03 dezembro, 2006

Sons em Trânsito - O Futuro É o Novo Passado


A quinta edição do Festival Sons em Trânsito, em Aveiro, terminou esta madrugada a sua viagem de união de muitos lugares distantes, sim, mas também de músicas que vão muito longe, no tempo, buscar a sua forma ou inspiração. Unindo, num continuum temporal - que pode durar centenas de anos ou apenas alguns minutos -, antiquíssimas ragas indianas com Jimi Hendrix, a memória de Carlos Gardel e velhos violinos do tempo dos gramofones, ecos de Nino Rota e de Hermínia Silva, tudo incarnando em cantores e músicos lançados para um futuro utópico em que o passado e o futuro, ou o aqui e o muito longe, deixam de ter importância alguma.

Sempre com casa cheia - só no sábado a lotação não esteve esgotada -, o SET abriu na quarta-feira com um furacão chamado Cristóbal Repetto (na foto), argentino de 24 aninhos que transporta na voz o grão fantasmático de Carlos Gardel. São tangos e milongas, músicas campesinas e os sons das pampas numa canção de Atahualpa Yupanqui, cantados por Repetto numa voz quente, vibrante, emocional. A acompanhá-lo estiveram três guitarristas competentes e um músico extraordinário: Javier Casalla num arrepiante violinofone (ou violino-corneta ou violino Stroh, assim chamado em honra do seu inventor, Johannes Stroh, instrumento que esteve em voga no início do século XX e em que no violino um sistema de amplificação substituía a caixa de ressonância).

Depois, a entrada do maliano Ballaké Sissoko para um belíssimo solo de kora fez crescer água na boca para um concerto que não correspondeu às expectativas geradas por esse momento inicial: o italiano Ludovico Einaudi, durante o resto do espectáculo, afogou a kora de Sissoko com o seu piano, não deixando espaço para o diálogo entre os dois instrumentos. Foi um concerto bonito, sim - a música de Einaudi navega águas próximas das de Philip Glass, Michael Nyman ou Wim Mertens, indo aqui e ali ao jazz e aos blues - mas em que a kora apenas serviu de apontamento exótico.

Na segunda noite, a melhor do festival, o indiano Debashish Bhattacharya usou duas guitarras-slide semelhantes às ocidentais mas com um timbre muito próximo do das sitars para, partindo de uma longa e hipnótica raga tradicional, avançar depois em direcção aos blues do Mississippi, ao rock - houve momentos que lembraram Jimi Hendrix, outros Led Zepellin - à música havaiana, mexicana e andina, numa viagem fabulosa. A acompanhá-lo esteve outro músico fantástico, Subhasis Bhattacharjee - cujas tablas, em que por vezes se adivinhavam drum'n'bass e música africana, forneceram crescendos de intensidade e velocidade quase assustadores (é um elogio), e Christian Ledoux numa tambura discreta.

Depois... Kepa Junkera! E é sempre um prazer enorme ver o mestre da trikitixa (acordeão diatónico). Os anos passam, os discos sucedem-se, os espectáculos também, mas há sempre uma emoção especial quando se vê e ouve este extraordinário músico basco em palco. E essa magia voltou a acontecer no Teatro Aveirense, com Kepa a viajar pelas danças tradicionais do seu país - se não ainda real, pelo menos sonhado - mas também por inúmeros outros lugares, da Argentina ao norte de África. A txalaparta - tocada por dois percussionistas inventivos e competentíssimos - e a alboka (a gaita-sem-foles, piada!, basca) reforçavam a ligação às raízes. Mas, durante o concerto de Kepa, as antenas estiveram também sempre no ar.

Na terceira noite, Sara Tavares mostrou ao vivo aquilo que já tinha mostrado em disco: que já está muito, muito, longe dos concursos televisivos e de um início de carreira oscilante entre géneros mais mainstream e algumas paixões pessoais, como o gospel. Agora, Sara está o que sempre foi e que pareceu estar esquecido durante alguns anos: que é uma cantora luso-cabo-verdiana, ainda por cima uma belíssima cantora (e, acrescente-se, compositora). Nela ainda habitam ecos de soul, funk, pop, r'n'b, reggae, mas isso é bom, muito bom, quando assim integrado em música que vai a Cabo Verde (e a outros lugares de África) buscar a sua inspiração. Mais a mais, quando Sara Tavares é acompanhada por uma banda que inclui o guitarrista e cantor com frutuosa carreira em nome próprio Boy Gê Mendes (e que com ela fez um dueto durante o concerto) e para o discreto mas seguríssimo baterista N'dú.

E, a seguir, a festa que se esperava com os franceses Lo'Jo não chegou a acontecer. O concerto foi bom mas esteve longe de ser a folia pegada que foi da última vez que os vi, no MED de Loulé. Mesmo assim - e no meio de alguns temas menos conseguidos -, Denis Péan e a sua trupe mirabolante (que inclui duas cantoras multi-instrumentistas) serviram-nos um sempre interessante cocktail de rock progressivo, jazz de fusão, chanson (Brel, Brassens e Ferré erguem-se na sombra de Péan), música gnawa, mandinga, árabe, brasileira... Uma música em que melódicas convivem com koras, um harmonium indiano com baixo eléctrico, njarkas com piano, qraqabas com talking drum, saxofone com programações electrónicas. Com papéis mas... sem fronteiras.

A última noite começou com a fadista Aldina Duarte e com o seu fado cru, descarnado, sentido, longe, tão longe (uuups!) dos trinadinhos, dos floreados e dos agudíssimos de outras cantoras. E, apesar de em Aveiro ter demorado algum tempo até encontrar o rumo da voz, quando engatou fê-lo com uma alma e um espírito e um coração enormes. E com uma característica que a diferencia de muitas outras cantoras contemporâneas: em Aldina não está... Amália Rodrigues. Antes estão lá Hermínia Silva, Beatriz da Conceição, Lucília do Carmo, Argentina Santos. Amália, nunca. E com outra, esta felizmente comum a muitas outras cantoras: as letras (dela ou de João Monge) são sempre muito boas. E só assim, com letras tão boas, se pode imaginar que se pode pegar nas pontas do arco-íris e fazer dele um cachecol...

Para fechar a programação da sala principal do Teatro Aveirense estava reservada uma excelentíssima surpresa: o compositor e multi-instrumentista (bandolim, banjo, guitarra... e voz num tema do concerto) francês René Aubry deu outro fabuloso concerto. Na sua música - muita dela feita para filmes e bailados, nomeadamente de Pina Bausch - coabitam Nino Rota e Pascal Comelade, Michael Nyman e rembetika grega, a Penguin Cafe Orchestra e fado, música napolitana e um catálogo completo mas não ortodoxo de compositores clássicos. Toda ela sempre apresentada com uma originalidade e um brilho extraordinários e bem servida por uma «orquestra» maravilhosa.

O fim do festival foi protagonizado pelos Dazkarieh, que actuaram no Salão Nobre perante uma plateia completamente rendida à sua folk eléctrica e electrizante. Pena foi o péssimo som durante grande parte do concerto. Como pena foi que as sessões de contos não tenham decorrido à tarde ou, em alternativa, num espaço diferente do do bar do Teatro, com o burburinho natural circundante. Mas isto são apenas pormenores menores de mais um SET inesquecível.

Sem comentários: