
À medida que, nós homens, vamos envelhecendo - frase que se diz quando já se ultrapassaram os 40 anos de idade (até aos 30 e tais diz-se "à medida que vamos crescendo") - vamo-nos apercebendo que houve mulheres que, embora só as conhecendo à distância, contribuíram decisivamente para aquilo que nós somos agora: mulheres do cinema e da música, da poesia e da pintura, da dança e de outras vidas. E à medida que nós, ao mesmo tempo jornalistas e homens, vamos tendo o privilégio de contactar directamente com algumas delas - umas mais velhas e sábias, como a Marianne Faithfull, a Cesária Évora, a Susana Baca... e outras mais novas mas igualmente sábias, como a Lila Downs, a Rokia Traoré, a PJ Harvey... - vamos ficando com a certeza maior de que, ao fim de muitas centenas de entrevistas, foi com elas que aprendemos mais, e melhor, a crescer e a envelhecer. Um exemplar exemplo - pois! - disso mesmo foi a minha conversa, e a crítica ao mais recente disco, com uma das divas da minha juventude, uma conversa muito mais longa do que aquilo que aqui fica e que foi publicada há alguns meses na "Time Out", com Jane Birkin, cantora, actriz, realizadora de cinema e mito e musa transversal de várias gerações de homens que cresceram, ou envelheceram, com ela.
Jane Birkin
"Enfants d'Hiver"
Liberty

E, no mais recente "Enfants d'Hiver", Birkin dá o passo seguinte, assumindo-se como a letrista de todas as canções – e todas elas cantadas em francês, à excepção de “Aung San Suu Kyi”, dedicada à activista birmanesa e Prémio Nobel da Paz e cantada em inglês. Sai-se muito bem da tarefa: as letras são belíssimas, pessoais, íntimas, sofridas, sacadas directamente da alma de uma mulher madura e que já conviveu com muitas tragédias pessoais e familiares. Mas, apesar disso, é um disco luminoso que flui sempre muito bem por entre arranjos simples, quase sempre absolutamente acústicos e pouco elaborados. As excepções – nesta tendência, que não no bom-gosto – são “Oh Comment Ça Va?” (muito “Walk On the Wild Side”, de Lou Reed) e “Aung San Suu Kyi”, uma canção heróica com gaitas-de-foles.

Entrevista Jane Birkin
Com quantas caixas se faz a vida
Ícone vivo da cultura pop, a cantora (e agora, compositora), actriz e realizadora Jane Birkin ultrapassa a barreira dos sessenta anos com um novo álbum, "Enfants d'Hiver", e um filme realizado por ela, "Boxes". O disco é apresentado ao vivo, dia 8, no CCB, e o filme é mostrado um dia antes, no S. Jorge. E neles está muito do que é, e foi, a sua vida, como confessa nesta conversa com António Pires.
Em muitos discos anteriores, a Jane cantava as palavras dos outros. No novo, "Enfants d'Hiver", foi a Jane que escreveu todas as letras. É este o tempo certo para se mostrar ao mundo como letrista e logo de uma forma tão pessoal?
Estas letras revelam muito dos meus sentimentos pessoais. Há duas relativas a duas filhas minhas [Nota: Jane Birkin tem três filhas: Kate, filha do compositor John Barry; Charlotte, filha de Serge Gainsbourg; e Lou, filha de Jacques Doillon]: uma que teve um acidente e outra que não andava bem. Essas duas revelam o meu lado maternal; mas há outras que falam da minha infância, da minha busca de romance, de decepções amorosas ou do aspecto que a minha cara (com esta idade) revela. Escrevi-as sozinha, num ambiente de grande solidão e alguma melancolia. O nome do disco foi-me inspirado pelo meu irmão, Andrew [argumentista e realizador de cinema].
Mas uma das canções do disco ultrapassa essa esfera pessoal, ou familiar, e é um manifesto – e cantado em inglês, ao contrário do resto do disco, em francês - de apoio a Aung San Suu Kyi, líder da oposição à ditadura na Birmânia. É uma canção quase heróica, com gaitas-de-foles...
Sim, o resto do álbum é muito pessoal, muito íntimo, mas esta canção de certa forma também o é. Na minha vida tenho-me dedicado a várias causas políticas e humanitárias. Estive no Ruanda depois do genocídio, na Bósnia, na Palestina... Há demasiado horror no mundo para que fique parada a observar. Por Aung San Suu Kyi tenho uma enorme ternura e respeito. Tive a sorte de a conhecer pessoalmente e a sensação com que fiquei foi que estava na presença de alguém semelhante a Ghandi. Estou constantemente com receio de que um dia, esteja ela na sua casa sob vigilância ou na prisão, alguém me telefone a dizer “Aung San Suu Kyi morreu”. Aung San Suu Kyi é a única esperança de democracia – e de luta contra as actuais condições de vida na Birmânia: o tráfico de droga, a mortalidade infantil, a SIDA... - e a sua vida está em risco permanente. [Nota: o site de Jane Birkin é, em boa parte, dedicada à causa de Aung San Suu Kyi e, ontem, terça-feira, a cantora organizou uma vigília em Paris de apoio à Prémio Nobel da Paz]
Este disco tem uma canção com uma forte pulsão rock, quase Lou Reed, que é “Oh Comment Ça Va”. Mas tudo o resto é muito mais clássico e acústico. Esta opção pela simplicidade, pelo acústico, é uma forma de sublinhar a importância das palavras?
Eu poria a questão de outra maneira: como as palavras são modestas, precisavam de uma orquestração modesta. Neste álbum tive vários compositores musicais e, juntamente com o arranjador, tentei que tudo soasse o mais simples e minimal possível; sem bateria nem grandes secções de cordas. E isso tem a ver também com o conteúdo das canções, muitas delas bastante tristes. Neste disco estou, de certa forma, a despir-me, a expor-me, de uma forma honesta.
O seu filme "Boxes", em que é realizadora, argumentista e actriz, fala de uma mãe e de três filhas de três relações diferentes. Mas a Jane costuma dizer que não é auto-biográfico, apesar das semelhanças óbvias...
Há essa ligação evidente com a minha própria vida mas não é autobiográfico: no filme evitei expressamente referências da minha vida com os pais das minhas filhas. Mas eu sempre fui muito auto-crítica comigo mesmo e o filme reflecte, de certa forma, essa auto-crítica na boca das personagens do filme. Agradou-me a ideia de fazer um filme com uma mulher de 45 anos que está a viver o seu último amor e tem as suas três filhas a criticá-la, a confrontá-la. Uma mulher que muda de casa, abre as suas caixas [Nota: boxes] de onde emergem também depois os fantasmas de muita gente do passado...
Nos últimos anos, assisti a dois concertos seus. Um em que apresentou "Arabesque" - com canções de Serge Gainsbourg arranjadas num contexto de música árabe - e outro em que apresentou "Fictions". E mesmo neste, dedicado a um álbum que não tinha canções de Gainsbourg, cantou as canções dele em palco... É inevitável fazê-lo, não é?
(Risos) É! E se não o fizer, as pessoas que me vão ver não o irão aceitar. Não irão compreender porque é que eu, que tive a sorte de ter um dos maiores poetas a escrever canções para mim, e algumas das mais belas que alguma vez foram escritas, não uso esse património. Por isso, para não se sentirem enganadas, eu irei cantá-las mais uma vez.
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