15 abril, 2008

Think of One, El Tanbura e Bedouin Jerry Can Band - O Deserto Já Chega à Bélgica


As visões mais catastróficas sobre o aquecimento global prevêem que daqui a algumas dezenas de anos todo o sul da Europa será um deserto: a Península Ibérica, sim, mas também partes de França, Itália, Grécia... Mas, pelo menos para já, em termos musicais o norte de África já chegou à Bélgica há alguns anos, via Think of One (na foto), banda que depois das derivações «brasileiras» volta agora a uma paixão antiga: a música norte-africana. E, para lhes fazer companhia neste texto, do norte de África mesmo - mais especificamente do Egipto - vêm os fabulosos El Tanbura e a surpreendente Bedouin Jerry Can Band.


THINK OF ONE
«CAMPING SHAÂBI»
Crammed Discs/Megamúsica

O grupo belga, de Antuérpia, Think of One - um dos mais consistentes e respeitados projectos da chamada world music, uma designação que neles assenta que nem uma luva, mercê da quantidade de cruzamentos musicais em que já estiveram envolvidos ao longo da sua carreira - está de volta a um território que conhece particularmente bem, a música magrebina, depois de dois álbuns em que namorou mais intimamente com a música brasileira. Neste «Camping Shaâbi», a música berbere, o gnawa e o sha'abi são a pedra de toque para uma música que, como habitualmente, envolve os géneros tradicionais em muitos outros géneros como o rock, o hip-hop (oiça-se o fortíssimo e interveniente «Oppressor»), o dub, o jazz, a música latino-americana ou o funk, tudo misturado com a sabedoria de quem já faz isto há muitos anos - «Camping Shaâbi» é o oitavo álbum do grupo - e sempre com um sentido global e de aventura notáveis. Rodeados de inúmeros músicos e cantores do norte de África, incluindo a cantora Ghalia Benali, e mais alguns convidados especiais - do trio belga Laïs e ao mentor da Crammed, Marc Hollander (que toca piano num dos temas) -, os Think of One atingem neste álbum alguns picos musicais notáveis como a faixa de abertura, «J'Étais Jetée», o já referido «Oppressor», o hipnótico «Gnawa Power», o inesperado «Hamdushi Five», o festivo «Où Tu Vas?» (na linha de Manu Chao) ou o fabuloso «Antwaarpse Shaâbi». (9/10)


EL TANBURA
«BETWEEN THE DESERT AND THE SEA»
World Village/Harmonia Mundi

E de sha'abi também se pode falar quando se fala de «Between The Desert and The Sea», o maravilhoso álbum dos El Tanbura, grupo egípcio de Port Said, ali no Mediterrâneo e ao lado do Canal do Suez. Com uma música em que entram vários instrumentos tradicionais (com destaque para a simsimiyya, uma harpa cuja origem remonta ao tempo dos faraós e que foi usada como instrumento de... exorcismos!, mas também flautas e muitas percussões) e variadas harmonias vocais, os El Tanbura misturam música sufi com canções de pescadores e sha'abi, criando melodias belíssimas, quase sempre hipnóticas e circulares mas bastante ricas em nuances e variações harmónicas. Canções tradicionais e alguns originais - essencialmente compostos por Zakaria Ibrahim, o líder do grupo - que falam de amor, de guerra ou de religião (como na mágica «Dundarawi», um tradicional sufi), mas também da convivência entre vários povos (como em «Sar A Lay», cantada num dialecto de beduínos e em núbio). Umas vezes mais acelerado - quando as percussões tomam a dianteira e levam as vozes e os outros instrumentos atrás -, de outras mais ambiental e contemplativo - principalmente quando a simsimiyya e outra harpa, a gandouh, estão em destaque -, «Between The Desert and The Sea» é uma experiência sonora lindíssima e difícil de esquecer. (9/10)


BEDOUIN JERRY CAN BAND
«COFFEE TIME»
30IPS/El Mastaba Center

Vizinhos dos El Tanbura, e com uma música que muitas vezes lhes é semelhante, os músicos e cantores da Bedouin Jerry Can Band habitam no deserto do Sinai, onde o norte de África se encontra com o Médio Oriente. Não por acaso, os El Tanbura colaboram neste álbum de estreia da BJCB, «Coffee Time», e um dos instrumentos usados pelo grupo é também a simsimiyya - ao lado de flautas, da magroona (gaita), rababa (um violino de uma corda só) e percussões inusitadas (jerrycans, sim!, e também caixas de munições abandonadas no deserto aquando das várias guerras que assolaram a região, bilhas de água, cafeteiras de metal...). Beduínos semi-nómadas fixados no oásis de El Arish, pertencentes a uma tribo de religião sufi, Suwarka - mas incluindo também membros de outras origens étnicas, como o poeta Soliman Agman Mohamed Agmaan -, os músicos da BJCB assinam neste álbum uma música pura, de raiz, riquíssima de ritmos e harmonias, aproximando-se aqui e ali de formas ocidentais conhecidas como... o rock (oiçam-se «Wesh Melek» ou «Mareia»). Tendo como manager Zakaria Ibrahim - pois, o líder dos El Tanbura e o mentor do El Mastaba, um centro para o desenvolvimento da música tradicional egípcia -, a Bedouin Jerry Can Band está, ao lado dos El Tanbura, a fazer um trabalho precioso de preservação das antigas tradições musicais daquele país. E nós só temos que lhes estar agradecidos por isso. (8/10)

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