tradicionais como «Banks of Red Roses» e «Cruel Brother», ambas interpretadas pela Battlefield Band, «Sheath and Knife», cantada por Eliza Carthy, Ewan MacColl e Maddy Prior, ou «Well Below the Valley», pelos Planxty. E, ainda na folk britânica, a arrepiante «Valentine's Day is Over», de Billy Bragg, também interpretada por June Tabor. Fala de canções escritas ou cantadas por Leadbelly, Bessie Smith, Kurt Weill/Bertolt Brecht («Mack The Knife», da «Ópera dos Três Vinténs») ou The Carter Family.

E também por muita gente mais recente e de variadíssimos géneros: Suzanne Vega, Bebel Gilberto, Dolly Parton, Tracy Bonham, Indigo Girls, The Gossip, Zen Guerilla, Joan Jett, Andrew Horwitz, Soundgarden, Pearl Jam, Bonnie Raitt, Hootie and the Blowfish, Toni Braxton, Lisa Stansfield, Annie Lennox, Sarah McLachlan, Aretha Franklin, Carly Simon, Amy Grant, Janis Ian, Gillian Welch, Belle And Sebastian, Joni Mitchell, Jewel, Sublime, Pink Floyd, Ani Difranco, Insane Clown Posse, Lucinda Williams, Loudon Wainwright, Lauryn Hill, Christina Aguilera, Heather Nova, Aerosmith, Peter Gabriel, Madonna, Sonic Youth, Alanis Morissette, Chumbawamba e Nirvana, só para referir alguns.

Links Úteis:
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
UNIFEM

Rachel Hair, Joanna Newsom, Corrina Hewat & Kathryn Tickell - Três Harpistas (& Uma Gaiteira)


Três álbuns recentes - da harpista Rachel Hair (na foto), da cantora e harpista Joanna Newsom (num álbum cheio de convidados ilustres) e do duo de Corrina Hewat (harpa e voz) e da maravilhosa Kathryn Tickell (gaita-de-foles e violino) - mostram que a harpa é sempre um melhor instrumento quando está nas mãos das mulheres (que nos perdoe o saudoso Derek Bell!). Já sobre a gaita não me pronuncio: podia soar a trocadilho ordinário.


KATHRYN TICKELL & CORRINA HEWAT
«THE SKY DIDN'T FALL»
Park Records

«The Sky Didn't Fall», álbum de colaboração íntima entre a extraordinária gaiteira Kathryn Tickell (mestra nas gaitas-de-foles da Nortúmbria, mais semelhantes em sonoridade às uilleann pipes irlandesas do que às gaitas-de-foles escocesas, e também uma exímia violinista) e a harpista e cantora escocesa Corrina Hewat, é um álbum lindíssimo em que as duas intérpretes recuperam canções tradicionais da Nortúmbria e da Escócia, algumas com centenas de anos, e as trazem para a luz em duetos brilhantes - harpa e gaita, harpa e violino, por vezes voz e violino, por vezes a duas vozes (neste disco até Kathryn canta, coisa raríssima...). E o resultado da junção dos instrumentos - e das vozes com os instrumentos - é sempre de uma simplicidade, de uma luminosidade e de uma beleza que, atrevo-me a dizer, só poderia sair do trabalho de duas mulheres. Neste álbum, os temas - seja o único original, dividido em duas partes, a abrir e a fechar o álbum, sejam jigs, baladas ou velhas canções de intervenção escocesas - parecem finos bordados de linho branco, aguarelas aquosas em que se vislumbram lagos enevoados e belas montanhas ao fundo, a emulação de cantos de pássaros pequeninos e brincalhões, canções de roda infantis com um lenço a rodar de mão em mão. Há poucos discos assim. (9/10)


RACHEL HAIR
«HUBCAPS & POTHOLES»
Marsh Hair Records

Em «Hubcaps & Potholes», então, a harpa é rainha e senhora. Só muito de vez em quando se ouvem outros instrumentos - um piano em três temas, uma flauta noutro - mas também não fazem grande falta: a escocesa Rachel Hair é uma harpista, se não extraordinária pelo menos competentíssima, e teve o dom de escolher um reportório riquíssimo e, todo ouvido de seguida, bastante coerente - na sua maior parte temas tradicionais escoceses e irlandeses, muitas vezes mais habituais de se ouvir em gaitas-de-foles ou violinos do que propriamente em harpa, alguns originais e uma versão de «Cancro Crú» (composto por Anxo Pintos, dos galegos Berroguetto, embora no livreto do álbum de Rachel sejam apresentados como asturianos...). E neste álbum de estreia de Rachel Hair, a harpa (a clarsach, harpa tradicional da Irlanda e das terras altas escocesas) é um fio de água fresca em movimento permanente, saltitando de pedra em pedra, beijando cada erva que encontra pelo caminho, deixando-se enredar nos jigs e nos reels em que ouvimos as mãos a dançar. Nos temas em colaboração, o pianista Douglas Millar mostra-se discreto, deixando Rachel brilhar, mas no tema com o flautista Peter Webster o duelo é muito mais equilibrado. (8/10)


JOANNA NEWSOM
«YS»
Drag City Records

Nos antípodas do despojamento e nudez do álbum de Rachel Hair e num espectro musical completamente diferente do de Rachel ou do de Kathryn e Corrina, o novo álbum de Joanna Newsom - nome em crescimento nos meandros da neo-folk (freak-folk, anti-folk, alt-folk...) norte-americana, ao lado de Devendra Banhart, dos Vetiver ou do projecto Six Organs of Admittance - é uma maravilha completa! Para começar, Joanna está a cantar muito melhor do que no álbum que lhe deu visibilidade («The Milk-Eyed Mender», de 2004) - numa voz que está entre Bjork, Kate Bush, Rosie Thomas e uma adolescente chata e birrenta -, está uma harpista mais incisiva umas vezes e mais recatada outras, uma letrista assombrosa e, a somar a isto tudo, neste álbum é rodeada por uma equipa de luxo absoluto: Van Dyke Parks na produção e nos arranjos de orquestra; Steve Albini na gravação - que é sempre muito mais do que isso... - de voz e harpa (está aqui a frase lendária «recorded by...» de velhos álbuns dos Nirvana e Sonic Youth); Jim O'Rourke nas misturas. E o resultado é um álbum fabuloso, com a voz e harpa de Joanna - mais a orquestra, um acordeão e vozes de apoio - a navegarem numa mistura única de indie-rock, música erudita, folk de proveniência diversa (americana sim, mas também britânica), baladas infantis de moral duvidosa, bandas-sonoras para filmes fantásticos, canções de amor desesperadas... Alguns dos temas, cinco ao todo, são enormes (um deles dura doze minutos, outro dezassete) e, apesar de hiper-orquestrado e de a voz de Newsom quase nunca nos dar espaço para descansar, o álbum ouve-se de ponta a ponta com um prazer imenso e inesperado. (10/10)

23 novembro, 2006

Gotan Project - Electro-Tango nos Coliseus


São cada vez mais os projectos musicais a fundir o tango com as novas linguagens electrónicas - Bajofondo Tango Club, Tango Crash, Tanghetto, Federico Aubele, Carlos Libedinsky... - mas foram os Gotan Project que primeiro deram visibilidade a esta mistura com o seu álbum «La Revancha del Tango». Gotan Project que regressam a Portugal nos próximos dias para revisitar as duas salas em que já estiveram este ano: o Coliseu dos Recreios de Lisboa (dia 26 de Novembro) e o Coliseu do Porto (um dia depois). Nascidos em França pela mão do francês Philippe Cohen Solal, do argentino Eduardo Makaroff e do suiço Christoph H. Müller, os Gotan Project estrearam-se em disco com «Vuelvo Al Sur/El Capitalismo» (2000) mas foi com o álbum «La Revancha del Tango» (2001) que saltaram para a ribalta internacional ao fundir uma dança tradicional, o tango, com linguagens musicais mais recentes (dub, house, drum'n'bass, ambient, hip-hop...). Em 2004 é editado o álbum de remisturas «Inspiración Espiración - A Gotan Project DJ Set Selected & Mixed by Philippe Cohen Solal», em que Solal remistura temas clássicos do tango (nomeadamente de Astor Piazzolla, claramente uma fonte de inspiração maior para os Gotan Project, e de Anibal Troilo) e até «Round Midnight», de Chet Baker, e outros músicos e DJs (dos Antipop Consortium, Pepe Braddock e Peter Kruder, dos Kruder & Dorfmeister, aos... Calexico) remisturam temas dos Gotan Project. E já este ano saiu «Lunático», em que se nota a preocupação do grupo de dar um som mais mais orgânico à sua música (com a participação efectiva do pianista Gustavo Beytelmann, uma secção de cordas, um trombonista e dois MCs) e uma aproximação «filosófica» à música tejana e texana através de uma colaboração com os Calexico e de uma versão de «Paris,Texas», de Ry Cooder. A produção dos concertos é da Portoeventos.

22 novembro, 2006

«No Child Soldiers» - Desmobilizem As Crianças!


São carne para canhão. Tenra e barata. Muitas vezes esfomeada. Outras vezes com sede de vingança. Crianças entre os seis e os dezassete anos que brincam às guerras nas guerras a sério. Do lado de bandos rebeldes ou dos exércitos governamentais, sem direito a soldo nem ao remorso dos seus comandantes. Muitos morrem. Outros ficam estropiados. Outros viciados nas drogas que os chefes lhes dão para melhor os controlar. Muitos outros ficam com danos psicológicos irreversíveis. Neste momento são mais de 300 mil - 300 mil, santo Deus! - em todo o mundo. E há outras estatísticas: mais de um milhão de crianças passou por esta experiência; mais de dois milhões de crianças morreram em consequência de guerras nos últimos anos; mais de seis milhões ficaram estropiadas ou foram gravemente feridas; há dez milhões de crianças refugiadas, órfãs ou seriamente traumatizadas por guerras recentes. Os números, cruéis, estão no livreto do álbum «No Child Soldiers», que reúne inúmeras vedetas da música africana numa causa comum: a desmobilização das crianças-soldados. O resultado das vendas do disco - uma ideia da organização francesa Aikah a que se associaram outras entidades - reverte para organizações de desmobilização e reinserção de crianças-soldados. A fotografia que encima este texto é de Antony Njuguna, da Reuters.


VÁRIOS
«NO CHILD SOLDIERS»
O+ Music/Harmonia Mundi

Apesar do problema das crianças-soldados ser universal - do Sri Lanka à Palestina, da América Latina ao Afeganistão - «No Child Soldiers», o álbum, é totalmente protagonizado por artistas africanos, nascidos no mesmo continente em que há dezenas de milhar (centenas de milhar?) de crianças-soldados. E o tema é logo referido no início do álbum, no hino afro-reggae-soul ««Benamou (Enfants Soldats)», composto por Ange Yao e Madéka, em que intervêm também vários dos protagonistas deste álbum - Alpha Blondy, Angélique Kidjo, Lokua Kanza, Ben Okafor, Aicha Koné, Charlotte M'Bango, Monique Séka, Mama Keita, Diane Solo e Bibi); canção que é repegada, numa versão reduzida, no final. E o álbum, riquíssimo, está cheio de excelentes artistas e temas africanos. Vejamos... Tété num tema bluesy, «Le Meilleur des Mondes», que faria inveja a Ben Harper. O enorme Geoffrey Oryema nos afro-blues luminosos do clássico «Yé Yé Yé». Outro «monstro», Alpha Blondy, no reggae quente e interventivo de «Peace In Liberia». Aicha Koné cruzando a música mandinga com swing eléctrico em «Kanawa». Madeleine «Madéka» Kouadio numa canção lindíssima, puxada a violino e percussões, «Miwa». Angélique Kidjo a fazer a ponte sonora entre África, Cuba, Jamaica e Estados Unidos no festivo «Mutoto Kwanza». Os balafons a servir de cama à fabulosa voz de Rokia Traoré em «Sakanto». Outro clássico incontornável, «Tekere», do nobre trânsfuga Salif Keita. Koras, percussões e secção de metais em roda livre no absolutamente dançável «Sinebar», de Youssou N'Dour. E ainda, para compor o ramalhete, temas de Corneille, Ben Okafor, Mama Keita, Bibie, Extra Bokaya e Lokua Kanza. Tudo por uma causa urgente, num álbum muito, muito bom. Só falta aqui Emmanuel Jal... (9/10)

Links:

No Child Soldiers
UNICEF
Amnistia Internacional
Handicap International

21 novembro, 2006

Ball-Diballs - Siga o Baile no Teatro Ibérico


Os dançantes, andantes, bailantes, saltitantes adictos às danças tradicionais europeias podem fazer o gosto ao pé em Lisboa, no Teatro Ibérico, durante os dois dias (1 e 2 de Dezembro) em que decorre o Ball-Diballs. No primeiro dia, com bailes abrilhantados pela música da No Mazurka Band - Paulo Pereira (flautas), Diogo Leal (flauta pastoril e gaita-de-foles), Ricardo Falcão (percussões) e Eduardo Monteiro (sanfona) - e dos Cravo & Ferradura - Paulo Pereira (flautas), Celina da Piedade (acordeão) e Joana Bagulho (cravo). No segundo dia, o baile é mandado pelos Mosca Tosca - Zé Oliveira (concertina), Vítor Cordeiro (flautas e gaita galega), Mário Dias (viola e bandolim), Luísa Côrte (concertina, flautas e pandeireta) e Matias (percussões) - e Uxu Kalhus - Paulo Pereira (flautas), Celina da Piedade (acordeão), Eddy Cabral (baixo), TóZé Bexiga (guitarra) e Luís (bateria). Os bailes começam às 22h00, com bilhetes a sete euros (para cada um dos dias). Todas as informações aqui.

20 novembro, 2006

Cromos Raízes e Antenas V



Este blog continua hoje a publicação da série «Cromos Raízes e Antenas», constituída por pequenas fichas sobre artistas, grupos, personagens (míticas ou reais), géneros, instrumentos musicais, editoras discográficas, divulgadores, filmes... Tudo isto sem ordem cronológica nem alfabética nem enciclopédica nem com hierarquia de importância nem sujeita a qualquer tipo de actualidade. É vagamente aleatória, randomizada, livre, à vontade do freguês (ou dos fregueses: os leitores deste blog estão todos convidados a enviar sugestões ou, melhor ainda!, as fichas completas de cromos para o espaço de comentários ou para o e-mail pires.ant@gmail.com - a «gerência» agradece; assim como agradece que venham daí acrescentos e correcções às várias entradas). As «carteirinhas» de cromos incluem sempre quatro exemplares, numerados e... coleccionáveis ;)


Cromo V.1 - Violeta Parra



Violeta Parra (Violeta del Carmen Parra Sandoval; 14 de Outubro de 1917 – 5 de Fevereiro de 1967) foi uma das mais importantes cantoras e compositoras da «nueva canción» chilena, integrando elementos da música tradicional do seu país (chegou a gravar temas populares, em duo com a sua irmã Hilda, no início de carreira) em canções de forte carga política. Também uma reconhecida pintora (teve uma exposição no Louvre, aquando da sua longa estada em Paris), Violeta juntou à sua arte uma empenhada intervenção na «coisa pública» chilena, aderindo ao Partido Socialista e criando uma comuna artística. Apesar de ter composto a canção cheia de esperança - e um hino de variadíssimas causas um pouco por todo o mundo - «Gracias A La Vida», Violeta Parra suicidou-se em 1967. Discografia aconselhada: «Paroles et Musiques», «Las Ultimas Composiciones», «Cantos Campesinos» e «Decimas Y Centecimas».


Cromo V.2 - Dança Sufi



A dança dos dervixes sufi - uma dança sagrada, circular, que pretende levar ao êxtase - tem a sua origem na Turquia, na ordem sufi dos Mevlevi. Nesta dança, reservada aos homens (apesar de na actualidade haver algumas mulheres que se «atrevem» a praticá-la, nomeadamente as bailarinas que acompanham Mercan Dede), os dançarinos giram sobre si próprios como peões, muitas vezes durante horas, apoiados no pé esquerdo enquanto o pé direito fornece subtis rotações ao resto do corpo. Muitas vezes, o dançarino cai de exaustão (ou êxtase) e inicia um processo de meditação em contacto com o chão, a Terra. Recentemente, a dança sufi serviu de inspiração ao espectáculo (e DVD de sucesso) «Dances of Ecstasy», da coreógrafa Gabrielle Roth.


Cromo V.3 - Goran Bregovic



O compositor e guitarrista Goran Bregovic (nascido a 2 de Março de 1950) é um dos maiores responsáveis pelo conhecimento no exterior da música balcânica, nomeadamente através de bandas-sonoras que compôs («O Tempo dos Ciganos», «Arizona Dream, «Underground») para filmes de Emir Kusturica, com quem depois cortou relações devido à guerra na ex-Jugoslávia. Natural de Sarajevo, Bregovic começou a sua carreira em grupos rock como os Kodeksi e os Bijelo Dugme, antes de se tornar famoso mundialmente através da música que compôs para estes e outros filmes como «Kuduz», «The Serbian Girl», «A Rainha Margot», «Tuvalu», «Toxic Affair» ou o mais recente e polémico «Borat - Cultural Learnings of America...») e de parcerias com gente como Sezen Aksu, Iggy Pop, George Dalaras, Kayah ou Cesária Évora. Ao vivo, Goran Bregovic é acompanhado pela sua Wedding and Funeral Band.


Cromo V.4 - Ladysmith Black Mambazo



O grupo coral masculino sul-africano Ladysmith Black Mambazo teve uma primeira encarnação entre 1960 e 1964, de nome Ezimnyama Ngenkani, antes de se transformar gradualmente - sempre sob a direcção do seu líder Joseph Shabalala - no mais importante colectivo de canto a capella da música zulu. No entanto, numa África do Sul sujeita ao regime racista do «apartheid», só em 1973 o grupo grava o seu primeiro álbum, «Amabutho», que atinge a marca de disco de ouro, tendo sido os primeiros artistas negros a consegui-lo no seu país-natal. Nos anos 80 chegam à fama internacional quando colaboram no álbum «Graceland», de Paul Simon, que produz de seguida três dos mais conhecidos álbuns do grupo: «Shaka Zulu» (1987), «Journey of Dreams» (1988) e «Two Worlds, One Heart» (1990). O seu álbum de 2006, «Long Walk to Freedom», inclui colaborações das Zap Mama, Melissa Etheridge, Emmylou Harris, Lucky Dube e Taj Mahal, entre outros, e o mais recente «My Dream - African Sounds» (2008) é uma colaboração entre os LBM e o coro gospel sul-africano SABC Choir.

18 novembro, 2006

«Planet Rock» - Levámos Todos Com Uma Pedra na Cabeça


Se há alguns dias falei de «Rhythms del Mundo», em que artistas e grupos de rock anglo-saxónicos se deixam «contaminar» por géneros cubanos, desta vez falo de «The Rough Guide To Planet Rock», álbum em que músicas «locais» são mergulhadas em cadinhos borbulhantes de rock e funk e psicadelismo e punk e... E o resultado destas experiências vagamente científicas - entre muitos outros, andam por aqui os Tinariwen, Albert Kuvezin & Yat-Kha (na foto), Ba Cissoko, Dengue Fever, Konono Nº1, Gogol Bordello, Etran Finatawa e os portugueses Donna Maria - é muitas vezes uma maravilha completa.


VÁRIOS
«THE ROUGH GUIDE TO PLANET ROCK»
World Music Network/Megamúsica

«Planet Rock» é mais uma excelente colectânea da série «The Rough Guide To...», desta vez compilando grupos de várias zonas do globo que partem de músicas próprias, tradicionais, para depois se lançarem de cabeça a vários géneros de rock ou de músicos rock dos mais variados países que, num momento ou noutro, descobriram ou redescobriram as suas próprias músicas tradicionais - não se sabendo muito bem qual a ordem destes factores em cada um deles - e também projectos multinacionais em que a mistura de influências se faz a partir da origem de cada um dos seus músicos. O álbum começa muito bem, com os Dengue Fever, grupo recente de Los Angeles com uma cambojana como vocalista - e a sua música parece directamente saída do «Bom-Dia Vietname», com um rock sixties, misto de garage e psicadelismo, mas cantado em... khmer - e Les Boukakes - bando de franceses, argelinos e tunisinos que misturam, em festa, guitarras em distorção com rai e gnawa. Seguem-se, muito bem, os malianos Tinariwen com a sua música tuaregue infectada por blues ácidos e os Ba Cissoko (da Guiné-Conakry), com koras electrificadas e o fantasma de Jimi Hendrix a assombrar a música mandinga. E depois, uma surpresa, os fantásticos norte-americanos Hip Hop Hoodios, que misturam hip-hop, klezmer, ritmos latino-americanos, jazz, guitarras eléctricas em voo livre etc, etc... (nos HHH juntam-se músicos dos Klezmatics, Orishas, Midnight Minyan e da banda de apoio de Carlos Santana), que colam muito bem com os Balkan Beat Box - aqui num tema que tanto deve à música cigana do centro europeu quanto ao gnawa, ao klezmer e à electrónica - e com os Yat-Kha - numa estranhíssima versão «vozes de Tuva em molho country-punk» de «In A Gadda da Vida», dos Iron Butterfly (retirada do álbum «Re-Covers», com versões de variadíssimos temas rock ocidentais visitados por Albert Kuvezin e os seus Yat-Kha). Depois, mais surpresas: os fabulosos Alms For Shanti (banda indiana que sucedeu aos Indus Creed) misturando canto konokol, gaitas em fogo, rock e breakbeats; Yela, cantora da Ilha da Reunião que junta smooth jazz a ritmos locais como o maloya; e os portugueses Donna Maria, num fado-tango-electrónica discreta (qualquer canção d'A Naifa ficaria aqui bem melhor, mas pronto...). O ritmo volta a acelerar com os Transsilvanyans, grupo berlinense em que se juntam húngaros e alemães e que parecem uma Marta Sebestyen pop acompanhada por uns Muzsikas electrificados e em alta velocidade; os Haydamaky, numa canção lindíssima que liga a tradição ucraniana ao reggae e à soul; e a maravihosa cantora palestiniana Rim Banna, num tema que parece um misto de Talking Heads, Material (de Bill Laswell) e música árabe - a banda que a acompanha, para aumentar ainda mais esta parte boa da globalização, inclui um ucraniano e alguns noruegueses. A recta final da colectânea fica reservada para os Etran Finatawa (do Niger) e a sua mistura sempre bem conseguida de música tuaregue e wodaabe com blues eléctricos; o ritmo infernal dos kissanges e tralha percutida dos congoleses Konono Nº1; e o punk ucraniano, balcânico e interventivo dos incontornáveis Gogol Bordello. «Planet Rock» é especialmente aconselhado, claro, aos amantes de rock que desconfiam de outras músicas e aos amantes de músicas tradicionais que desconfiam do rock. (9/10)

17 novembro, 2006

Katia Guerreiro e Mafalda Arnauth - O Mar...


Mafalda Arnauth (na foto em cima) e Katia Guerreiro (na foto em baixo) são duas das fadistas da, digamos, nova geração que melhor têm sabido gerir uma carreira que começou, nas duas (e em quase todas as outras fadistas da, digamos outra vez, nova geração), sob o signo de Amália Rodrigues mas que, gradualmente, estão a dar provas convincentes de que podem e sabem libertar-se desse «espectro» e também abraçar novos géneros, abordar instrumentações alternativas, cantar outros poetas e dar novas roupagens ao fado. Em Novembro do ano passado saíram os últimos álbuns das duas cantoras, altura em que esta entrevista com Katia Guerreiro foi publicada no BLITZ, assim como uma crítica conjunta aos álbuns da duas: «Tudo ou Nada», de Katia Guerreiro, e «Diário», de Mafalda Arnauth. Ambos com o mar, aqui tão perto, como mote e inspiração.


KATIA GUERREIRO
AO SERVIÇO DA POESIA

Depois de «Fado Maior» e «Nas Mãos do Fado», Katia Guerreiro dá-nos agora o seu álbum mais pessoal, «Tudo ou Nada». Aqui, o leque de poetas que canta é alargado e a fadista co-compõe algumas canções (apesar de não pretender ser compositora). Katia, na primeira pessoa.


No seu site oficial aparece logo a abrir uma frase que diz «fado puro e simples». Acha que essas duas palavras são as melhores para definir o seu trabalho? E isso tem alguma coisa a ver com o facto de, por exemplo, não usar os chamados «floreados» na voz?

E também porque sou uma pessoa simples, já não tão pura quanto gostava porque a vida obriga-nos a perder alguma dessa pureza. Mas a minha simplicidade acaba por se reflectir na minha interpretação e naquilo que canto. E tenho como bandeira a minha simplicidade interpretativa, não fazer floreados nem andar à procura de coisas para impressionar. O que pode impressionar é a palavra, e a palavra tem que ser dita de forma simples e sentida.

Como se fosse mais uma intérprete – das palavras dos outros – do que uma cantora?

Sim, sem dúvida. Estou ao serviço da palavra... e da música.

É por isso que, depois no primeiro álbum, ter interpretado essencialmente fados clássicos, no segundo ter ido à procura de alguns poetas, nomeadamente António Lobo Antunes e, no novo, interpretar Lobo Antunes, Sophia de Mello Breyner, Maria Luísa Baptista...

São poetas que me fazem sentir coisas, que me fazem sentir, muito intimamente, coisas que são normais cada um de nós sentirmos, mas que só eles sabem dizer. E a minha interpretação vai ao encontro das suas palavras. Com verdade, tristeza, alegria, cor, saudade, amor, paixão... Canto tudo isso, que é o que nós somos. Os poetas que eu canto são também os poetas que leio, que leio muito. Este álbum é dedicado a Sophia de Mello Breyner. Ela é uma poetisa que me revela em palavras aquilo que sou capaz de sentir, de ser. Tenho uma enorme saudade do ar que ela nos fazia respirar. Era uma mulher muito especial... Com o Lobo Antunes há uma empatia enorme entre nós. Gosto imenso do António: é um homem de uma sensibiliudade imensa que se revela, essencialmente, nestes poemas. Não tanto nos seus romances. A poesia é um acto de confissão: a si próprio [ao poeta] e ao mundo, num momento de grande intimidade. Quando canto, com público à minha frente, também estou a revelar-me ao mundo. Sou a portadora de todas estas palavras...

Podemos falar de alguns «objectos estranhos» do seu álbum? Por exemplo, há um tema com piano, tocado pelo Bernardo Sassetti...

A ideia inicial era convidar o Bernardo para compor e tocar no disco. Mas ele andava muito ocupado com o seu próprio álbum e não teve tempo para compor. Mas veio tocar neste tema, «Minha Senhora das Dores», que é um momento de grande intimismo, de grande privacidade, e uma guitarra, uma viola e um contrabaixo seriam excessivos. Este tema é um canto à minha mãe, pedindo-lhe desculpa e mostrando a minha gratidão. O Bernardo gravou comigo e nem ensaiámos, quase que saiu à primeira. Segui a minha intuição de que iria resultar e resultou.

Canta também um tema inédito de Dulce Pontes, «Dulce Caravela». É uma homenagem mútua, uma troca de flores entre colegas?

É muito uma troca de flores entre colegas. E que acontece porque entendo o que ela faz. Como ela se entrega daquela forma quando canta, toca, compõe. No meu álbum anterior, «Nas Mãos do Fado», eu interpretava um tema dela, «O Que For Há-de Ser», e esse foi o meu primeiro contacto com a Dulce. Houve uma empatia imediata e agora quis muito ter um tema dela porque ela tem uma forma de compor muito própria. Ela compôs este tema para mim e deu-me toda a liberdade interpretativa. Durante muito tempo o tema chamou-se «Dulce», mas acabei por lhe chamar «Dulce Caravela», que faz todo o sentido e é uma homenagem que eu lhe presto.

Se calhar o mais estranho de todos: também canta um tema de música ligeira, a «Menina do Alto da Serra». Acha que conseguiu transformá-lo num fado ou ele já tinha, à partida, algo de fadista?

Uma vez, num programa de televisão, o maestro Victorino d’Almeida disse que «tudo pode ser fado, mas o fado não pode ser tudo». E ele demonstrou, na prática, que uma melodia de fado tocada com uma intenção clássica será sempre um fado, mas qualquer peça clássica pode ser tocada como fado e passar a ser um fado. E tocou uma peça de Mozart ou de Bach de uma forma fadista, e passou a ser um fado. E tocou uma melodia de um fado, dando-lhe uma faceta clássica, que continuou a ser um fado. Quando eu canto a «Menina do Alto da Serra», sentindo-a como um fado, passou a ser um fado.

Também canta um tema do Vinicius de Moraes, «Saudades do Brasil em Portugal», que ele compôs para a Amália. É um poema extraordinário, quase pessoano...

E também é um fado. Ouvi-o cantado pela Amália e toda ela era fado. Ela transformava tudo em fado. Depois ouvi-o cantado por um brasileiro, o Zé Renato, acompanhado por guitarra portuguesa, e não deixou de ser fado. E ouvi a interpretação do próprio Vinicius. Mas quando o interpreto, a minha referência é a interpretação da Amália.

Neste novo álbum, a Katia tem dois ou três temas co-compostos por si e pelos seus músicos. A composição é, cada vez mais, um caminho necessário para si?

Não, não. De todo. Isto aconteceu espontaneamente. Não tenho qualquer pretensão de ser compositora. Nunca aconteceu e, desta vez, só acontece porque os músicos já tinham arrancado com uma melodia e, depois, a minha interpretação leva para uns caminhos ligeiramente diferentes. Não tenho nenhuma pretensão de assinar coisas – no álbum anterior tinha um poema meu e neste não aparece nenhum. E o meu nome só está na capa porque sou eu que canto. Aliás, é uma injustiça que o nome dos meus músicos – cuja presença é de tal forma forte e que são muito importantes nisto tudo – não apareça também na capa. Às vezes receio que surja um anúncio que diz «Banda de Katia Guerreiro procura vocalista» (risos)... Nós somos um bloco unido, e eles têm a liberdade de criar e de puxar por mim.

A Katia é médica de profissão. É, agora, ao fim de cinco ou seis anos de carreira musical, mais uma médica que canta fado ou uma fadista que, por acaso, tem a medicina como profissão?

Sou uma médica que se cruzou com o fado e se apaixonou pelo fado. E tenho feito um tremendo esforço para manter estas duas grandes paixões na minha vida. Têm sido cinco anos de grande luta interior, e finalmente estou a colher os frutos de todos os sacrifícios que tenho feito. Cada vez mais, as pessoas acreditam que vou continuar a ser médica e vou continuar a ser fadista. Não me vejo sem a medicina nem sem o fado. A medicina é a minha ligação àquilo que a vida é na realidade.


OS DISCOS...




KATIA GUERREIRO
«TUDO OU NADA»
Som Livre
(7/10)







MAFALDA ARNAUTH
«DIÁRIO»
Universal Music Portugal
(7/10)




Há um desejo de cosmopolitismo cada vez maior nos fadistas portugueses. E isso é bom. Descoberta, talvez, de que o fado é uma «música do mundo» (semi-piada), de que o fado pode ter muitas outras músicas a conviver consigo, ou por afinidades estilísticas ou sentimentais ou de gosto pessoal – e nós sabemos lá de onde veio o fado ou de onde vieram os fados (do norte de África?, do Brasil?, da zona mandinga da África Ocidental?, de outras zonas da Europa?, etc, etc...) -, podendo imaginar-se que o fado influenciou, ou foi influenciado – num jogo de espelhos com espelhos com espelhos... -, o tango, a milonga, o flamenco, a música árabe, a morna, o choro, a música napolitana.

Ou então, os fadistas de agora só redescobriram o que Amália fez com canções de variadíssimas proveniências – italianas, espanholas, francesas... – transformando-as em fado, fado mesmo, ou o que Carlos Paredes fez com o «Summertime», de Gershwin, subvertendo-o genialmente na «Canção Verdes Anos», ou aquilo que Carlos do Carmo pensava fazer no projecto que nunca se concretizou «Um Homem no Mundo» (e no qual repegou, em parte, no recente «Nove Fados e Uma Canção de Amor» (álbum de 2002 onde há um fado africano, «Fado Mulato», e um fado-tango, «Dois Portos»). Juntemos a isto as ousadias de Paulo Bragança em «Amai» (das quais a versão de «Sorrow’s Child», de Nick Cave, não será a menor), a intencionalidade de Rão Kyao no seu cruzamento do fado e da música do norte de África, as aventuras de Mísia, Anamar ou Cristina Branco nas fugas, deliberadas, em direcção – não todas mas cada uma por si - a tangos, boleros, mornas, rumbas e milongas, ou a canções em francês e inglês (principalmente nos últimos álbuns destas três cantoras, respectivamente, «Drama Box», «Transfado» e «Ulisses»). Como se houvesse uma certeza absoluta: que o fado não nos pertence só a nós e que nós não pertencemos só ao fado.

«Tudo ou Nada», novo álbum de Katia Guerreiro, e «Diário», novo álbum de Mafalda Arnauth, são dois discos também com um pé bem assente no fado – no caso de Katia como receptáculo e intérprete fiel das palavras e da música dos outros, no caso de Mafalda como autora de muitas das letras e compositora de muitas das músicas - e com o outro a tactear caminhos, novos em ambos os casos, em busca de cosmopolitismo. Há muito fado – se quisermos, há sempre fado – em ambos os discos. E é sempre bom. Mas também há uma busca de outras vias, digamos trans-musicais, digamos marítimas. Mafalda canta Vinicius de Moraes («O que Tinha Que Ser...», com um saxofone stangetziano), Katia também («Saudades do Brasil em Portugal», que o brasileiro compôs para Amália). Mafalda canta uma milonga («Milonga do Chiado»), «La Bohéme» de Charles Aznavour, o espantoso «Rasgo de Luz», do basco Fran Lasuen (que foi dos Oskorri) e, no final, os seus músicos tocam Paredes e Gardel e Bach e Armandinho. Katia canta acompanhada ao piano (pelos dedos mágicos do pianista de jazz Bernardo Sassetti) «Minha Senhora das Dores». E oiça-se como Katia Guerreiro canta «Dulce Caravela», inédito de Dulce Pontes, ou como Mafalda Arnauth canta «Por Onde Me Levar o Vento», e saberemos também que o fado vai, um dia, voltar ao mar, «para enfim seguir viagem».

16 novembro, 2006

Klezmatics em Celebração Retrospectiva na Culturgest


Já há algum tempo que o Crónicas da Terra, do meu camarada e amigo Luís Rei, avançou com esta notícia em primeira mão, notícia que eu pilho aqui descaradamente: os fabulosos e absolutamente imperdíveis Klezmatics regressam a Portugal no dia 24 de Janeiro para um concerto na Culturgest, em Lisboa. Com eles trazem o seu espectáculo «20 Years Live!
A Retrospective Celebration!», de canções e instrumentais klezmer - klezmer neles elevado à condição de música-esponja do swing, do ska, do punk, da música árabe, balcânica e de tudo o que lhes apareça à frente. Isto é, a música saída dos seus álbuns «Rise Up! Shetyl Oyf», «Rhythm+Jews», «Jews With Horns», «Shvaygn=Toyt» e «Possessed». O que é, sempre, uma boa notícia. Embora melhor notícia seria se esta trupe de judeus nova-iorquinos viesse apresentar o seu novo espectáculo baseado no álbum «Wonder Wheel», em que pegam em poemas inéditos de Woody Guhtrie (à semelhança do que Billy Bragg e os Wilco fizeram) e para eles compõem a música, dando assim um novo sentido às palavras de um dos pioneiros da folk de intervenção nos Estados Unidos. Talvez não fosse mesmo nada mal pensado se, no próximo ano, eles voltassem depois com o fantasma de Woody-«this machine kills fascists»-Guthrie atrás.

14 novembro, 2006

Mari Boine, Frigg, Suden Aika e Gjallarhorn - Auroras Boreais


A música folk escandinava assiste, desde há muitos anos, a uma constante renovação e reinvenção, sempre feita a partir das raízes mais profundas das suas músicas tradicionais mas sempre, também, com os olhos postos no futuro. Hedningarna, Garmarna, Vasen, Varttina e Kimmo Pohjonen são apenas alguns exemplos dessa revolução. Outros quatro nomes fundamentais - a veterana Mari Boine, os Gjallarhorn (na foto), as Suden Aika e os mais novinhos Frigg, todos com álbuns recentes - contribuem bastante para esta belíssima e eterna aurora boreal.


MARI BOINE
«IDJAGIEDAS»
Lean/Universal Music Norway

A cantora e compositora norueguesa Mari Boine é a maior embaixadora da música do povo sami, da Lapónia, levando a todo o mundo este canto ancestral, o yoik, por vezes próximo do dos índios norte-americanos e dos esquimós, e sempre, sempre, extremamente belo. Dada a conhecer noutros países da Europa e nos Estados Unidos pelo álbum «Gula Gula» (1989), editado pela Real World, a música de Mari Boine tem-se afastado, em termos de arranjos, da tradição pura e dura, nunca temendo incluir na sua música elementos do jazz, do rock ou das electrónicas. No seu novo álbum, «Idjagiedas», o seu canto parece voltar a um estado de pureza inicial (as canções foram escritas na sua maioria por Rauni Magga Lukkari e Karen Anne Buljoe, duas importantes poetisas bastante empenhadas - tal como Mari Boine - nos direitos do povo sami), mas a sua envolvência está aberta a muitas outras formas musicais: andam por aqui electrónicas mas nunca em demasia e, entre outros instrumentos, uma guitarra eléctrica nas mãos do mago do jazz Terje Rypdal, koras, darabukas e kissanges vindos de África, um cavaquinho (!) e duas vozes femininas adicionais a contribuir decisivamente para o efeito final (estas duas principalmente no estranho e lindíssimo tema bleep-hop-experimental «Uldda Nieida»). Mas todo o álbum está, sempre, num nível altíssimo. (9/10)


FRIGG
«KEIDAS»
North Side Records

Grupo instrumental em que se juntam músicos noruegueses e finlandeses, os Frigg mostram ao segundo álbum uma maturidade e um bom-gosto raramente atingíveis. Com três (por vezes quatro) violinos incendiários, o septeto parte da música tradicional da Kaustinen (na Finlândia) e Nord-Trondelag (Noruega) para se atirar a polskas, valsas e outras danças tradicionais, adicionando-lhes pitadas de jazz, country, música do Québec e folk de inspiração «céltica», com a ajuda dos violinos e de outros instrumentos como bandolim, contrabaixo, bouzouki, nickelharpa, viola d'arco, saltério, guitarra, órgão de igreja, algumas percussões e uma gaita-de-foles no último tema. Sempre com uma alegria, um saber e um sentido de divertimento enormes (a que também não falta bastante sentido de humor: o tema-título «Keidas», que significa «oásis», tem como comentário «don't look back in Tanger», trocadilho com o famoso tema dos... Oasis). E sempre, também, com um apuramento técnico ao alcance de pouquíssimos músicos - a conferir, por exemplo, na velocidade estonteante de «Fantomen» ou «Solberg» -, fruto dos seus estudos na respeitadíssima Academia Sibelius e junto de Mauno Jarvela, dos JPP, pai de dois dos membros dos Frigg. (8/10)


GJALLARHORN
«RIMFAXE»
Vindauga Music/Westpark Music

Finlandeses - mas com as canções a serem interpretadas em sueco -, os Gjallarhorn são, cada vez mais, o projecto pessoalíssimo da fabulosa cantora (e flautista) Jenny Wilhelms. Neste quarto álbum, «Rimfaxe», quase todos os músicos, à excepção, claro, de Jenny, têm pouco tempo de grupo - até Tommy Mansikka-Aho, que com o seu didgeridoo dava os drones mágicos de muita da música dos Gjallarhorn, foi recentemente substituído por Goran Manssonjoined num estranho, mas por vezes com um efeito próximo do didgeridoo, «sub contrabass recorder». Mas isso não impede que a música dos Gjallarhorn - quarteto que é completado por Adrian Jones (violino e bandola) e Petter Berndalen (percussões) - continue a ser uma maravilha onde vale quase tudo e tudo é bem-vindo. Da pop do tema-título às recriações da música tradicional sueca (ou nascida na região da Finlândia em que o sueco é a língua dominante) à maneira dos Hedningarna (como no segundo tema, «Kokkovirsi»), de uma folk que evoca Sandy Denny e os Fairport Convention em «Systrarna» ao rock progressivo de «Blacken», do encantamento hipnótico de «Hymn» à beleza pura de ««Norafjelds», do estranhíssimo mas vibrante «aboio» de «iVall» à música irlandesa em «Graning» (cantada por Jenny em gaélico)... Muitos dos temas do álbum vêm directamente da Idade Média mas, através dos Gjallarhorn, já estão num futuro qualquer. (9/10)


SUDEN AIKA
«UNTA»
Zen Master/Rockadillo Records

Ouvir «Unta», das Suden Aika, é ouvir um rio que corre e salta sem parar, quatro sereias a tirar férias das coisas más que as sereias fazem usualmente, o som de mil pássaros escondidos numa floresta cerrada estranhamente cheia de sol, o reflexo de raios estelares a baterem num vitral com imagens rendilhadas de cavaleiros heróicos, sangrentos e galãs, runas decifradas em canto gregoriano... As finlandesas Suden Aika são quatro cantoras - Tellu Turkka (ela que já foi Tellu Virkkala, quando cantava nos suecos Hedningarna; também em moraharpa, sanfona, saltério, oud e percussões), Liisa Matveinen (que substituiu Tellu nos Hedningarna e que com ela - depois do regresso de Tellu ao grupo sueco - protagonizou duelos vocais inesquecíveis; também em saltério), Nora Vaura (também em flauta) e Katariina Airas. «Unta» é o terceiro álbum das Suden Aika, grupo que se formou a partir do álbum a solo com o mesmo nome que Tellu protagonizou depois da sua saída (e antes do seu regresso, depois seguido por nova saída...) dos Hedningarna, álbum em que Liisa Matveinen já colaborava e que marcou o início de uma profícua colaboração entre as duas: os «duelos» nos Hedningarna e a composição repartida pelas duas dos temas das Suden Aika. E «Unta», apesar de ter alguns momentos fracos, é na sua maior parte de uma beleza única, frágil e incisiva. (7/10)

Hélder Moutinho - Um Canto Amaldiçoado



Se há alguém que transporta a alma do fado no masculino (não confundir, nunca!, com fado «macho» ou «marialva» ou «arruaceiro»), esse alguém é Hélder Moutinho. Diferente de Camané - o seu irmão mais conhecido... -, que é de todos os actuais fadistas o que melhor faz a síntese de um fado que é de homens e mulheres, do passado e do futuro, do negro e da luz, Hélder Moutinho parece muitas vezes a reencarnação perfeita e reactualizada de fadistas como Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Manuel de Almeida e até Max. Todos num só, agora. Uma vez escrevi que «com Hélder Moutinho há groove e malandrice, há uma onda que se apodera dos corpos e apetece dançar-se o fado». Dia 30 de Novembro, no Teatro da Trindade, em Lisboa, no seu novo espectáculo, «Maldito Fado», pode esperar-se isso e muito mais...

«Maldito Fado» é apresentado como «uma viagem sonora tomando o fado como base musical, mas envolvendo-o noutras estéticas, com o atrevimento de trazer novos sons ao seu som e ao seu ser» e onde se percorre «através de clássicos da história do fado aliados a composições originais escritas propositadamente para este espectáculo, todos os temas centrais à linguagem do fado; os castiços e típicos bairros de Lisboa, os amores e desamores que contam as suas histórias, as emoções de saudade e tristeza, a difícil condição do fadista». O espectáculo tem direcção musical e arranjos de Manuel d'Oliveira, guitarrista que lançou recentemente o álbum ao vivo «Amarte», onde continua a juntar ao fado e à música tradicional portuguesa elementos como o flamenco, a música árabe, o jazz e a música erudita - elementos que podem eventualmente lançar alguma luz sobre este espectáculo de Hélder Moutinho. Em «Maldito Fado» podem ouvir-se, para além da voz de Hélder Moutinho e da guitarra clássica de Manuel d'Oliveira, músicos vindos da esfera do fado, sim - Ricardo Parreira (guitarra portuguesa), Diogo Clemente (viola) e o agora usual contrabaixo nas mãos de João Penedo - mas também um acordeão tocado por Pedro Santos e percussões tocadas por Quiné. Mais sobre Hélder Moutinho aqui.

13 novembro, 2006

Cromos Raízes e Antenas IV



Este blog continua hoje a publicação da série «Cromos Raízes e Antenas», constituída por pequenas fichas sobre artistas, grupos, personagens (míticas ou reais), géneros, instrumentos musicais, editoras discográficas, divulgadores, filmes... Tudo isto sem ordem cronológica nem alfabética nem enciclopédica nem com hierarquia de importância nem sujeita a qualquer tipo de actualidade. É vagamente aleatória, randomizada, livre, à vontade do freguês (ou dos fregueses: os leitores deste blog estão todos convidados a enviar sugestões ou, melhor ainda!, as fichas completas de cromos para o espaço de comentários ou para o e-mail pires.ant@gmail.com - a «gerência» agradece; assim como agradece que venham daí acrescentos e correcções às várias entradas). As «carteirinhas» de cromos incluem sempre quatro exemplares, numerados e... coleccionáveis ;)


Cromo IV.1 - Nusrat Fateh Ali Khan



O cantor paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan (nascido a 13 de Outubro de 1948, em Faisalabad, Paquistão; falecido a 16 de Agosto de 1997, em Londres, Inglaterra) foi o maior embaixador do qawwali, o canto sagrado dos sufis (um dos ramos do islamismo). Amado no seu país natal e no Ocidente (onde colaborou com gente como Peter Gabriel, Michael Brook ou Eddie Vedder, dos Pearl Jam, para além de ter sido homenageado por Jeff Buckley, no álbum «Live at Sin-é», em que se ouve Buckley dizer «Nusrat é o meu Elvis»), era também muitíssimo admirado na Índia - país «inimigo» do Paquistão -, onde fez duetos com vedetas de Bollywood como Asha Bhosle. Com uma voz potente, incrivelmente bem timbrada e inimitável, Nusrat foi o continuador - apesar de ter dado passos decisivos para a renovação do género - de uma tradição musical que, na sua família, remonta a seis séculos de interpretação de qawwali, seguindo as pisadas do pai, o também respeitadíssimo cantor Ustad Fateh Ali Khan. Deixou inúmeros continuadores, nomeadamente os seus sobrinhos agrupados no Rizwan-Muazzam Qawwali.


Cromo IV.2 - Djembé



O djembé é, provavelmente, um dos mais antigos instrumentos de percussão da humanidade. Com um corpo oco de madeira e coberto por uma pele de bovídeo,, o djembé desenvolveu-se na região ocidental de África, sendo um dos instrumentos mais importantes da música mandinga (juntamente com a kora, o balafon e o n'goni) e, desde há algumas décadas, um instrumento emblemático de toda a música africana em geral e de muita «world music» exterior a África, jazz e até algum rock. A sua invenção é atribuída a antiquíssimos artesãos mandingas (os «numus»), que teriam difundido o djembé por toda a África Ocidental durante o primeiro milénio antes de Cristo. Uma lenda comum a vários povos refere que o djembé contém três almas: a da árvore que cedeu a madeira, a do animal que cedeu a pele e a do homem que o fabricou. Alguns intérpretes importantes de djembé: Mamady Keita, Thione Diop, Abdoulaye Diakite, Babatunde Olatunji e Famoudou Konaté. E um filme que lhe presta justiça: «O Visitante», realizado por Thomas McCarthy.


Cromo IV.3 - Carlos Paredes



Génio absoluto da guitarra portuguesa, Carlos Paredes (nascido em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925; falecido em Lisboa a 23 de Julho de 2004) foi o maior responsável pela emancipação deste instrumento e pela percepção de que a guitarra não tem que ser necessariamente o humilde acompanhante dos cantores de fado. Apesar de antes dele já ter havido, em Lisboa e em Coimbra - onde o pai de Carlos, Artur Paredes, foi um dos pioneiros da autonomização da guitarra portuguesa -, outros músicos a fazer o mesmo movimento, foi Carlos Paredes que deu à guitarra portuguesa uma voz própria, brilhante, inventiva, a um mesmo tempo terna, mágica e revoltada. E apesar de ter gravado com outros músicos (de Charlie Haden a António Victorino d'Almeida e os Madredeus) era sempre sozinho, ou com os seus companheiros mais íntimos, como Fernando Alvim ou Luísa Amaro (a discípula e companheira que agora transporta e reinventa muito do seu legado) que se sentia melhor. Álbuns aconselhados: «Guitarra Portuguesa», «Movimento Perpétuo» e «Espelho de Sons».


Cromo IV.4 - Firewater



Liderados por Tod A. (Tod Ashley, ex-Cop Shoot Cop), os Firewater formaram-se em 1995 e deram um abanão na cena musical nova-iorquina ao destilarem uma música negra e sombria, mas a espaços iluminada - e com que luz! - por sonoridades geralmente estranhas ao rock como a música de cabaret, de circo e de strip-tease, jazz, klezmer, mariachis e blues sangrentos. Com Nick Cave, Tom Waits, Henry Mancini, Lee Hazlewood e Johnny Cash como referências maiores, os Firewater lançaram alguns álbuns - «Get Off The Cross (We Need The Wood For The Fire)», «The Ponzi Scheme», «Psychopharmacology», «The Man on the Burning Tightrope» e «Songs We Should Have Written» -, antes de Tod A. ter partido para a Índia, alegadamente por já não suportar viver no país liderado por George W Bush. O último álbum da banda, «The Golden Hour» (2008), mostra-a num pico de forma absoluto!

11 novembro, 2006

José Mário Branco - As Cantigas São Muitas Armas


Se há alguns, poucos, génios na música portuguesa, José Mário Branco é um deles. Pelos poemas que canta, pela música que faz e sempre fez, pela intenção com que escreve e canta e faz música, pela coragem de nunca, jamais, ter tido medo de dizer e fazer e cantar o que muito bem entende. Aqui recupero duas entrevistas com José Mário Branco publicadas originalmente no BLITZ, uma feita para a secção «52 Personalidades da Música Portuguesa» (de Dezembro de 2004), outra a propósito do seu último álbum, «Resistir É Vencer» (de Maio do mesmo ano). A foto que acompanha este post é de Lia Costa Carvalho - cujo excelente blog pode ser visitado aqui e a quem agradeço a sua cedência.

52 PERSONALIDADES
JOSÉ MÁRIO BRANCO

José Mário Monteiro Guedes Branco nasce a 25 de Maio de 1942 no Porto. A sua relação mais activa com a música começa em meados dos anos 60, em Paris, cidade onde se exilou para fugir à guerra colonial. Elege os álbuns «Fura Fura», de José Afonso, e «Crónicas da Terra Ardente», de Fausto, como marcos incontornáveis das últimas duas décadas (e meia, já que o álbum de José Afonso é anterior a 1984). E o filme «O Padrinho», de Francis Ford Coppola, o livro «Narciso e Goldmundo», de Herman Hesse, e a pintura de Edward Hopper como obras marcantes para a sua vida.

Ao contrário do que costuma ser normal nestas entrevistas, a conversa com José Mário Branco começa de olhos postos no futuro. Neste momento, José Mário Branco está empenhado na organização de uma audiência, dia 20 de Março, em Lisboa, do Tribunal Mundial sobre o Iraque, um tribunal de opinião que - na linha do Tribunal Russell, reunido em Estocolmo em 1967 a propósito da Guerra do Vietname - se propõe julgar os crimes de guerra dos governos americano, inglês (e, neste caso, português) no Iraque, para além de também apontar o dedo a empresas e à comunicação social, que, segundo José Mário Branco, tem «envolvido a guerra no Iraque numa teia de mentiras». E em dois concertos de apoio ao Tribunal - Concerto à Memória de Cem Mil Mortos -, no início de Março, em Lisboa e Porto, para os quais estão confirmados, para já, Sérgio Godinho, Fausto, Pedro Abrunhosa e Camané.

E isto é importante, porque a vida artística de José Mário Branco nunca esteve desligada do seu lado interventivo, político, actuante. «É uma coisa de geração. A resistência dos povos da União Soviética ao nazismo alemão provocou na Europa uma viragem à esquerda. E há toda uma linha de gente da cultura e das artes que se manifestou das mais variadas formas e que nos formou, à minha geração, em que não se pode separar a questão estética da questão ética: um artista é uma pessoa que cria a partir de um determinado conceito estético mas a que está indissoluvelmente ligado também um conceito ético». Atrevo-me a perguntar-lhe se alguma vez faz música apenas para o seu umbigo, por prazer, sem pensar na sua «função». E ele responde: «Esse sentido da função social do artista não é de forma nenhuma incompatível com o grande prazer, nem sequer com a liberdade, de criar. Não funciona como condicionamento da criação artística; funciona como a atmosfera em que ela nasce e cresce. Não existe qualquer contradição entre esses dois termos».

José Mário Branco começa por escrever canções em francês, mas em 1969 começa a compor em português. Nesse mesmo ano edita «Seis Cantigas de Amigo», um EP com poemas de autores medievais portugueses musicados por ele. O EP foi lançado pela editora de Michel Giacometti, Arquivos Sonoros Portugueses. Um ano depois sai o single «Ronda do Soldadinho», em edição de autor e com o disco a ser financiado pelo sistema de pré-venda. Por essa altura, José Mário Branco e Sérgio Godinho - com quem colaborou assiduamente nesses primeiros anos de carreira dos dois - tocavam muitas vezes ao vivo para as comunidades de emigrantes e exilados portugueses e para os públicos autóctones em França, Alemanha, Suiça, Reino Unido e os países do Benelux e da Escandinávia. «Éramos pessoas formadas para resistir contra o fascismo em Portugal e contra a guerra colonial. Eu, o Sérgio, o Tino Flores, o Luís Cília, que vivíamos no estrangeiro, ou cantores que viviam em Portugal e que iam lá fora, como o Zeca Afonso, o Fanhais, o Vitorino... E só em França havia 800 mil portugueses, dos quais dez por cento eram desertores à tropa e à guerra».

Em 1971, a Sassetti edita o primeiro álbum de José Mário Branco, «Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades», que ficaria como um marco importantíssimo da música portuguesa. A propósito do lançamento deste LP, José Mário conta que foi também por causa dele que passou a existir censura prévia aos discos. Antes, os censores deixavam sair os discos e depois retiravam-nos do mercado ou, na rádio, mutilavam-nos, riscando no vinil as faixas que consideravam subversivas ou destruindo completamente os discos: «A Sassetti lançou o meu primeiro álbum e o primeiro EP de Sérgio Godinho, "Romance de Um Dia na Estrada", numa sessão com público no antigo Cinema Roma (agora Fórum Lisboa), com comentários canção a canção do José Duarte e uma entrevista que o Adelino Gomes nos foi fazer a Paris. E tudo isto foi transmitido em directo pela rádio. A Censura foi apanhada de surpresa e foi por causa disso que começou a haver censura prévia aos conteúdos, em que as editoras discográficas enviavam os poemas das canções a editar». Só depois os censores davam ou não o seu aval à publicação das canções. Ainda antes da revolução de 1974, José Mário faz arranjos e/ou produz discos de José Afonso («Cantigas do Maio» e «Venham Mais Cinco») e de José Jorge Letria, e edita o seu segundo LP («Margem de Certa Maneira», 1972).

Imediatamente a seguir à revolução regressa a Portugal, onde funda no dia 1 de Maio de 1974 o GAC - Grupo de Acção Cultural «Vozes na Luta», com quem protagoniza um espantoso trabalho de reformulação da música tradicional portuguesa - embora a maioria dos temas fossem originais de José Mário (e depois também de João Lóio), a base musical estava muito próxima da música tradicional enquanto os poemas eram retratos interventivos da situação política e social no nosso país. No GAC, José Mário colabora em dois álbuns, «A Cantiga é Uma Arma» (1975) e «Pois Canté!!» (1976). «Empenhei-me politicamente [o GAC estava ligado à UDP] e artisticamente nesse grupo de agit-prop que, numa primeira fase, foi um aglomerado de individualidades mas que depois se tornou num coisa mais colectiva e participativa com a entrada de dezenas de pessoas mais jovens que vieram do Coro da Juventude Musical Portuguesa. O GAC chegou a ter mais de 60 elementos. Encarou a música em estreita relação com a nossa música tradicional rural e com as lutas sociais que estavam a acontecer».

Depois da sua experiência no GAC, José Mário regressa a uma paixão antiga, que já lhe vinha dos tempos em que fazia teatro em Paris: entra para a Comuna, onde faz canções para a peça «A Mãe», de Brecht (que daria origem ao disco homónimo). Mas ao fim de algum tempo, sai da Comuna juntamente com Manuela de Freitas (sua mulher), com quem fundaria o Teatro do Mundo, grupo que existiria durante oito anos, apesar de nunca ter tido uma «sala própria». E no final dos anos 70 faz música para filmes («Confederação», «O Ladrão do Pão», «Gente do Norte»). E é com o Teatro do Mundo que produz, no Teatro Aberto, os espectáculos que dariam origem ao álbum «Ser Solidário» e ao máxi-single «FMI» (ambos editados em 1982). E apesar do álbum ser espantoso (incluindo um inesperado êxito de rádio, «Qual é a Tua, ó Meu?», e as primeiras incursões de José Mário pelo fado), é «FMI» que fica na memória da maioria das pessoas, principalmente de quem teve a sorte de assisitir à sua apresentação ao vivo nesses espectáculos. «O "FMI" é muito mais teatro do que outra coisa qualquer. É um monólogo cadenciado, ritmado... Há quem diga que foi o primeiro rap português. Vem na tradição do teatro alemão, de Bertolt Brecht e Helene Weigel. Não fazia o "FMI" todas as noites. Só fazia quando estava naquele estado e quando o próprio público também estava naquele estado». E apesar da sua relação com o teatro já vir detrás, José Mário reconhece que é por essa altura que começa a incluir uma maior carga de «interpretação» nos seus concertos, «essa visão do teatro como acto de presença, de verdade, de despojamento face ao público, que não tem nada a ver com exibicionismo; é o reverso do exibicionismo».

Em 1984, ano de nascimento do BLITZ, José Mário estava a trabalhar activamente na UPAV, União Portuguesa de Artistas de Variedades, cooperativa a que também pertenciam artistas tão variados quanto Rodrigo, Duo Ouro Negro, Carlos do Carmo, Alexandra, Paulo de Carvalho, Amélia Muge ou Maria Guinot. E «foi um acto de resistência frentista, amplo e recuado de um grupo de artistas em defesa da indústria da música portuguesa e numa época em que a quota de mercado da música portuguesa baixa de 65 por cento para 8 por cento. E que também tem a ver com uma época horrível, os anos 80 - com o Reagan, a Thatcher, o Cavaco, o neo-liberalismo, o pós-modernismo... essa "noite" de que falo no meu disco "A Noite" (1985)». A UPAV edita, até ao seu final, em princípio dos anos 90, muitos discos destes e de outros artistas, incluindo dois de José Mário («A Noite» e «Correspondências», este de 1991).

Na última década e meia, José Mário editou o álbum «Ao Vivo» em 1997, o «best of» «Canções Escolhidas» (1999) e, já este ano, o disco de originais «Resistir É Vencer» - fortemente marcado e influenciado, diz, pela sua viagem a Timor-Leste. Fez música para cinema e para teatro (alguns dos temas do novo álbum foram «repescados» da banda-sonora da peça «Gulliver»), produziu discos de vários artistas (Camané, Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge, Canto Nono), esteve durante três anos envolvido no projecto «Maio Maduro Maio», em que, juntamente com Amélia Muge e João Afonso, homenageava José Afonso. Mas há uma outra razão para ter editado tão pouco em nome próprio: «O facto de ter feito poucos discos próprios nos últimos anos tem a ver com um aspecto que está presente na minha obra desde o princípio, que é uma profunda ligação da questão do som com a questão do teatro, isto é, da presença. Ao gravar estamos a mediatizar e ao mediatizar estamos a criar uma barreira entre a nossa emoção e a eventual emoção do público. E tento sempre que, nos discos, soe "ao vivo"».

No futuro próximo, e para além da sua actividade política, José Mário vai apresentar recitais a solo em que inclui temas do novo álbum (excepto os que exigem a presença de coros e de grandes massas orquestrais) e está a preparar um espectáculo especial em que apresentará temas instrumentais e canções que compôs para cinema (desde os temas dos filmes dos anos 70 até temas para filmes mais recentes como «Agosto», de Jorge Silva Melo, ou «O Rio do Ouro», de Paulo Rocha).


JOSÉ MÁRIO BRANCO
UM AMOR GIGANTE

O que ele andou para aqui chegar... 13 anos depois de «Correspondências» chega uma nova carta há muito aguardada. O envelope é vermelho e o selo ainda está colado à esquerda. Parece coisa do passado, mas não é. Porque «resistir» é já «vencer» e ainda há um amor gigante na sua vida: a música (e todas as palavras que ele quer lá dentro).

A primeira pergunta é inevitável: porquê uma espera tão grande por um novo álbum de originais [o novo «Resistir É Vencer»] de José Mário Branco?...

Nunca estive parado. Estou sempre a fazer coisas de que gosto imenso e que não se traduzem necessariamente em discos: música para teatro, música para cinema; canções feitas para outros cantarem, para além de produções e direcções de álbuns de artistas com que me identifico e me apaixonam mesmo. E isso alia-se a outro factor e que tem sido uma constante ao longo destes 30 anos: os discos, quando saem, têm que ser frutos amadurecidos que têm o seu tempo de gestação próprio. Não são discos de canções, apesar de terem canções: são discos que obedecem a um conceito-base, como um romance com vários capítulos...

No novo disco ouvem-se muitas canções recuperadas de peças de teatro - como «Gulliver» (oito) e «A Morte do Palhaço» (uma). Como é que estas e as outras canções, mais recentes, «encaixaram» nesse conceito que procurava?

Quando faço um disco quero saber em que estado é que eu estou: como é que me sinto, como é que está o mundo, como é que estão as pessoas, a vida. Tenho sempre uma «pastinha» de canções para fazer e uma auto-encomenda de temas que têm que ver com a actualidade: tenho que fazer uma canção sobre «isto». Um exemplo disso, no novo álbum, é a «Canção dos Despedidos», que foi provocada por notícias de telejornais: ver aquelas mulheres do norte, de 50 e tal anos, despedidas das fábricas de têxteis e calçado, a perguntar «e agora o que é que faço?». E isto porque uns senhores quaisquer que ninguém sabe quem são decidiram que, se mudassem a fábrica para Marrocos, poupavam cinco tostões. E isto porque a função social das empresas foi deitada ao lixo...

Essa letra poderia fazer parte do reportório de uma banda punk... e lembrou-me as manifestações anti-globalização um pouco por todo o mundo...

Essas manifestações anti-globalização, em Seattle, em Génova (...), são espontâneas, desorganizadas, e assistiu-se a algum desvario... e depois pagam, como se diz, os justos pelos pecadores, porque estavam lá centenas de milhar de pessoas a manifestar-se pacificamente. E isso exprime uma revolta, e chamo-lhe revolta porque é um sentimento de indignação perante uma situação sem, forçosamente, ter uma solução. E não perdem legitimidade por isso. Essa canção pode, efectivamente, lembrar determinadas formas de protesto - prefiro a palavra «protesto» à palavra «intervenção», no sentido da «canção de protesto» dos anos 60, com o Bob Dylan, o Woody Guthrie, o Pete Seeger...

O álbum chama-se «Resistir É Vencer», uma frase inspirada na resistência timorense. Como é que se consegue, ainda, resistir noutros lados? Em Portugal? Na Europa? No Mundo?

É preciso ver que esse lema não significa «se tu resistires tu vais vencer» mas sim «resistir é já uma vitória». E resistir a quê? Resistir ao inimigo, aos imensos «muros de Berlim» que ainda aí continuam, aos obstáculos que nos aparecem no caminho, mas também resistir aos muros e obstáculos que estão dentro de nós. É uma referência à nossa luta contra os nossos próprios limites. E isso é muito palpável em qualquer criação artística, nomeadamente na música: o compositor é aquele que ouve a música antes dos outros; é a luta contra o silêncio, é organizar os sons desorganizados que estão dentro da nossa cabeça e depois transmiti-los aos outros. Porque é que ainda canto estas canções?... Vivo bem, tenho uma boa casa, tenho um carro à porta, o frigorífico cheio de comida, de que é que me queixo?... Queixo-me porque percebi que ser de esquerda é não conseguir viver bem com a dor dos outros. É não conseguir ser feliz. Porque acordo, olho para o espelho e o que vejo é uma pessoa dorida com a dor...

É como que uma passagem definitiva do «ser solitário» para o «ser solidário» de que falava no seu disco de início dos anos 80...

Sim, a minha zanga com o mundo é agora muito mais concreta, mais palpável: as notícias dos despedimentos, as notícias das guerras...

Na sua canção «Poder» tem um pequeniníssimo momento em que a banda toca o hino dos Estados Unidos. Aquilo não está ali por acaso...

É claro que não. A letra dessa canção é sarcástica, caricatural, fala do Poder e de um «herói», mas de um herói arquetípico, de pessoas que assim se exibem no nosso mundo, sejam o George W. Bush ou o Bin Laden, que está do outro lado ou do mesmo lado, sejam os heróis fabricados de Hollywood ou o Nun'Álvares Pereira... Mas essa canção fala do Poder também por causa das desilusões que nós tivemos sempre que a Esquerda chegou ao Poder, da perversão da Esquerda quando Poder. Eu que venho de uma juventude iluminada por valores de solidariedade, amor, generosidade, radicalidade - que foram ensinados na origem pela história de Cristo, mais do que por Marx -, e essa radicalidade confronta-se com uma questão: como é que coisas tão belas na sua origem dão origem às maiores perversões? Como é que foi possível uma coisa tão espantosa como a revolução soviética transformar-se, em cinco anos, num pesadelo? Ou como é que a igreja católica dá origem à Inquisição?...

Na canção «Onofre» defende, digamos assim, que uma das formas de resistência que nós ainda possuímos é desligar o botão da televisão (pôr o «on» em «off», trocadilho de «Onofre»). Mas já referiu, nesta conversa, que escreveu a «Canção dos Despedidos» depois de ter visto uma notícia na televisão...

Essa canção exprime aquilo a que chamaria a «tentação esquizóide». Entender a resistência como um fechamento pessoal sobre si próprio, zangar-me com o mundo e, então, correr a cortina e isolar-me do mundo. O isolamento da vida real, que às vezes é tão feia e tão agressiva - e a mediocridade é a coisa mais agressiva que existe. É um isolamento de ouriço-cacheiro, de deixar os picos de fora para evitar mais agressões... E chama a atenção para a responsabilidade dos meios de comunicação, sobretudo das televisões, que são os mais poderosos de todos e têm um poder que não é democrático. É o segundo maior poder do mundo, depois do militar, porque condiciona as consciências. E está entregue a mãos privadas... Na sua origem não está nenhum voto expresso, democrático, das pessoas. Não temos possibilidade de escolha... Mas essa canção diz: «lembra-te que não és obrigado a comer merda se a puserem à tua frente».

A inclusão da canção «Onofre» evitou, de alguma maneira, a inclusão neste álbum da canção «Menina dos Meus Olhos», que também fala da televisão?

A «Menina dos Meus Olhos» é mais demonstrativa, mais explicativa, mais sarcástica. A «Onofre» é mais zangada, mais directa... É curioso que a música do «Onofre» é das mais antigas que eu fiz, ainda em França, há 30 anos, e fui recuperá-la agora, com outra letra.

Quem são os anões de que fala a canção «O Papão do Anão»?

Atenção que os anões da canção não são pessoas baixas mas sim «anões da alma». E de uma coisa que já se viu muito em Portugal, nomeadamente durante o cavaquismo, que é: progredir, vencer por cima dos cadáveres dos outros. E daquela tendência que há nas pessoas pequenas de alma que é: já que não conseguimos ser grandes, então vamos ser todos pequenos, vamos ser todos anões.

Neste álbum colaboraram outros dois nomes maiores da música portuguesa: Fausto e Sérgio Godinho. Revê-se nessa «irmandade»?... E em que pé é que está a ideia de fazer um espectáculo conjunto dos três?

Para já é só ainda um projecto. Cada um de nós tem a sua carreira, os seus espectáculos, os seus compromissos... Mas é daquelas coisas que, como se costuma dizer, não gostaria de morrer sem que esse espectáculo conjunto acontecesse. Mas um espectáculo em que fizéssemos músicas originais, não seria um espectáculo do género: «olha ali aqueles três velhinhos a olhar para o passado». Mas há uma questão óbvia de geração e de referência: de uma ou de outra forma somos os três originários da mesma semente que foi o Zeca Afonso... «Pão-Pão» é uma canção bastante à maneira do Sérgio e, no caso do Fausto, é ainda mais evidente: fiz aquela canção a pensar no Fausto, aquela falsa chula, aquele balanço, o estilo... e convidei-o a vir cantar uma parte da letra.

A faixa escondida do álbum - um pequeno poema de Sophia de Mello Breyner Andresen - faz-me pensar, talvez pela maneira como o diz, num mini-mini-mini-«FMI»...

Sim, porque os grandes poetas têm essa capacidade de em poucas palavras dizer tudo. E esse poema da Sophia, que é o primeiro poema do seu primeiro livro, consegue sintetizar uma vida em cinco linhas... Sou muito marcado pelos grandes poetas portugueses, tenho uma relação quotidiana com a Sophia, o Antero de Quental, o Ruy Belo, o Fernando Pessoa, o Camões... E não só portugueses.

Mais do que com os músicos ou compositores?... Neste álbum tem uma canção, «Amor Gigante», em que cita compositores clássicos como Shostakovitch, Prokofiev, Debussy e Ravel. E a música erudita também está muito presente no resto do álbum...

Essa canção foi feita para o «Gulliver», e entra numa parte da peça em que o Gulliver, depois de ter deixado o país dos anões, chega ao país dos gigantes e é ele o anão. Ele apaixona-se por uma menina gigante e há um desfasamento físico entre eles que torna impossível aquele amor. E é como eu me sinto em relação à música: eu sou pequenino e a música é gigante. É por isso que aparecem, na canção, citações desses compositores, de peças para quartetos de cordas, exactamente para ilustrar como sou pequenino junto desses gigantes. Dentro da música erudita, as composições para quartetos de cordas são as minhas preferidas, porque geralmente são as mais perfeitas, mais buriladas... Para a gravação deste álbum, tive a sorte de ter um sobrinho [Luís Morais] a estudar violino em Viena, e foi com um quarteto de cordas de que ele faz parte que gravei parte do álbum.

Nos últimos anos trabalhou (compôs, gravou ou produziu) com Camané, Amélia Muge, Gaiteiros de Lisboa, Canto Nono... Até, recentemente, colaborou com um grupo punk, os Peste & Sida, numa versão de «Década de Salomé», de José Afonso... Há ideias para o que vem a seguir ou vai concentrar-se apenas na transposição para concerto deste novo álbum?

Sim, e todos esses trabalhos me deram muito prazer. Os Peste & Sida, por exemplo, convidaram-me para pôr voz e eu fui lá ao estúdio, com o maior prazer. E o Canto Nono tem feito um trabalho espantoso - e ganhou agora um prémio [o prémio da Contemporary A Capella Society] nos Estados Unidos, em que competiram com grupos profissionais americanos, ingleses, alemães... Também colaborei na gravação de um disco de um coro infantil do Porto, disciplinadíssimo, afinadíssimo, Os Gambozinos, que entram agora no meu disco e nos meus concertos... Mas não, neste momento não tenho projectos paralelos: agora [passados os espectáculos especiais em Lisboa e no Porto] vou trabalhar na transposição para um grupo pequeno das canções deste disco e, depois, nesse espectáculo conjunto com o Sérgio Godinho e o Fausto.