28 março, 2007

Carminho - Um Segredo



Numa era de youtubes, myspaces, mp3s de mão em mão e CDs gravados baratinhos, ainda há quem se resguarde do grande público e se guarde para um futuro qualquer. A fadista Carminho (na foto, de Margarida Martins) é um desses casos raros. Assim como rara é a sua voz. Não que o segredo seja absoluto: ganhou vários prémios no circuito fadista, actuava regularmente no restaurante Mesa de Frades - para onde arrastava os seus fãs, já muitos -, vai dar-se a mostrar em «Fados», de Carlos Saura, mas os discos, esses, ficam guardados para mais tarde. Para já, Carminho está algures no Oriente. Esta entrevista - que está por estes dias a aparecer também, numa versão mais curta, na revista alemã «Mini International» dedicada a Lisboa (assim como o meu texto já publicado neste blog dedicado à música africana e brasileira em Lisboa) - foi feita antes da grande viagem.


CARMINHO
O FADO COMO VERDADE

Carminho abre a boca para cantar e sente-se que aquele fado é verdadeiro, vindo do fundo do tempo e do fundo da alma. Ela canta no restaurante Mesa de Frades, antiga capela em Alfama, um dos bairros populares de Lisboa em que o fado terá nascido no Séc. XIX. E, apesar de ter apenas 22 anos, Carminho parece transportar na sua voz - quente, bem timbrada, versátil, levemente rouca - todo o peso de uma antiga tradição. Ainda sem discos gravados - e a poucas semanas de começar uma viagem à volta do mundo inserida em organizações de ajuda humanitária -, Carminho (Carmo Rebelo de Andrade) dar-se-á primeiro a conhecer internacionalmente no filme «Fados», de Carlos Saura. Uma revelação.

O que é que leva uma jovem lisboeta a enveredar por uma forma de arte tão antiga como o fado?

O fado sempre esteve muito presente na minha vida. É uma tradição familiar. A minha mãe, Teresa Siqueira, foi fadista. Se calhar, se isso não tivesse acontecido não teria vindo para o fado. Na minha família sempre se ouviu muito fado, cantava-se o fado, ia-se ver o fado. O fado não é uma música fácil e tive que exercitar o ouvido para o conseguir compreender, o que foi facilitado pelo facto de ter crescida na família em que cresci.

Também tiveste contacto directo com outros fadistas...

Sim, mas não tantos quanto gostaria. Muitos deles conheço-os apenas de discos, não de os ver ao vivo. Porque durante muitos anos estive a viver no Algarve e não estava tanto em contacto directo com o meio do fado... E ia ouvindo a Amália Rodrigues, o Fernando Maurício, a Lucília do Carmo através de discos...

O que é que o fado te transmite em termos emocionais, em termos sentimentais, em termos pessoais?

O fado tem sempre que ser verdadeiro. O fado é feito de poemas musicados e quando cantamos um fado temos que o cantar como se aquela vez fosse a última. E cada fadista vai buscar a si próprio a sua maneira de reviver, outra vez, aquilo que as palavras dos fados transmitem. Da mesma maneira que uma pessoa pode voltar a sentir tristeza quando se lembra de algo triste que lhe aconteceu no passado - e isso já não é real mas volta a ser real -, podemos reviver sentimentos de outras pessoas, as pessoas que escreveram os poemas dos fados, através das nossas experiências pessoais. Não canto poemas de fados que não entenda ou com os quais não me identifico. Fados que não tenham a ver comigo, com a minha vida, até com a minha idade... Só canto fados que consigo compreender, para os quais possa ir buscar recordações, emoções e às vezes coisas abstractas mas que tenham a ver com experiências reais para que os possa cantar de um modo único, pessoal e verdadeiro. E isso as pessoas sentem: quando oiço fado, não sei dizer porquê, mas sei distinguir o fado verdadeiro do falso fado.

Desde há alguns anos, o fado tem tido um ressurgimento fortíssimo, não só principalmente através de uma nova geração de cantoras. Consegues distinguir, entre elas, quem canta esse fado verdadeiro e quem canta o «falso» fado?

Não consigo julgar o fado a que não assisto ao vivo. A verdade do fado vê-se ao vivo e não ouvindo os discos. E há muitas das novas fadistas que nunca vi ao vivo. Mas há muitas outras novas fadistas em que sinto essa verdade - e esta é uma sensação pessoal, pouco objectiva. Acho que o verdadeiro é o que vai ficar. Daqui por uns anos vai-se fazer essa triagem, entre o que é genuíno e verdadeiro, e o que não é. Por exemplo, noutras áreas musicais, nós vemos que tantos anos depois há verdade na música dos Queen ou dos Beatles, bandas que ainda continuamos a ouvir para além das modas, dos «hypes»...

Falaste em Queen e em Beatles. Para além de fado, que música é que ouves?

Para a mim a música é essencial, não consigo viver sem música. E também não consigo ficar muito tempo a ouvir sempre fado. Adoro os Queen, são a minha banda preferida. Mas também gosto de muitos géneros de música diferentes: música cabo-verdiana, tango, música clássica (Vivaldi, Tchaikovsky, Mozart...), gosto de jazz e gosto de tecno - e não só para dançar, para ouvir também - e chill-out...

Imaginas-te um dia a integrar alguns desses géneros musicais no teu fado?

Não, não imagino. O fado tem uma raiz e tem uma tradição. Há muitos géneros de música que não têm nada a defender. Mas o fado tem, porque tem raízes muito antigas, muito próprias. E tem que se ter muito cuidado quando se mexe no fado. Quando se quer lá pôr novas referências, novos instrumentos, para tornar a coisa mais comercial, isso deixa de ser fado. Acho que nunca vou enveredar por aí. O que eu gosto, onde eu me sinto bem, onde eu sei que sou verdadeira a fazer alguma coisa, é no fado tradicional. Talvez um dia, por brincadeira, se me convidarem para cantar nalgum projecto diferente eu aceite, mas aí já não lhe chamaria fado.

Vamos falar de referências tuas dentro do fado. Tens, de certeza, alguns ídolos e influências...

A minha mãe é, sem dúvida, a minha maior referência e influência. E - não lhe chamaria ídolos nem mentores - mas pessoas que me mostraram o que era o fado: Beatriz da Conceição, Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo, Fernanda Maria e homens como o Fernando Farinha e o Fernando Maurício... A Amália Rodrigues, também.

É curioso teres feito essa pausa antes de teres dito o nome de Amália Rodrigues.

A Amália não foi a minha primeira referência. E não tive contacto directo com ela. A Beatriz da Conceição, sim, foi das pessoas que mais me ensinou o fado. Talvez ainda mais que a minha mãe. A Bia (Beatriz da Conceição) falava comigo, repreendia-me, criticava-me, mostrava-me o que fazer ou não e foi ela que mais me abriu os olhos para o sentido da palavra, a dicção, a maneira como se dizem as palavras e como no fado as palavras são o mais importante: não se pode brincar com as palavras por causa da melodia; as palavras estão primeiro e a melodia vem depois; é a melodia que tem que se adaptar às palavras e não o contrário.

Tu estás a seguir uma tradição antiga no fado que é cantar ao vivo nm local específico, um restaurante, muito perto, quase «em cima», das pessoas que te ouvem, sem amplificação... É importante este contacto tão directo com as outras pessoas?

É muito importante. O fado é, sem dúvida, uma forma musical que deve ser ouvida nestas circunstâncias. Com as pessoas ali ao pé, a mandarem piropos, a fazerem comentários. O fadista também vive muito das pessoas que o ouvem. Ao calor, ao empenho, que se sente do outro lado. Quando se sente que as pessoas sentem o que o fadista está a sentir... Quando se está a cantar para uma parede, num estúdio, é diferente.

Já tiveste convites para gravar discos?

Já, mas recusei. Acabei há pouco tempo o meu curso de Marketing e Publicidade e nem sequer pus a hipótese de gravar um disco. Queria acabar o meu curso e não queria misturar, não queria desviar-me. Entretanto, já percebi que não vou poder fugir muito ao meu destino e que vou fazer qualquer coisa no fado. Não sei se vou ser fadista a 100 por cento do meu tempo. Mas sei que vou fazer qualquer coisa no fado. E gravar um disco não é uma prioridade enquanto disco. Será mais uma muleta para ir a outros sítios, mostrar o meu fado. E só gravarei um disco quando tiver prazer a fazê-lo. Por enquanto não me sinto bem num estúdio. O outro dia estive a gravar para o filme «Fados», de Carlos Saura (nota: realizador espanhol que está agora a fazer um filme sobre o fado, depois de também já ter abordado nos seus filmes o flamenco e o tango), e aquilo ficou uma porcaria. Acho que vamos ter que gravar outra vez. Só vou gravar um disco quando puder dar o meu melhor e ter uma entrega verdadeira num estúdio.

Sei que vais fazer uma longa viagem proximamente...

Sim, vou-me embora em Fevereiro e vou estar integrada em missões de ajuda humanitária na Índia e outros países da Ásia e também vou à América do Sul. Vou estar fora daqui durante um ano. Espero aprender muito com esta viagem e vou voltar, de certeza, uma pessoa diferente...

4 comentários:

ANNA-LYS disse...

Hi António,
Thank You very much for Your greetings :-)

(( hugs ))

Anónimo disse...

É tão bonita, a Carminho! Vi-a uma vez, não na Mesa de Frades mas no Clube do Fado, e ela é mesmo «a verdade».

Marias disse...

Olá!
Por mero acaso não sabe o blog da Carminho, onde ela fala sobre a viagem que realizou em 2007?

Obrigado.

Diana

António Pires disse...

Diana (ou Marias):

Por acaso, e um feliz acaso!, sei:

http://soldadosdocozido.blogspot.com/

Espero que a encontre aqui :)

Um abraço...