14 agosto, 2010
Jane Birkin - Uma Mulher do (e Com o Seu) Mundo
À medida que, nós homens, vamos envelhecendo - frase que se diz quando já se ultrapassaram os 40 anos de idade (até aos 30 e tais diz-se "à medida que vamos crescendo") - vamo-nos apercebendo que houve mulheres que, embora só as conhecendo à distância, contribuíram decisivamente para aquilo que nós somos agora: mulheres do cinema e da música, da poesia e da pintura, da dança e de outras vidas. E à medida que nós, ao mesmo tempo jornalistas e homens, vamos tendo o privilégio de contactar directamente com algumas delas - umas mais velhas e sábias, como a Marianne Faithfull, a Cesária Évora, a Susana Baca... e outras mais novas mas igualmente sábias, como a Lila Downs, a Rokia Traoré, a PJ Harvey... - vamos ficando com a certeza maior de que, ao fim de muitas centenas de entrevistas, foi com elas que aprendemos mais, e melhor, a crescer e a envelhecer. Um exemplar exemplo - pois! - disso mesmo foi a minha conversa, e a crítica ao mais recente disco, com uma das divas da minha juventude, uma conversa muito mais longa do que aquilo que aqui fica e que foi publicada há alguns meses na "Time Out", com Jane Birkin, cantora, actriz, realizadora de cinema e mito e musa transversal de várias gerações de homens que cresceram, ou envelheceram, com ela.
Jane Birkin
"Enfants d'Hiver"
Liberty
Se Camões tinha como musas as tágides, Serge Gainsbourg teve também as suas "senágides": Brigitte Bardot, Juliette Gréco, Françoise Hardy, Catherine Deneuve, Vanessa Paradis... A lista é quase interminável. Mas, acima de todas elas, sempre esteve Jane Birkin, muito provavelmente a melhor intérprete de sempre do reportório do grande poeta francês e aquela que, por direito próprio, sempre pôs a sua voz ao seu serviço, antes e depois da sua morte. Nos últimos anos, no álbum Arabesque, Birkin atreveu-se - e bem! - a interpretar temas de Gainsbourg embaladas em arranjos que deviam tudo à música árabe e magrebina. No seguinte, Fictions, o “fantasma” de Gainsbourg foi afastado com a presença de compositores vindos da pop e do rock como Rufus Wainwright, Neil Hannon, Beth Gibbons, Dominique A ou os Magic Numbers, de versões de temas de Neil Young ou Tom Waits e da presença de Johnny Marr (o ex-guitarrista dos Smiths) a dar um ar de sofisticação eléctrica ao todo.
E, no mais recente "Enfants d'Hiver", Birkin dá o passo seguinte, assumindo-se como a letrista de todas as canções – e todas elas cantadas em francês, à excepção de “Aung San Suu Kyi”, dedicada à activista birmanesa e Prémio Nobel da Paz e cantada em inglês. Sai-se muito bem da tarefa: as letras são belíssimas, pessoais, íntimas, sofridas, sacadas directamente da alma de uma mulher madura e que já conviveu com muitas tragédias pessoais e familiares. Mas, apesar disso, é um disco luminoso que flui sempre muito bem por entre arranjos simples, quase sempre absolutamente acústicos e pouco elaborados. As excepções – nesta tendência, que não no bom-gosto – são “Oh Comment Ça Va?” (muito “Walk On the Wild Side”, de Lou Reed) e “Aung San Suu Kyi”, uma canção heróica com gaitas-de-foles.
Entrevista Jane Birkin
Com quantas caixas se faz a vida
Ícone vivo da cultura pop, a cantora (e agora, compositora), actriz e realizadora Jane Birkin ultrapassa a barreira dos sessenta anos com um novo álbum, "Enfants d'Hiver", e um filme realizado por ela, "Boxes". O disco é apresentado ao vivo, dia 8, no CCB, e o filme é mostrado um dia antes, no S. Jorge. E neles está muito do que é, e foi, a sua vida, como confessa nesta conversa com António Pires.
Em muitos discos anteriores, a Jane cantava as palavras dos outros. No novo, "Enfants d'Hiver", foi a Jane que escreveu todas as letras. É este o tempo certo para se mostrar ao mundo como letrista e logo de uma forma tão pessoal?
Estas letras revelam muito dos meus sentimentos pessoais. Há duas relativas a duas filhas minhas [Nota: Jane Birkin tem três filhas: Kate, filha do compositor John Barry; Charlotte, filha de Serge Gainsbourg; e Lou, filha de Jacques Doillon]: uma que teve um acidente e outra que não andava bem. Essas duas revelam o meu lado maternal; mas há outras que falam da minha infância, da minha busca de romance, de decepções amorosas ou do aspecto que a minha cara (com esta idade) revela. Escrevi-as sozinha, num ambiente de grande solidão e alguma melancolia. O nome do disco foi-me inspirado pelo meu irmão, Andrew [argumentista e realizador de cinema].
Mas uma das canções do disco ultrapassa essa esfera pessoal, ou familiar, e é um manifesto – e cantado em inglês, ao contrário do resto do disco, em francês - de apoio a Aung San Suu Kyi, líder da oposição à ditadura na Birmânia. É uma canção quase heróica, com gaitas-de-foles...
Sim, o resto do álbum é muito pessoal, muito íntimo, mas esta canção de certa forma também o é. Na minha vida tenho-me dedicado a várias causas políticas e humanitárias. Estive no Ruanda depois do genocídio, na Bósnia, na Palestina... Há demasiado horror no mundo para que fique parada a observar. Por Aung San Suu Kyi tenho uma enorme ternura e respeito. Tive a sorte de a conhecer pessoalmente e a sensação com que fiquei foi que estava na presença de alguém semelhante a Ghandi. Estou constantemente com receio de que um dia, esteja ela na sua casa sob vigilância ou na prisão, alguém me telefone a dizer “Aung San Suu Kyi morreu”. Aung San Suu Kyi é a única esperança de democracia – e de luta contra as actuais condições de vida na Birmânia: o tráfico de droga, a mortalidade infantil, a SIDA... - e a sua vida está em risco permanente. [Nota: o site de Jane Birkin é, em boa parte, dedicada à causa de Aung San Suu Kyi e, ontem, terça-feira, a cantora organizou uma vigília em Paris de apoio à Prémio Nobel da Paz]
Este disco tem uma canção com uma forte pulsão rock, quase Lou Reed, que é “Oh Comment Ça Va”. Mas tudo o resto é muito mais clássico e acústico. Esta opção pela simplicidade, pelo acústico, é uma forma de sublinhar a importância das palavras?
Eu poria a questão de outra maneira: como as palavras são modestas, precisavam de uma orquestração modesta. Neste álbum tive vários compositores musicais e, juntamente com o arranjador, tentei que tudo soasse o mais simples e minimal possível; sem bateria nem grandes secções de cordas. E isso tem a ver também com o conteúdo das canções, muitas delas bastante tristes. Neste disco estou, de certa forma, a despir-me, a expor-me, de uma forma honesta.
O seu filme "Boxes", em que é realizadora, argumentista e actriz, fala de uma mãe e de três filhas de três relações diferentes. Mas a Jane costuma dizer que não é auto-biográfico, apesar das semelhanças óbvias...
Há essa ligação evidente com a minha própria vida mas não é autobiográfico: no filme evitei expressamente referências da minha vida com os pais das minhas filhas. Mas eu sempre fui muito auto-crítica comigo mesmo e o filme reflecte, de certa forma, essa auto-crítica na boca das personagens do filme. Agradou-me a ideia de fazer um filme com uma mulher de 45 anos que está a viver o seu último amor e tem as suas três filhas a criticá-la, a confrontá-la. Uma mulher que muda de casa, abre as suas caixas [Nota: boxes] de onde emergem também depois os fantasmas de muita gente do passado...
Nos últimos anos, assisti a dois concertos seus. Um em que apresentou "Arabesque" - com canções de Serge Gainsbourg arranjadas num contexto de música árabe - e outro em que apresentou "Fictions". E mesmo neste, dedicado a um álbum que não tinha canções de Gainsbourg, cantou as canções dele em palco... É inevitável fazê-lo, não é?
(Risos) É! E se não o fizer, as pessoas que me vão ver não o irão aceitar. Não irão compreender porque é que eu, que tive a sorte de ter um dos maiores poetas a escrever canções para mim, e algumas das mais belas que alguma vez foram escritas, não uso esse património. Por isso, para não se sentirem enganadas, eu irei cantá-las mais uma vez.
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