31 janeiro, 2007

Cristina Branco Canta José Afonso


Já pouca coisa vinda da fadista (e não só) Cristina Branco pode surpreender, tantos são os caminhos próprios por ela já tomados, através do fado, fora do fado, a viés do fado. Mas a expectativa é enorme quando se sabe que o seu novo projecto (disco e espectáculos) é dedicado à obra de José Afonso e que para ele Cristina Branco se fez rodear por uma banda formada por Ricardo Dias (da Brigada Victor Jara e já um «habitué» na equipa da cantora) no piano e direcção musical e três conceituados músicos vindos do jazz: Mário Delgado (guitarras acústicas e eléctricas), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria). A apresentação do projecto decorre no Jardim de Inverno do Teatro S.Luiz, em Lisboa, dias 2, 3, 9, 10, 16, 17, 23 e 24 de Fevereiro. De José Afonso diz Cristina Branco: «O Zeca foi e será sempre um exemplo de simplicidade, de convicção (mesmo quando dizia que nem sempre gostava de cantar!). É assim o amigo da minha adolescência, o amigo do meu canto, da minha busca pessoal. Não trazemos nada de novo, vimos apenas lembrar».

Para além do projecto de versões de Cristina Branco, José Afonso será também homenageado este ano - quando passam vinte anos sobre a sua morte - em discos dos Frei Fado d'El Rei («Senhor Poeta») e, segundo o site e blog da Associação José Afonso, dos Erva de Cheiro («Que Viva o Zeca») e espectáculos um pouco por todo o país, com destaque para o ciclo «A Revolução» (na Casa da Música, Porto, entre 25 de Abril e 1 de Maio, que inclui a estreia de «Steel Drumming toca Zeca Afonso», pelo grupo de percussão Drumming, com Miguel Guedes, vocalista dos Blind Zero, e JP Simões como convidados nas vozes), entre outros espectáculos, ciclos, conferências e exposições. Mais informações aqui e aqui.

30 janeiro, 2007

Maria Ana Bobone - O Fado Não Tem Uma Redoma à Volta


Maria Ana Bobone é uma das melhores fadistas emergentes da nova geração. Com uma carreira única onde entram aventuras «desviantes» com Ricardo Rocha e João Paulo Esteves da Silva, Maria Ana editou há um ano o excelente álbum de fado (e de outras coisas à volta) «Nome de Mar». A entrevista e a crítica que publico aqui hoje apareceram originalmente no BLITZ em Janeiro de 2006.


MARIA ANA BOBONE
É FADO (E À SUA VOLTA)

«Nome de Mar», o novo álbum de Maria Ana Bobone, mostra a fadista a assumir a música como carreira. Para levar a sério, mesmo que o fado seja, com ela, o fado e muitas coisas à volta.

Como é que se explica que, tendo já uma carreira tão longa no fado, este álbum («Nome de Mar»), seja o seu primeiro grande lançamento, em nome próprio, numa editora nacional?

Não gosto muito da palavra «carreira». Até costumo dizer que «carreira» só tenho uma, que é uma casa no Minho chamada a Casa da Carreira. Já canto profissionalmente há muitos anos, mas não investi de uma forma absoluta e total nesse campo. Porque achei que era importante tirar um curso, fazer outras coisas... Mas acabei sempre, por força do destino, por viver da música. E só o ano passado percebi claramente que era isto que eu queria fazer. E quero cantar como profissão, se for possível...

Como caracterizaria, então, os discos que ficaram para trás: «Alma Nova» (1993), partilhado com os fadistas Miguel Capucho e Rodrigo da Costa Félix; «Luz Destino» (1995), com o guitarrista Ricardo Rocha e João Paulo Esteves da Silva no cravo; e «Senhora da Lapa» (1999)...

Esses são discos que fazem parte da minha... carreira (risos) e que me honra muito estar neles. No primeiro tinha 19, 20 anos, e era uma debutante mas fi-lo com todo o empenho. Já o «Luz Destino» é um projecto do Ricardo e do João Paulo para o qual eu fui chamada para ser um terceiro instrumento. Não é um disco meu, é mais deles, mas foi o disco em que conheci o Ricardo e que marca a minha vida de uma forma transversal, porque é um disco em que há fado mas não há só fado...

Esse disco é quase um OVNI da história do fado...

Sim, tem fado com guitarra portuguesa e cravo e tem música contemporânea erudita, música dodecafónica, música improvisada do João Paulo... Mas adoro-o, é extraordinário. E fazer parte disso foi um privilégio...

E aí começa uma relação com o Ricardo Rocha que continua depois no «Senhora da Lapa» e agora no «Nome de Mar»...

Sim, e o Ricardo Rocha é muito importante porque com ele comecei a experimentar novos arranjos para o fado... E, neste novo disco, o desenho abstracto é meu, mas os arranjos e a direcção musical são dele e ele dá um cunho inconfundível a este trabalho. Sente-se que é ele que ali está... Foi ele que me permitiu que eu me aventurasse pelos caminhos por onde eu queria ir.

E neste álbum também vai buscar o João Paulo Esteves da Silva...

O João Paulo toca piano num dos temas («Senhora do Monte»), também porque neste álbum quis mostrar muitos dos caminhos da minha música. Isto, apesar de depois soar coerente e articulado. Mas tenho aqui fado, música barroca, música coral...

O que é que lhe deu para ir buscar tanta gente -- principalmente tantas vozes - para colaborarem no disco? No fado há raríssimos duetos e coros muito menos... Geralmente, a ideia é «olhem para a minha voz!»...

Eu não tenho essa postura. A música não é isso. E neste trabalho, com os guitarristas, o conceito é «nada é mais importante que nada», isto é, a minha voz não é mais importante do que os instrumentos deles. O facto de, geralmente, ser o cantor a receber todos os louros é uma coisa que me encanita um bocado. E não tem razão de ser. É também por isso que há um tema instrumental no disco. No dueto com a Filipa Pais é ela que começa a cantar, não sou eu, e não é um acto de generosidade, é porque fica muito melhor assim. Para além de que a Filipa tem das melhores vozes que eu conheço. E os coros aparecem... Este, mais do que um disco de fado, é um disco de música que radica no fado, parte do fado, mas vai para outros lados... No tema com os Tetvocal - que nunca achei que fossem aceitar o convite para participar - pensei num arranjo barroco para um coro, e o Ricardo começou por não ligar muito, mas depois apareceu-me com o arranjo, os Tetvocal aceitaram participar e o resultado foi espectacular... As Vozes Privadas são um grupo amador e participam num tema que não é um fado, o «Natal d'Elvas», que é uma pérola da música tradicional alentejana...

Outra pessoa importante do seu passado que «recuperou» para este disco foi o João Braga, do qual canta três fados, «Meu Nome É Nome de Mar», «Espera» e «O Achado»...

Trabalhei muito tempo com o João Braga e descobri, no reportório dele, coisas muito bonitas. E porque não cantar João Braga? Gosto dos temas e, ainda por cima, é ele o responsável pela minha vinda para o fado. E ele gostou imenso da minha interpretação...

Pode falar um pouco da escolha dos poetas que canta neste disco? Tem aqui poemas de Manuel Alegre, Miguel Torga, Pedro Homem de Mello e, também, Fernando Pessoa (em temas com música de Ricardo Rocha)...

Os do Fernando Pessoa, foi o Ricardo que me apareceu com os temas. Mas as minhas escolhas de poemas, normalmente, têm sempre a ver com uma preocupação estética, cuidada, em que o mais importante é a beleza. Neste disco não há propriamente uma mensagem, uma ideologia, mas quero transmitir... beleza. Se calhar, beleza é menos interessante do que tragédia ou drama... Mas é isso que eu quero transmitir através destes poemas e desta música... O poema «Meu Nome É Nome de Mar» foi um poema que o Manuel Alegre me deu, depois de o ter conhecido na Suécia e de me ter dito que ia fazer um poema para mim. Vou esperar sentada, pensei (risos)... Mas fez, e o poema chegou-me pela mão do João Braga, que o conhece muito bem e que, entretanto, já tinha feito a melodia para o poema... Esse poema dá nome ao disco porque me revejo muito nele. Sou uma pessoa muito sonhadora - o amor impossível; o outro lado da lua... - e esse poema tem que ver muito com essa minha característica. E com a diversidade que se encontra neste disco, uma diversidade que também pode ser uma característica e não um problema...

Porque é que decidiu fechar este álbum com uma canção religiosa, «Avé Maria»?...

Essa música fez parte do meu percurso em várias ocasiões. Cantava muitas vezes essa canção na missa e quando eu cantava essa canção, na missa ou em casamentos, havia pessoas que se sentiam muito tocadas por ela. E houve pessoas que me perguntavam onde é que podiam encontrar uma gravação minha dessa canção do Frei Hermano da Câmara. Para responder a essas pessoas decidi incluir essa canção como tema-extra no álbum. E é uma canção que já faz parte de mim...

Considera-se como fazendo parte da chamada «nova geração do fado» ou acha que, de alguma maneira, está fora dela?

Eu canto fado e vivo do fado. Posso fazer desvios, mas a essência, a raiz, está no fado... É verdade que cada pessoa tem a sua abordagem e a minha é a minha...

Este disco vai ser apresentado ao vivo?

Sim, vai haver um concerto de apresentação - que, curiosamente, é o meu primeiro concerto a solo em Portugal -, dia 4 de Fevereiro, no Auditório Romeu Correia, em Almada. Isto, quando já fiz muitos concertos a solo noutros países. Essa [a aposta no mercado português] é outra das razões porque troquei a AM Records [editora americana mas com sede em Tóquio] pela Farol. Muitas vezes os discos saíam e cá não tinham expressão, eram para guardar a gaveta...


MARIA ANA BOBONE
«NOME DE MAR»
Vachier/Farol

Desde há muito tempo que o fado já não é só fado ou pode ser muitas coisas ancoradas no fado mas dele mais ou menos distantes. «Nome de Mar», o novo álbum de Maria Ana Bobone, leva a cantora para os territórios que tem experimentado ao longo dos anos, a solo ou com os seus cúmplices habituais – Ricardo Rocha que, neste disco, brilha a grande altura na guitarra portuguesa (ouvi-lo num disco é sempre um privilégio!) e é ainda o responsável pelos arranjos e direcção musical, e o pianista João Paulo Esteves da Silva, que aqui a acompanha em «Senhora do Monte» -, desde o fado, sim (e o álbum é, em larga maioria, um álbum de fado), mas também música barroca, música tradicional portuguesa, música religiosa («Avé Maria») ou algo muito dificilmente catalogável (os dois lindíssimos temas com música de Ricardo Rocha sobre poemas de Fernando Pessoa). O mais espantoso, e bonito, é que a voz de Maria Ana Bobone move-se completamente à vontade nestes territórios diversos. E casa na perfeição com as outras vozes que convocou para este disco: no dueto com Filipa Pais e nas colaborações com as Vozes Privadas (no tradicional alentejano «Natal d’Elvas») e os Tetvocal (em «Súplica», fado na voz de Maria Ana, barroco nas vozes dos Tetvocal). Por sua vez, o génio de Ricardo Rocha – se preciso fosse – fica bem marcado na versão da «Canção de Alcipe», onde Maria Ana deixa os músicos brilhar sozinhos. (8/10)

28 janeiro, 2007

Amsterdam Klezmer Band, Kleztory e Klezmofobia - A Descendência dos Klezmatics


O klezmer, música nascida nas comunidades judaicas do centro e norte europeu, tem nos Klezmatics - que tocaram há poucos dias na Culturgest (ver reportagem no Crónicas da Terra) - o seu expoente maior. A sua fusão de klezmer tradicional com muitas outras músicas deu ao género uma visibilidade enorme junto de inúmeros públicos até aí pouco familiarizados com esta música («Hei, parece que já ouvi algo parecido num filme do Woody Allen...»). E a marca do grupo nova-iorquino sente-se bem em grupos mais recentes de diversas proveniências: a Amsterdam Klezmer Band (na foto) da Holanda, os Kleztory do Canadá e os Klezmofobia da Dinamarca.


AMSTERDAM KLEZMER BAND
«SON»
Connecting Cultures Records

O quinto álbum da Amsterdam Klezmer Band, «Son» (nada a ver com o estilo cubano do mesmo nome: «son» significa «sonho» em russo e foi a essa palavra que a AKB foi buscar o título deste disco) é um belíssimo exemplo de como se pode partir do klezmer para ir para muitos locais. Na AKB, o klezmer - que na sua génese foi influenciado directamente por muitas músicas balcânicas - parte muitas vezes rumo à música cigana do norte da Europa, amiúde com desvios para improvisações jazzísticas muito bem metidas lá pelo meio, quase sempre com um acordeão a servir de base aos delírios da secção de sopros. Neste álbum há alguns temas cantados pelo percussionista e vocalista Alec Kopyt, numa voz rouca e dificilmente olvidável; há uma beleza imensa em «Blue Hora» (que está entre o tango, os blues e o klezmer); há uma velocidade punk vertiginosa em «Bublitzky». E há sempre uma grande variedade estilística e um domínio dos instrumentos invulgar: a AKB é umas vezes de uma alegria insana, outras de um lirismo encantador, outras vezes de uma tristeza e melancolia arrepiantes (como no tema final, «Trieste Dromen»). A banda foi fundada em 1996 pelo saxofonista Job Chajes, vocacionada para actuações de rua, e para os seus membros o klezmer é só mesmo um pretexto para fazer a sua própria música. Bom pretexto. Excelente música. (8/10)


KLEZTORY
«MUSIQUE KLEZMER»
Chandos

Ao contrário da Amsterdam Klezmer Band, os Kleztory estão muito perto da tradição klezmer mas nem por isso deixam de avançar em direcções próprias e originais. Nascidos no Canadá mas com músicos provenientes de vários locais do mundo - Rússia, Canadá (tanto de expressão inglesa como francesa) e França - e muitos deles com formação clássica, os Kleztory interpretam com virtuosismo, respeito e muito amor temas tradicionais klezmer. Neles, a guitarra, contrabaixo, acordeão, percussões e principalmente o clarinete e o violino juntam-se para momentos ora de festa e dança imparáveis, ora para temas onde a nostalgia e a tristeza estão marcadas a fogo e a sangue. E se as bases da música klezmer - a música hasídica da Ucrânia, a música cigana dos Balcãs, a música turca... (isto é, dos locais de passagem da diáspora dos judeus) - estão sempre bem presentes na música dos Kleztory, isso não os impede de por vezes meterem lá pelo meio uns pozinhos de música erudita, de blues ou de country, transformando levemente os originais na busca de uma identidade própria. Vivamente aconselhável, por exemplo, para os fãs dos Muzsikás, principalmente do seu álbum «The Lost Jewish Music of Transylvania». (7/10)


KLEZMOFOBIA
«TANTZ!»
Tiger Records

E com os dinamarqueses Klezmofobia voltamos ao território do klezmer tal como revisto pelos Klezmatics: não por acaso, dois dos temas do álbum «Tantz!» (que significa «Dança!») são tradicionais klezmer mas com os Klezmofobia a seguir os arranjos que para eles fizeram os Klezmatics. E não por acaso, na música dos Klezmofobia - viva, delirante, inventiva, de uma surpresa constante - entram o klezmer, claro, mas também o ska, a música balcânica, o punk, o surf-rock, mariachis mexicanos, tudo junto num cocktail que deve ser bebido... em momentos de depressão: de certeza que quem o fizer fica imediatamente melhor e pronto para deitar para trás das costas qualquer infelicidade próxima ou passada. Armados de uma balalaika-baixo, clarinete, trompete, guitarra, acordeão e bateria, os Klezmofobia interpretam com uma imensa e exuberante liberdade temas tradicionais klezmer, temas da compositora judia dinamarquesa Channe Nussbaum (que canta em dois temas do álbum) e alguns originais. Em «A Terk in America», um tradicional, uma guitarra eléctrica em distorção rock abre caminho a um comovente solo de clarinete klezmer purinho... e muito raramente dois espectros musicais tão diferentes conseguem soar tão bem em conjunto. (8/10)

26 janeiro, 2007

Blasted Mechanism - O Som da Luz (e A Luz do Som)


O quarto álbum dos Blasted Mechanism, «Sound In Light», chega às lojas no dia 19 de Março, num formato inovador. Segundo um comunicado da Universal Music, «ao colocar o disco original de “Sound in Light” no seu pc surge um link que dá acesso a um sítio onde poderá fazer o download gratuito de um 2º CD, “Light in Sound”, que contém mais dez temas originais... Neste sítio também vão poder fazer o download da parte gráfica da bolacha e em seguida colá-la no seu CDR. O digipack do CD trará uma abertura onde poderá colocar a bolacha do 2º CD».

O álbum - produzido por Ary, baixista da banda, no estúdio da Toolateman e misturado por Dominique Borde e Ary no estúdio da Praça das Flores - conta com a presença de alguns convidados de peso: o mestre da guitarra portuguesa António Chaínho, o flautista Rão Kyao, Macaco (Espanha), Transglobal Underground (Reino Unido), Nidi D'Arac (Itália), Gaia Beat(Portugal) e Kumpa'nia Al-gazarra (Portugal).

Ainda segundo o mesmo comunicado, «o poder do Som será revelado à humanidade no dia em que esta compreender o poder oculto nas palavras e aprender a utilizá-las de acordo com as leis evolutivas. Nesse poder, o som e o silêncio unificam-se transpondo assim a barreira do Ego liderando o Homem a níveis elevados de consciência... A Luz é o elemento essencial presente no centro de todas as partículas criadas. Ao manifestar-se conduz as criaturas ao seu verdadeiro destino, levando assim o ser humano a atingir tal compreensão da Luz, que passe a viver nela e através dela se expressar».

«Lisboa-Maputo-Berlim» - Outras Pontes Musicais


O último post deste blog falava de música africana (e outras) em Lisboa. Neste fala-se de músicos africanos e portugueses a trabalharem com uma cantora alemã: «Lisboa-Maputo-Berlim» é o nome de um projecto/espectáculo que vai ter a sua estreia, dia 17 de Março, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Uma ponte rara - promovida pelo Goethe-Institut - que reúne a cantora de jazz e professora de música alemã Céline Rudolph com uma banda formada pelo baixista Gogui (Guiné-Bissau), o baterista e percussionista N’Dú (Angola), o pianista Ruben Alves (Portugal) e o teclista João Gomes (dos Cool Hipnoise e Spaceboys), tendo ainda como convidados especiais o guitarrista e baixista Costa Neto (Moçambique), o percussionista Mick Trovoada (São Tomé), o «diseur» Kalaf (Angola) e o mestre da kora mandinga Galissa (Guiné-Bissau). Todos juntos, perseguem «o confronto com o outro, a procura de uma essência musical conjunta, a alegria da experimentação e a riqueza dos sons deste mundo». Depois do espectáculo em Lisboa, o grupo segue para concertos no Porto, Maputo, Joanesburgo, Munique, São Paulo e Berlim, todos eles com a inclusão de músicos residentes nestas cidades. Mais pontes...

25 janeiro, 2007

Músicas Mestiças em Lisboa - Espelhos de Espelhos de Espelhos


A Lisboa - cidade que foi durante séculos capital de um império colonial em África e na América do Sul - chegam todos os dias muitas pessoas vindas de países que falam português. Um português híbrido, vivo, mestiço, em constante mutação. Falado por gente de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Brasil... E, entre eles, muitos músicos que, em Lisboa e com outros músicos, africanos, brasileiros e portugueses, misturam as músicas de raiz dos seus países com muitos e variados géneros: jazz, funk, soul, disco, electro, tecno, hip-hop, drum'n'bass, reggae, tudo junto num caldeirão em ebulição permanente de criatividade e liberdade. Num jogo de espelhos interminável. Aqui em baixo fala-se do magnífico documentário «Lusofonia, A (R)evolução», do novo álbum dos Cool Hipnoise (na foto) e da caixa «Angola».


O recente documentário «Lusofonia, A (R)evolução» - produzido pela Red Bull Music Academy, com guião de Artur Soares da Silva e João Xavier - é um espelho perfeito de uma nova realidade que está em construção em Lisboa: a criação de uma música híbrida, viva, mutante, que vive dos cruzamentos e da fusão de músicas africanas com música portuguesa (nomeadamente o fado) e com géneros anglo-saxónicos. Produto óbvio de 500 anos de convívio, miscigenação e trocas entre Portugal, África e Brasil, a nova música feita na capital portuguesa, uma cidade cada vez mais cosmopolita, está aberta a centenas de influências e incontáveis fusões possíveis. No documentário fala-se de «hip-hop em crioulo, música de dança com samples de kuduro, letras em português sobre estruturas contemporâneas» e de muitas outras misturas em desenvolvimento em Lisboa e nos seus arredores onde se concentram as comunidades africanas.

Bons exemplos disso são o DJ, produtor e compositor Sam The Kid, português branco de sotaque africano, que inclui na sua música samples de música brasileira e africana, do fadista Carlos do Carmo e de James Brown; Sara Tavares, portuguesa de origem cabo-verdiana que foi recentemente nomeada na categoria Revelação para os Prémios World Music da BBC; ou os excitantes e recentes Buraka Som Sistema, um colectivo multicultural que faz aquilo a que eles chamam kuduro progressivo (ver crítica ao EP «From Buraka To The World» mais em baixo, neste blog). Os Buraka Som Sistema - que integram três angolanos, um português e um português de origem indiana e moçambicana - pegam no kuduro angolano (uma música urbana devedora do tecno, do hip-hop, do baile funk brasileiro e de ritmos tradicionais angolanos), limam-lhe as arestas mais duras, produzem-no, retiram-lhe parte da carga interventiva das letras de origem e servem-no de uma forma nova e extremamente atraente para os ouvidos ocidentais. Deste grupo faz parte Kalaf, poeta e «diseur» angolano e uma das vozes mais activas no circuito musical lisboeta - para além do seu projecto a solo e dos BSS tem participações em discos dos Cool Hipnoise, Spaceboys, Bulllet, 1-Uik Project (agora One Week Project), dos ingleses Up, Bustle & Out e no disco de spoken-word «Secret Voice, No Time For Silence» (ao lado de Ursula Rucker). E é também esta característica - de muita gente a colaborar com muita gente de origens diversas - que faz a actual riqueza da música produzida em Lisboa. Uma cidade que tem como símbolo musical o fado, música que muito provavelmente tem uma origem africana antes de passar pelo Brasil (o lundum) e se transformar, no séc. XIX, no português fado. No documentário, Sara Tavares diz logo a abrir: «no estrangeiro há muita gente que não sabe que há portugueses pretos». Assim como, geralmente, se desconhece, citando João Gomes, teclista dos Cool Hipnoise, que «toda a gente em Portugal tem contacto com o merengue, a marrabenta e com ritmos cabo-verdianos (mornas, coladeiras, funanás...). Qualquer lisboeta ouviu música diferente de alguém de Milão ou de Paris ou de outra qualquer cidade europeia».

Cool Hipnoise que foram, em meados dos anos 90, protagonistas de uma música de fusão que ia ao hip-hop e à soul, à música africana e brasileira e que têm agora um novo álbum, «Cool Hipnoise» (Metrodiscos/Som Livre), em que a mestiçagem de vários géneros está ainda mais presente que no passado. Oiça-se «Caótica República», em que há ecos de Manu Chao ou Amparanoia; o reggae-electro de «Dois Dias»; o ragga-soul (a carburar em steel-drums) de «Kita Essa Dama»; o funk-afro-beat de «Katinga»; o «blaxploitation» solarengo de «Dias da Confusão»; o disco-sound divertidíssimo e lá pelo meio infectado por África de «Escanifobética»; o funk ácido de «Tudo a Nu»; a súmula perfeita disto tudo que é «Dá-me Dá»; ou o delírio hip-hop hiper-realista da faixa-bónus... Os Cool Hipnoise - agora um colectivo alargado formado por Francisco Rebelo, Tiago Santos, João Gomes, Marga Munguambe, Milton Gulli, Marcos Alves e Hugo Menezes - tiveram no álbum a colaboração de Virgul (Da Weasel), Luís Simões (Saturnia/Blasted Mechanism), Sam The Kid, Regula e de membros da Tora Tora Big Band, entre outros.

Os Cool Hipnoise - que no seu projecto paralelo Spaceboys se atiram a misturas de kuduro, electrónica, funk e jazz - surgiram paralelamente ao explodir definitivo do hip-hop em Lisboa e arredores, feito por brancos e negros, através de nomes como General D (que cruzou sabiamente a música africana com o rap nos dois álbuns que editou antes de se desligar das lides musicais), Da Weasel (actualmente um dos grupos de maior sucesso em Portugal) e os grupos presentes numa colectânea pioneira, «Rapública», que deu a conhecer Boss AC (outro campeão de vendas em Portugal), Zona Dread (de onde saiu D Mars), Family (de Melo D, primeiro vocalista dos Cool Hipnoise) e os fugazes Black Company. E à constatação de que o reggae poderia ser uma música de sucesso, através dos Kussondulola e da sua mistura de ritmos jamaicanos com sembas e merengues angolanos.

Mas a presença da música africana em Lisboa vem muito de trás. Nos anos 60, artistas africanos como o Duo Ouro Negro ou Eduardo Nascimento têm enorme sucesso em Portugal. Nos anos 70, o cantor angolano Bonga salta para a ribalta e uma dinâmica comunidade artística cabo-verdiana começa a formar-se em Lisboa, no bairro de S.Bento. Dela emergem ao longo dos anos 70 e 80 nomes como Dany Silva, Tito Paris, Celina Pereira, Bana ou Ana Firmino (mãe do rapper Boss AC). Já na música portuguesa, a influência de África é notória em cantores como José Afonso, Fausto, Sérgio Godinho, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho ou da cantora de jazz Maria João. E no caso de Sérgio Godinho e de Maria João, a sua mistura também atinge muitas vezes o Brasil, também porto estético preferencial de Eugénia Melo e Castro e, mais recentemente, de JP Simões. Mas já antes, esse contacto existia intimamente: «Barco Negro» (uma das canções mais famosas de Amália Rodrigues, a diva do fado, é uma canção brasileira de Caco Velho). E o caminho inverso também aconteceu, com poetas e cantores brasileiros - Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Fafá de Belém, Joanna, Ney Matogrosso... - a comporem ou a incluírem fados no seu reportório.

Paradoxalmente, muita da música africana criada e nascida em Lisboa e arredores passou para o «formato» disco em editoras cabo-verdianas ou francesas, só muito raramente em editoras portuguesas - durante muitos anos as editoras nacionais tiveram a ideia de que «a música africana não vende». Um panorama que recentemente teve o seu contraponto, tanto mais irónico quanto raro, na fabulosa caixa «Angola - As 100 Grandes Músicas dos Anos 60 e 70», em que estiveram envolvidas a Valentim de Carvalho (que forneceu as fitas originais das canções), a Difference Music (que editou) e a Som Livre (que distribui). Uma caixa onde se encontram cem preciosos temas de artistas angolanos perdidos algures nos armazéns da VC e agora, felizmente, resgatados para a luz do dia. Possivelmente, muitos deles provocarão um sorriso aberto motivado pela ingenuidade dos arranjos presentes mas muitos outros (e até aqueles) têm lá dentro os germes de muita da música actual - e não só em Angola. A caixa inclui um livro com uma breve História de Angola, das suas línguas, da sua música. Só falta informação mais específica (e algumas fotos) sobre os artistas presentes.

Nos últimos anos, a proliferação de projectos híbridos, mestiços, multiculturais em Lisboa levou a inúmeros e incrivelmente diversos novos projectos onde há lugar para o novo-fado de Mariza (portuguesa de origem moçambicana e a maior embaixadora do fado na actualidade); a música cabo-verdiana modernizada de Lura e Sara Tavares; o hip-hop interventivo de Chullage, Nigga Poison, SP & Wilson ou Conjunto Ngonguenha; o reggae afro-jamaicano dos Mercado Negro e de Prince Wadada; a música brasileira de Cyz e dos Couple Coffee (Brasil que também está bem representado em Lisboa por dois espantosos músicos de jazz: o baterista Alexandre Frazão e o saxofonista Alípio Carvalho Neto); para um baterista como N'dú (da banda de Tcheka e Sara Tavares), que funde funk e drum'n'bass com ritmos africanos; para projectos híbridos e em que se juntam portugueses, africanos e músicos de outras nacionalidades como o grupo de Lindú Mona, os Terrakota, os Tama Lá ou os Djumbai Jazz; para a música angolana mas cada vez mais universal de Waldemar Bastos; ou para o n'gumbé excitante do guineense Manecas Costa.

Um dos momentos mais marcantes de «Lusofonia, A (R)evolução» acontece quando surgem imagens intercaladas da revolução de 25 de Abril de 1974 e das actuais festas comemorativas dessa revolução: DJs como Nel'Assassin e outros cruzam beats de hip-hop com velhas canções de intervenção e samples de transmissões radiofónicas do dia 25 de Abril. Quase logo de seguida, Johnny (da Cooltrain Crew) diz: «Estamos a assistir ao nascimento de algo novo». Uma nova revolução que, idealmente, pode atingir 220 milhões de pessoas que falam português. De Portugal ao Brasil e aos países africanos de língua portuguesa, sim, mas também de outros lugares: Galiza, Macau, Timor-Leste, partes da Índia e todas a comunidades portuguesas e lusófonas espalhadas pelo mundo.

24 janeiro, 2007

«Soul To Soul» - O Regresso à Terra-Mãe


Neste momento já não há grandes dúvidas de que muitas das músicas actuais tiveram a sua origem em África (dos blues ao samba, da salsa ao reggae, muito possivelmente até o fado...), mas em 1971, quando muitos músicos e cantores negros norte-americanos viajaram até ao Gana para o festival Soul To Soul não era à procura das origens da sua música que eles iam. Era à procura da sua própria origem. O resultado - visível e audível no DVD «Soul To Soul» - é ao mesmo tempo comovente, didáctico, militante, por vezes divertido e musicalmente bastante rico e variado. O texto que deixo aqui hoje foi publicado originalmente no Blitz em Fevereiro de 2005.


VÁRIOS
«SOUL TO SOUL»
DVD Rhino/Warner Music Vision

«Os brancos levaram-nos daqui de barco e agora voltámos de avião», diz Ike Turner, então ainda com Tina Turner (ambos na foto), a propósito desta viagem que cerca de 130 norte-americanos - cantores e músicos, jornalistas, equipa de filmagens -, na sua maioria negros, fez ao Gana, em 1971. E Ike referia-se, obviamente, não apenas a este grupo de pessoas, mas aos escravos africanos que - alguns séculos antes - tinham viajado de África para as Américas. O objectivo da viagem era o festival de música Soul To Soul, em Accra, no Gana, que reuniu Wilson Pickett, Ike e Tina Turner, Santana, Les McCann & Eddie Harris, The Staples Singers, Voices of East Harlem e Roberta Flack, entre outros, e alguns músicos africanos. Representantes da soul, do jazz, do gospel, do rhythm'n'blues e das músicas tradicionais ou modernas africanas.

Mas havia outro objectivo, declarado por quase todos: conhecer a «terra-mãe», o local de origem distante, o «paraíso perdido». E esta é, portanto, uma viagem simbólica, iniciática, de regresso a umas raízes que eles não sabem bem quais são: ao longo dos séculos, os negros americanos - tal como referia muitas vezes Ali Farka Touré - deixaram de saber qual a etnia dos seus ancestrais, qual a língua que falavam, de que cultura específica provinham. Mas isso não impedia, por um lado, que um professor ganês dissesse que conseguia descobrir a origem remota de cada um dos americanos observando-lhes os traços físicos ou que, por piada, Wilson Pickett tivesse sido incluído na tribo Ashanti - cujos homens usam escarificações rituais no rosto - por causa das suas duas cicatrizes na cara. Ainda algo longe das teorias sobre as origens dos blues - e logo, do jazz, do r&b, do rock'n'roll, da soul, do funk, etc, etc... - na música mandinga da África Ocidental, o objectivo confesso da maior parte dos músicos americanos era, para quase todos pela primeira vez, respirar o ar de África, sentir as reacções dos «primos» perdidos, «regressar a casa»: é a procura da «soul» verdadeira, da alma, do sopro, da inspiração original. E é aí que este filme - apesar de também ter alguns momentos de música magníficos - ganha em toda a linha, mostrando as danças tradicionais que recebem os artistas americanos, em apoteose, no aeroporto, os percussionistas Accra Ga Royal Drummers, Ishmael Adams & The Damas Choir (num tema que é um eco distante e arrepiante do gospel), cenas do quotidiano (um nascimento, uma festa de casamento, um funeral), a visita às masmorras onde eram guardados os escravos antes de viajarem para Europa e para as Américas...

O Gana foi, em 1957, o primeiro país da África negra a tornar-se independente das potências europeias (no caso, a Grã-Bretanha), liderado por Kwame Nkrumah, um dos gurus dos movimentos de libertação africanos e do movimento pelos direitos civis norte-americano. E fazia todo o sentido que este festival - organizado por Ed Mosk, que um ano antes tinha assistido ao lendário concerto de James Brown em Lagos, na Nigéria - fosse realizado neste país. Paralelamente, o realizador Denis Sanders (o mesmo de «Elvis: That's The Way It Is») ficou encarregue de registar o acontecimento para a posteridade (o filme-documentário «Soul To Soul» circulou em 1971; o DVD é agora editado).

E o resultado foi um sucesso: cem mil pessoas assistiram ao festival, dezenas de músicos americanos tomaram, pela primeira vez, contacto directo com África num exercício - emocional, mais do que racional - de reconhecimento das suas origens remotas. E com excelentes resultados: Wilson Pickett (um ídolo no Gana na altura, só ultrapassado por James Brown) tem aqui versões superlativas de «In The Midnight Hour» e «Land of 1000 Dances»; Ike & Tina Turner incendeiam a audiência com, entre outros, «Soul To Soul» e o lindíssimo blues «River Deep - Mountain High»; as Staples Singers e os jovenzinhos das Voices of East Harlem (um deles com uma T-shirt que diz «Be black with the voices») levam o gospel de volta a casa; Carlos Santana, apesar da sua origem mexicana, assina - segundo os colegas - a prestação mais «africana» de todas, devido às percussões e às aproximações aos ritmos afro-cubanos; e Les McCann & Eddie Harris mostram um jazz-blues estranho para a audiência, conquistada a partir do momento em que o percussionista local Amoah Azangeo (também feiticeiro) se atira a um solo vertiginoso de cabaça. E é aqui que se compreende claramente como estes dois mundos estão mesmo tão perto.

(O DVD «Soul To Soul» inclui ainda, para além do documentário original - embora sem a presença de Roberta Flack, que não permitiu a inclusão de imagens suas no DVD -, comentários actuais de alguns dos participantes e, como disco-bónus, um CD audio com muitos temas repetidos do DVD mas também com alguns inéditos, como as participações do guitarrista Kwa Mensah ou dos Kumasi Drummers e o tema «Soul To Soul», gravado em 2004 por Earl Thomas)

23 janeiro, 2007

Ala dos Namorados - Agora em Duo...


A Ala dos Namorados perdeu o fundador João Gil, mudou de editora - da EMI para a Universal - e está de regresso com um novo álbum, «Mentiroso Normal», que deve chegar às lojas a 26 de Fevereiro. Com o núcleo duro reduzido a Nuno Guerreiro (voz) e Manuel Paulo (teclas e composição musical), a Ala dos Namorados é agora completada por um elenco de luxo angariado no meio do jazz (se aqui se entender o jazz como um conceito lato e aberto): Mário Delgado (guitarra), Alexandre Frazão (bateria), Massimo Cavalli (contrabaixo) e Ruben Santos (trombone). Nas gravações do álbum participaram ainda, como vozes convidadas, Jorge Palma, a cabo-verdiana Nancy Vieira e o açoriano José Medeiros. «Mentiroso Normal» tem produção de Manuel Paulo, letras de João Monge (quase todas), Carlos Tê e Nuno Guerreiro (que se estreia como letrista, com «Voltas (Do Meu Destino)» e inclui uma versão do tema «13 anos, 9 Meses» de José Mário Branco. O primeiro single é o tema «Caçador de Sóis», que deve chegar às rádios no final desta semana.

22 janeiro, 2007

Bellowhead, The Devil's Interval e Uiscedwr - A Folk Britânica Rejuvenescida


Depois de alguns anos de relativo apagamento criativo, a folk gravada nas ilhas britânicas atingiu o ano passado um novo e excitante pico de qualidade e criatividade. Quer através de discos de veteranos como Bert Jansch ou o projecto Waterson:Carthy, quer de grupos e artistas emergentes na cena folk como Tim Van Eyken, Karine Polwart ou os três grupos de que se fala aqui hoje: os Bellowhead (na foto, de David Ange), The Devil's Interval e os Uiscedwr.


BELLOWHEAD
«BURLESQUE»
Westpark Music

Alguém pediu uma big-band (onze-elementos-onze) onde se junta o que de melhor tem a folk inglesa com outras músicas como o klezmer, a country norte-americana, os necessários aromas «celtas», jazz de Nova Orleães em ambiente Tom Waits-cabarético, a música cigana dos Balcãs, rock progressivo sem electricidade incluída e até uma adaptação de «Clube da Esquina» de Milton Nascimento?... Tudo envolto em ambientes ora soturnos ora luminosas, ora românticos ora cinemáticos ora divertidos?... Essa banda existe, chama-se Bellowhead e editou o ano passado um álbum de estreia extraordinário, «Burlesque», em que a sua mistura de muitas músicas é sempre de uma coerência e de uma beleza ímpares (os instrumentos - muitos e variados, como se pode concluir só de se dizer quantos músicos por lá andam - são sempre estupidamente bem tocados; a voz de Jon Boden é muito boa e os outros também não se safam nada mal em várias harmonias vocais...). Os Bellowhead partem quase sempre de temas tradicionais (alguns com centenas de anos) para os afogar em inventivos arranjos que metem ao barulho vozes, melódicas e violinos, banjos e trompetes, sousafones e xilofones, baterias e violoncelos. A banda formou-se em 2004 pela mão do duo John Spiers/Jon Boden e é a maior revelação da música britânica dos últimos anos. Muito justamente. (9/10).


THE DEVIL'S INTERVAL
«BLOOD & HONEY»
Wild Goose Records

Se em relação aos Bellowhead se sublinhou a riqueza e inventividade das orquestrações de instrumentos, no caso dos Devil's Interval o aplauso absoluto vai para as maravilhosas, belíssimas!, harmonias vocais dos três elementos do grupo: as duas raparigas Lauren McCormick e Emily Portman e o rapaz Jim Causley. É verdade que, por vezes, eles também tocam outros instrumentos (flauta, concertina e acordeão, que aparecem em poucos temas, como «tapete» ou como apontamento), mas é no jogo das três vozes a voar sobre canções tradicionas das ilhas britânicas - mesmo que uma delas «recolhida» num álbum de... Dolly Parton - que o arrepio, um arrepio enorme para quem ouve, acontece em cada tema que se ouve. Diga-se de passagem que nenhum deles tem veleidades operáticas ou virtuosísticas na sua interpretação: nos Devil's Interval as vozes parecem nascer da terra, de um tempo antigo, do fundo da alma ou do fundo de um pub (cf. no divertidíssimo «Blow Me Jack»). Este é apenas o primeiro álbum do trio - que também pode ser ouvido em muitos temas do último álbum do projecto Waterson:Carthy, ««Holy Heathens and the Old Green Man» (do qual falarei proximamente neste blog) - mas é suficiente para augurar aos Devil's Interval um futuro brilhante. (8/10)


UISCEDWR
«CIRCLE»
Yucca Records

E se no caso dos Bellowhead e dos Devil's Interval - salvaguardando as devidas distâncias em cada uma das suas aproximações à folk - estamos no domínio da música tradicional inglesa (principalmente), com os Uiscedwr mergulhamos de cabeça no universo da música dita «celta», mesmo que feita por um trio que teve a sua origem em... Manchester. E se o primeiro tema deste segundo álbum da banda é demasiado «pop» e fácil, o que se segue é um nunca mais acabar de boas surpresas e de excelentíssima música. Os Uiscedwr (palavra que significa «água» em gaélico e que deve ser lida mais ou menos assim: «ish-ka-dooer») são Anna Esslemont (voz principal, violino e harpa), Kevin Dempsey (guitarra e voz-solo em «The Music Bringer»; ele que é a última aquisição do grupo e o seu membro mais veterano, tendo tocado com Mary Black e Dave Swarbrick) e Cormac Byrne (bodhran e outras percussões), músicos que têm as suas origens repartidas pelo País de Gales, Inglaterra e Irlanda e um gosto comum pela música «celta», sim, mas também por muitas outras músicas: em «Circle», a folk é envolvida em elaborados arranjos (apesar dos poucos instrumentos utilizados) que levam muitas vezes as canções, na sua maioria originais do grupo, para a pop, a música barroca, o flamenco, a música latino-americana, algumas variações jazzísticas ou a música cigana do leste europeu. Uma festa! (9/10)

19 janeiro, 2007

Festivais Folk/World - O Que Aí Vem...


Em mais uma notícia gentilmente pilhada ao Crónicas da Terra, do camarada Luís Rei, aqui ficam as datas e alguns nomes já avançados para alguns dos festivais folk / world / tradicional que aí vêm. E a grande nova é (aleluia!) o regresso do Festival Intercéltico ao Porto (e ainda com extensões a Arcos de Valdevez e à Praia da Vitória, Açores), dias 27 e 28 de Abril, no Cinema Batalha, já com dois nomes confirmados: a Brigada Victor Jara e os Lúmen. Os Lúmen que bisam - e são para já o único nome confirmado - no Intercéltico de Sendim (novamente com início em Fermoselle, na Galiza, dia 2 de Agosto, e continuação em Sendim, dias 3, 4 e 5). Outros festivais já com datas confirmadas são o Med de Loulé (de 27 de Junho a 1 de Julho), África Festival em Lisboa (de 28 a 30 de Junho, na Torre de Belém), Festival Portugal a Rufar (de 1 a 3 de Junho, na Fábrica Mundet, Seixal), Festival Músicas do Mundo de Sines (20 a 22 de Julho em Porto Covo, 23 a 28 em Sines), Festival África'Ki (dias 8 e 9 de Setembro, na Casa da Ribeira, Tábua) e, para dar o arranque, o festival Musikando, em Serpa e redondezas, que começa já hoje, dia 19, com os Rodopis (Bulgária) e continua amanhã com a Union Salsera (Cuba) estando o fim-de-semana seguinte reservado para os nossos Dazkarieh, dia 26, e Kimi Djabaté (Guiné-Bissau), dia 27. Acrescentando-se ainda o Entrudanças de 17 a 19 de Fevereiro (em Entradas, Castro Verde) e o Andanças, de 30 Julho a 5 Agosto (Carvalhal, S. Pedro do Sul), o calendário começa a ficar bastante bem composto.

18 janeiro, 2007

Cromos Raízes e Antenas X



Este blog continua hoje a publicação da série «Cromos Raízes e Antenas», constituída por pequenas fichas sobre artistas, grupos, personagens (míticas ou reais), géneros, instrumentos musicais, editoras discográficas, divulgadores, filmes... Tudo isto sem ordem cronológica nem alfabética nem enciclopédica nem com hierarquia de importância nem sujeita a qualquer tipo de actualidade. É vagamente aleatória, randomizada, livre, à vontade do freguês (ou dos fregueses: os leitores deste blog estão todos convidados a enviar sugestões ou, melhor ainda!, as fichas completas de cromos para o espaço de comentários ou para o e-mail pires.ant@gmail.com - a «gerência» agradece; assim como agradece que venham daí acrescentos e correcções às várias entradas). As «carteirinhas» de cromos incluem sempre quatro exemplares, numerados e... coleccionáveis ;)


Cromo X.1 - Os Mutantes


Exemplo maior e pioneiro de como as músicas locais se podem fundir na perfeição com músicas «globais», o movimento brasileiro do tropicalismo (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé...) teve no grupo Os Mutantes a sua expressão mais radical. Os Mutantes nasceram em 1966, em São Paulo, pela mão de Rita Lee (voz), Sérgio Dias (guitarra e voz) e Arnaldo Baptista (baixo, teclados e voz) e cedo se destacaram com a sua mistura de música brasileira com o psicadelismo, o garage, o experimentalismo (inclusive na criação de instrumentos próprios, como as «guitarras de ouro» construídas por Cláudio César). Depois, colaboram com Gilberto Gil, criam espectáculos cénicos completos (entre os Beatles e os Velvet Underground/Andy Warhol o seu coração balança), atiram-se ao rock progressivo, mudam de formação várias vezes... até acabarem em 1978. Agora fazem parte das brumas de uma belíssima lenda; uma lenda que renasceu durante alguns meses para uma digressão internacional em 2006 (com Zélia Duncan no lugar de Rita Lee).


Cromo X.2 - Sandy Denny


Voz inesquecível da folk britânica, Sandy Denny (Alexandra Elene MacLean Denny; nascida a 6 de Janeiro de 1947 e falecida a 21 de Abril de 1978) será para sempre recordada como a cantora da fase de ouro dos Fairport Convention. Em meados dos anos 60 fez parte dos Strawbs e gravou um álbum a solo antes de ingressar nos Fairport Convention, com os quais gravou três álbuns fundamentais da folk britânica. Em 1969 Sandy forma a sua própria banda, Fotheringay, que tem uma existência fugaz, antes de gravar alguns álbuns a solo, com músicos convidados dos... Fairport Convention, banda a que regressa em 1972 para a gravação de um álbum genial, «Rising for the Moon». No interim é o contraponto perfeito de Robert Plant no dueto de «The Battle of Evermore», dos Led Zeppelin. Continua a gravar nos anos 70 mas a sua estrela vai-se apagando - Sandy foi, durante muitos anos, dependente de álcool e drogas duras - até à sua morte.


Cromo X.3 - Bouzouki


Instrumento-símbolo da música tradicional grega - mas adoptado também pela música balcânica e por uma miríade de grupos folk britânicos (principalmente na sua variante irlandesa) e não só... -, o bouzouki é um cordofone com o corpo em forma de pêra e um braço bastante longo. Descendente do alaúde e irmão da bandola e do saz (da Turquia), o bouzouki foi chamado na antiguidade «pandouris» ou «pandourion» e é geralmente considerado o primeiro cordofone conhecido (há documentos do séc. IV A.C. a ele referentes). No séc. XX, o bouzouki fica indelevelmente ligado ao género musical grego por excelência, a rembetika, e chega à fama internacional através do filme «Zorba, O Grego». Mas antes disso, no início do século, foi perseguido porque era associado ao mundo do crime, tendo alguns intérpretes de bouzouki sido presos por tocá-lo.


Cromo X.4 - Hoba Hoba Spirit


Originários de Casablanca, em Marrocos, os Hoba Hoba Spirit são os líderes da «hayha music», género que mistura músicas ocidentais (punk, funk, reggae...) e do norte de África (châabi, rai, gnawa...) com mensagens de paz e tolerância. Os Hoba Hoba Spirit nasceram em 1998, um pouco à imagem do «DIY»: dois amigos, vagamente músicos, o guitarrista e letrista Reda Allali e o percussionista e cantor Aboubakr Zehouani, juntaram-se para fazer música apenas por divertimento, aos quais se juntou depois outro guitarrista, Anouar (irmão de Aboubakr). Mas a história dos Hoba Hoba Spirit só começa a sério em 2002: sem Aboubkar, o duo remanescente (Reda e Anouar) recruta músicos profissionais para o projecto e lança-se à conquista de vários palcos (Marrocos, França, Alemanha...). Escuta aconselhada: «Blad Sziko», álbum de 2005.

17 janeiro, 2007

Rui Júnior: O Senhor-Tambor


Rui Júnior (na foto, de Lia Costa Carvalho) é o mais respeitado percussionista e mestre das percussões português. Companheiro de estrada e de estúdio de compositores e cantores como José Afonso, José Mário Branco, Fausto, Janita Salomé ou Amélia Muge; criador do inventivo grupo de percussões O Ó Que Som Tem? no início dos anos 80; inventor da frutuosíssima escola/orquestra Tocárufar (por onde já passaram centenas e centenas de percussionistas) e das suas veredas como o WOK, Rui Júnior lançou há dois anos o Festival Portugal a Rufar, do qual se espera este ano a terceira edição (em adenda: entretanto já com datas e local confirmados, tal como informa o Crónicas da Terra: dias 1, 2 e 3 de Junho na Fábrica Mundet, Seixal). Aqui recordo a entrevista de apresentação desse festival, publicada originalmente no BLITZ em Maio de 2005.


RUI JÚNIOR/PORTUGAL A RUFAR
À FLOR DAS PELES

Este fim-de-semana, o Seixal vai receber o 1º Festival Portugal a Rufar, dedicado essencialmente às percussões. Rui Júnior explica a ideia...

Rui Júnior - um dos mais respeitados percussionistas portugueses, fundador do O Ó Que Som Tem?, ideológo da orquestra Tocá Rufar e do C.A.I.S. (Centro de Artes e Ideias Sonoras) - tinha este sonho há muitos anos: fazer um festival centrado nas percussões - nacionais e estrangeiras -, embora não se fechando apenas nelas. Há poucos meses, com a ajuda de António Miguel Guimarães (da Magic Music), o sonho tomou corpo. Pela Quinta da Fidalga, no Seixal, vão passar, nos dias 27, 28 e 29, os O Ó Que Som Tem? - que também actuam, com o convidado Pedro Carneiro (percussionista de música erudita) no Fórum Cultural do Seixal, dia 27 -, Mercado Negro, Tucanas, Maria Léon, Wok, Batoto Yetu, Tocá Rufar, Djamboonda, Bácoto, Entredanzas, Finka-Pé, Tocandar, Bardoada, Morabeza, Grupo Khapaz e Awaav, entre outros.

A génese do festival está, diz Rui Júnior, nos tempos remotos da primeira encarnação do grupo de percussionistas e bateristas O Ó que Som Tem?, no início dos anos 80. «Este festival está pensado há muitos anos, cerca de 20, mas há que esperar que as coisas se conjuguem para poderem ser concretizadas. E já desde os tempos da Farol, quando o António Miguel Guimarães editou o álbum "Ó Tambor", do O Ó Que Som Tem? (1996), ficámos com a ideia de fazer um festival internacional de percussão. Há uns meses sentámo-nos à mesa e avançámos com a ideia do festival, que se vai concretizar agora».

Rui Júnior trabalhou em discos e/ou espectáculos de Fausto, Júlio Pereira, José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Vitorino, Janita e Jorge Palma, entre muitos outros. E é, muitas vezes, considerado como o «pai» dos percussionistas portugueses - mercê do seu trabalho como músico, divulgador e aglutinador de vontades (e a Orquestra Tocá Rufar, que chega a juntar centenas de percussionistas nalguns espectáculos, é um bom exemplo da sua persistência e vontade de fazer). Mas ele recusa o «rótulo». «Há quem diga que sou o pai ou até o avô das percussões. Mas eu sinto-me muito mais o filho das percussões. Lido com as percussões tradicionais portuguesas desde os seis anos, quando comecei a tocar caixa de rufo, nos Mareantes do Rio Douro, em Gaia. Se calhar, fui tão só um pioneiro na revitalização das percussões tradicionais portuguesas».

Durante o festival será apresentada a nova formação dos O Ó Que Som Tem?, grupo por onde passaram bateristas e percussionistas como José Salgueiro, Fernando Molina, Nuno Patrício, João Luís Lobo, João Nuno Represas e José Martins, entre outros. Os novos O Ó Que Som Tem? incluem, para além de Júnior, «Filipe Henda e Carlos Mil-Homens, que começaram há alguns anos no Tocá Rufar e passaram pelo WOK; e também o Vicky, que vi a tocar num bar e me impressionou bastante como baterista. São três jovens fogosos (risos)».

O festival Portugal a Rufar não tem apenas grupos exclusivamente de percussões. A razão é simples: «Há uma grande componente de percussão, mas não queremos limitar-nos ao nosso próprio umbigo. E isso acontece em relação aos instrumentos e ao âmbito internacional do festival - vamos ter grupos africanos, indianos, espanhóis, etc. E podemos ter um espectáculo de mímica ou teatro, porque o ritmo não é apenas sonoro». Durante o Festival vai haver uma grande exposição de instrumentos de percussão de todo o mundo «onde as pessoas vão poder mexer nos instrumentos. As pessoas podem experimentá-los, tocá-los, senti-los. E isto é inovador - mas não quero esconder os instrumentos atrás de uma vitrine». Workshops, showcases, ateliers, debates e um seminário sobre instrumentos de percussão por Domingos Morais completam a ementa, suculenta, do festival. E uma boa notícia é que já estão garantidos, para além deste, mais três festivais Portugal a Rufar -- em 2006, 2007 e 2008.

Rui Júnior acompanha com interesse e carinho o crescimento do número de projectos nacionais nas áreas da música folk/tradicional - «tem havido um crescimento da valorização das culturas tradicionais. Mas penso que andamos, ainda, a passo de caracol. O que o Tocá Rufar - uma orquestra de bombos - trouxe ao panorama nacional foi uma prova de que é possível fazer alguma coisa a partir do nada. E fazer no sentido de mexer na cultura, trazê-la para a actualidade e valorizá-la». Neste momento, o Tocá Rufar está em actividade nos concelhos do Seixal e do Fundão, trabalhando com quase todas as escolas primárias dos dois concelhos, movimentando cerca de 900 alunos. Isto, apesar de por vezes se ver confrontado com dificuldades. Rui Júnior dá um exemplo: «O Tocá Rufar tem realizado projectos, com o apoio da Comunidade Europeia, de terapia pela percussão com grupos de risco. E tem realizado projectos de intercâmbio com países da baía mediterrânica, nomeadamente Tunísia, Turquia, Grécia, Malta e Chipre. Vimos recentemente um projecto recusado pelo IPJ (Instituto Português da Juventude), porque repetimos o convite a um grupo de 10 autistas profundos, vindos de Malta, para se integrarem num grupo com 50 autistas portugueses. E repetimos esse convite porque a terapia tem que ser continuada durante seis, sete anos, não se esgota numa acção anual. E o IPJ recusa o projecto porque, segundo eles, "carece de inovação". Eu não conto com o poder, mas às vezes espero que o Poder, pelo menos, saiba ler relatórios».

16 janeiro, 2007

Amélia Muge - De Onde É Que Ela É?


Cinco anos depois do álbum «A Monte», a cantora e compositora Amélia Muge (na foto, de Augusto Brázio) está de regresso aos discos com o álbum «Não Sou Daqui». Com edição da Vachier & Associados, o álbum chega às lojas no dia 29 de Janeiro e tem apresentação ao vivo marcada para dia 17 de Fevereiro, na Culturgest, em Lisboa. Segundo um comunicado da editora, «Não Sou Daqui», primeiro tomo de uma trilogia, é um álbum que «interroga a canção, desafiando-a como "um possível lugar de todos", enquanto os dois outros futuros álbuns estarão ligados à música de tradição europeia e às relações entre música, palavra e tecnologia». O álbum - que contém treze canções compostas por Amélia Muge sobre poemas de António Ramos Rosa, Eugénio Lisboa, Hélia Correia, Sophia de Mello Breyner Andresen e dela própria - tem produção de Amélia Muge e de António José Martins e nas gravações participaram ainda José Peixoto (guitarra acústica), Yuri Daniel (contrabaixo e baixo eléctrico), Catarina Anacleto (violoncelo), Filipe Raposo (piano e acordeão), José Manuel David (sopros) e Carlos Mil-Homens (cajón).

15 janeiro, 2007

Buraka Som Sistema e Frédéric Galliano - O Kuduro Oficializado


Música das margens, o kuduro angolano - à semelhança do kwaito, do baile funk, do reggaeton ou do zouk - vai a pouco e pouco afirmando-se como uma realidade musical a ter em conta na actualidade e para os próximos muitos anos. Dois discos editados o ano passado - o EP «From Buraka To The World», dos Buraka Som Sistema (na foto), e «Frédéric Galliano Presents Kuduro Sound System» - vieram dar visibilidade e, de certa forma, respeitabilidade ao género. Nos dois textos não uso a palavra «dança», mas ela está lá sempre.


FRÉDÉRIC GALLIANO
«FRÉDÉRIC GALLIANO PRESENTS KUDURO SOUND SYSTEM»
Frikyiwa/Nocturne

Figura de proa da cena electro francesa, o DJ e produtor Frédéric Galliano nunca escondeu o seu amor pelos Kraftwerk e, no pólo oposto do «termómetro», por músicas mais quentes como o jazz e, principalmente, a música africana. Álbuns como «Frédéric Galliano Presents The African Divas» e a editora Frikyiwa, que fundou há alguns anos para lançar discos de música africana (principalmente da zona mandinga) dão conta dessa sua paixão. O ano passado atirou-se a Angola, editando na Frikyiwa colectâneas de Paulo Flores, Manya e Dog Murras e este «Frédéric Galliano Presents Kuduro Sound System», em que Galliano mergulhou na fabricação do kuduro - uma música feita à base de uma mistura explosiva de semba e sungura, zouk e kizomba, tecno e hip-hop. Produzido e composto em Luanda, com Galliano a ser acompanhado na criação dos beats pelo DJ Kito da Machina, a gravação do álbum convocou a voz e as rimas de algumas das figuras de proa do kuduro angolano como Tony Amado (considerado o inventor do kuduro), Dog Murras, Pai Diesel, Zoca Zoca, Pinta Tirrú e Gata Agressiva. O resultado é um kuduro mais elegante, descarnado e sofisticado, às vezes com reverberações dub, ecos de electro e aproximações ao drum'n'bass, mas que nunca deixa por isso de ser kuduro. (7/10)


BURAKA SOM SISTEMA
«FROM BURAKA TO THE WORLD»
Enchufada

Se em relação a «Frédéric Galliano Presents Kuduro Sound System» usei as palavras «elegante» e «sofisticado», estas mesmas palavras ganham, ouvindo-se o EP de oito temas «From Buraka To The World» dos Buraka Som Sistema, um sentido muito maior. Inesperada (ou nem por isso) revelação da música produzida em Lisboa o ano passado, os Buraka Som Sistema são um colectivo formado por Riot (One Week Project), Lil'John (Cooltrain Crew/Enchufada/One Week Project) e Conductor (do grupo rap Conjunto Ngonguenha), com a ajuda de alguns amigos como Kalaf ou Petty, isto é, um grupo que tem raízes em locais tão variados quanto Portugal, Angola, Moçambique ou Índia. Reflexo natural de uma realidade lisboeta em que gente de todo o mundo (principalmente das antigas colónias portuguesas, do Brasil a Angola, passando por Cabo Verde e Moçambique) faz música em conjunto, os BSS vão ao kuduro como base programática do seu som (por exemplo, são raras as linhas de baixo na sua música), mas têm também consciência de que o kuduro faz parte de uma irmandade maior em que também entram o baile funk, o reggaeton, o rocksteady, o grime, a house e o hip-hop, géneros que nos BSS contribuem todos para um som novíssimo, hiper-inventivo e bastante elaborado musicalmente. A outra palavra, «descarnado», não entra portanto aqui - e neste caso ainda bem. (9/10)

13 janeiro, 2007

Os Filhos de Abraão - Outras Tribos na Culturgest


Há coincidências estranhas: horas depois de ter chegado a informação relativa aos Blasted Mechanism - e de se ter escrito aqui «Unite in Sound, Unite in Light, Unite the Tribes, são palavras de ordem para uma nova Era de ascensão, de união, de paz, e de respeito pela Terra» - chegaram à caixa de correio os pormenores relativos ao Ciclo Os Filhos de Abraão que decorre na Culturgest, em Lisboa, ao longo deste ano e que é inaugurado no dia 24 com o concerto dos nova-iorquinos Klezmatics (concerto já noticiado neste blog), pontas-de-lança da música klezmer (judaica). Os mesmos Klezmatics que costumam apelar à paz entre os povos nos seus concertos e que na sua música também incluem música árabe ou o gospel cristão (para além do ska, do punk, do jazz, de arrancadas balcânicas...), abrindo um Ciclo que é dedicado ao Judaísmo, Islamismo e Cristianismo, religiões que reconhecem em Abraão o seu fundador comum.

Outros concertos deste ciclo aberto, ecuménico, congregador, são protagonizados por um coro polifónico da Córsega, o Choeur de Sartène (na foto), dirigido pelo musicólogo Jean-Paul Poletti, que apresenta música religiosa católica (em Fevereiro); pelo duo de pianistas Marta Zabaleta e Miguel Borges Coelho, que interpretam as «Visions de l'Amen», de Messiaen, e uma transcrição para piano a quatro mãos de «Die Sieben Wörte» (as sete palavras que Jesus Cristo proferiu na cruz), do compositor barroco alemão Heirich Schütz (em Março); pelo Coro Sirin, da Rússia, que apresenta música religiosa ortodoxa (em Maio); e pelo grupo marroquino Ensemble Ibn Arabi, com música sufi de Tânger (em Novembro). No mesmo ciclo estão ainda incluídos três concertos de música erudita pela OrchestrUtopica (em Setembro) e um concerto do grupo portuense Drumming dia 18 de Abril, para além de «Salomé», ópera de Pedro Amaral sobre uma peça de Fernando Pessoa (em Outubro) e «Le Désert», de Félicen David, poema sinfónico para orquestra, coro, tenor e recitante (em Novembro).

Para além da música, o Ciclo inclui igualmente conferências sobre a temática «As Religiões dos Filhos de Abraão», em que intervêm representantes de vários credos religiosos (um judeu, um muçulmano, um cristão reformista, um cristão ortodoxo e um cristão católico): «Judeus e Judaísmo», por Samuel Levy (29 de Janeiro); «Reforma Protestante: uma história do passado ou uma opção actual?», por Silas Oliveira (5 de Fevereiro); «Testemunhar Deus com os Seis Sentidos: Islão e muçulmanos para além dos textos e dos exotismos», por AbdoolKarim Vakil (12 de Fevereiro); «Caminhos da Ortodoxia», por Ivan Moody (26 de Fevereiro); e «O catolicismo como radical elogio da Beleza», por José Tolentino de Mendonça (5 de Março).

12 janeiro, 2007

Blasted Mechanism - Tribos Unidas


O novo álbum de originais dos Blasted Mechanism tem edição marcada, via Universal Music Portugal, para Março deste ano. E, para já, está quase a chegar às rádios o primeiro single «All The Way». O álbum - que promete ser apresentado «em formato inovador» - foi gravado nos Estúdios Toolateman («quartel-general» da banda), tem produção de Ary, baixista dos Blasted, e misturas de Ary e Dominique Borde efectuadas no estúdio da Praça das Flores. Segundo um press-release de apresentação do disco, poderemos esperar desta nova aventura dos BM «sentidos embebidos em fragrâncias exóticas e a mente focada no desígnio comum... Unite in Sound, Unite in Light, Unite the Tribes, são palavras de ordem para uma nova Era de ascensão, de união, de paz, e de respeito pela Terra, nave viva que nos transporta e abriga, qual grande mãe galáctica».

Frei Fado d'El Rei - A Vez de José Afonso


Os Frei Fado d'El Rei são um dos melhores exemplos de perseverança e coragem nestes caminhos da folk - chamemos-lhe folk por facilidade de designação - feita em Portugal. Tendo como base uma originalíssima mistura de música tradicional portuguesa, fado, flamenco, música medieval e moderna, os Frei Fado d'El Rei sempre estiveram na vanguarda da renovação da nossa música. E apesar de muitos dos seus membrs se terem dispersado nos últimos anos por projectos como os Roldana Folk, Lúmen ou Goliardos d'El Rey, os Frei Fado d'El Rei continuam vivíssimos (deram em Dezembro vários concertos na Bélgica e Holanda) - e editam em breve o álbum «Senhor Poeta», de homenagem a José Afonso, no ano em que passam vinte anos sobre a morte deste cantor e compositor que revolucionou a música portuguesa. Festejando o regresso do grupo às lides discográficas, aqui deixo uma pequena entrevista publicada originalmente no BLITZ em Julho de 2004, a propósito do álbum «Em Concerto».


FREI FADO D'EL REI

Ao fim de 14 anos de carreira, os Frei Fado d'El Rei editam o seu terceiro álbum, «Em Concerto», gravado ao vivo no Mosteiro de Leça do Balio. Conversa com José Flávio Martins.

«Em Concerto» foi editado há poucos meses e, por estes dias, estão também a ser reeditado os dois álbuns de estúdio dos Frei Fado d'El Rei, «Danças no Tempo» e «Encanto da Lua», agrupados pela Sony Music numa caixa conjunta. E a primeira pergunta, inevitável, prende-se com o facto de o novo disco ser um álbum ao vivo, e não de estúdio, mas com bastantes inéditos. José Flávio justifica a escolha com «a magia do "ao vivo". Em concerto há uma recptividade e cumplicidade que nunca conseguimos em estúdio. Gostamos dos álbuns de estúdio, têm a sua razão de existir... mas nunca conseguimos transpor essa energia do palco para o estúdio». Paralelamente, «o espaço onde gravámos o álbum foi muito importante. Aquele Mosteiro tem uma acústica fantástica e a pedra do Mosteiro soa no disco: a reverberação, o encantamento da pedra».

No álbum ao vivo - que será complementado, em Outubro, por um DVD do mesmo espectáculo -, os Frei Fado d'El Rei contaram com a participação de alguns músicos convidados. Uma secção de metais, um coro masculino, um harpista, uma acordeonista, percussionistas e o teclista Quico Serrano (agora ligado aos Plaza mas membro dos Frei Fado durante alguns anos). Para além do álbum ao vivo, os Frei Fado d'El Rei voltaram a ter disponíveis nas lojas os seus dois álbuns de estúdio, numa edição especial que reúne os dois discos. Isto para a banda é especialmente importante porque «há bastante tempo que esses dois álbuns não estavam disponíveis no mercado».

Os músicos dos Frei Fado d'El Rei repartem-se também por outros projectos, sendo um deles quase um alter-ego absoluto, os Roldana Folk. Mas, explica José Flávio, os dois grupos complementam-se e não se anulam: os Roldana Folk são mais «festivos e alegres, estão mais próximos da chamada música celta», enquanto os Frei Fado d'El Rei são mais «contidos e intimistas, embora também haja um lado festivo e dançável, nomeadamente quando usamos o flamenco... E os Frei Fado d'El Rei vão a mais estilos». Vão ao fado, ao flamenco, à música de raiz tradicional, à música antiga e medieval... Vão onde querem, mas «sempre com um padrão que unifica os temas e faz deles temas dos Frei Fado d'El Rei».

Outra actividade paralela de alguns músicos dos Frei Fado é a construção de instrumentos de percussão feitos de barro. «Sempre procurámos novos sons e instrumentos. Usamos, por exemplo, um bandolocelo [um bandolim de som mais grave e com o formato do alaúde], que conheci através do construtor, o Domingos Machado. Começámos a usar as bilhas de barro percutidas... e as pessoas que nos viam vinham perguntar-nos muitas vezes o que era aquilo. E eu e o Zagalo [percussionista] começámos a projectar estes instrumentos que agora vendemos. Até temos workshops dedicados às bilhas em vários sítios...».

10 janeiro, 2007

Cromos Raízes e Antenas IX



Este blog continua hoje a publicação da série «Cromos Raízes e Antenas», constituída por pequenas fichas sobre artistas, grupos, personagens (míticas ou reais), géneros, instrumentos musicais, editoras discográficas, divulgadores, filmes... Tudo isto sem ordem cronológica nem alfabética nem enciclopédica nem com hierarquia de importância nem sujeita a qualquer tipo de actualidade. É vagamente aleatória, randomizada, livre, à vontade do freguês (ou dos fregueses: os leitores deste blog estão todos convidados a enviar sugestões ou, melhor ainda!, as fichas completas de cromos para o espaço de comentários ou para o e-mail pires.ant@gmail.com - a «gerência» agradece; assim como agradece que venham daí acrescentos e correcções às várias entradas). As «carteirinhas» de cromos incluem sempre quatro exemplares, numerados e... coleccionáveis ;)


Cromo IX.1 - Ravi Shankar


Há-de ficar para a história da música - da «world music», sim, mas também de todas as músicas - o momento, gravado no álbum «Concert for Bangladesh» (concerto de solidariedade organizado por George Harrison em 1971), em que o público aplaude Ravi Shankar antes deste dizer: «Muito obrigado, estava só a afinar o instrumento...». Shankar (nascido a 7 de Abril de 1920, em Varanasi, Índia) é o mais respeitado mestre da sitar, principalmente no Ocidente, onde granjeou o respeito e a estima de artistas tão diferentes quanto os Beatles ou Philip Glass. Nascido numa família brâmane, Ravindra (Ravi) Shankar foi director musical da Rádio indiana nos anos 50 e a sua fama chegou ao Ocidente nos anos 60, tendo actuado nos lendários festivais de Monterey e Woodstock. Dono de uma impressionante carreira a solo, Shankar gravou também em duo com compositores renomados como Philip Glass («Passages»).


Cromo IX.2 - Luaka Bop



Fundada em 1988 por David Byrne (a cabeça por trás dos Talking Heads e parceiro de Brian Eno no seminal «My Life In The Bush of Ghosts»), a norte-americana Luaka Bop assumiu-se ao longo dos últimos vinte anos como uma das mais importantes editoras da chamada world music - apesar de este «selo» ser bastante redutor em relação à alargada e abrangente política de contratações desta editora -, lançando álbuns de artistas como as Zap Mama, Tom Zé (que através dela conseguiu uma segunda e riquíssima fase da sua carreira, depois de muitos anos de apagamento), Susana Baca, Silvio Rodriguez, Geggy Tah, Los Amigos Invisibles, Nouvelle Vague, Jim White, Paulo Bragança, A.R. Kane, Djur Djura, Cornershop, Waldemar Bastos, Mimi Soak (ex-Hugo Largo), Los de Abajo, Bloque, King Changô, Os Mutantes, do próprio David Byrne a solo e colectâneas de música brasileira, cubana, peruana, africana, asiática e francesa, entre outros.


Cromo IX.3 - Cesária Évora


A Diva dos Pés Descalços, Cesária Évora (nascida a 27 de Agosto de 1941, no Mindelo, Cabo Verde) é a maior embaixadora da música cabo-verdiana da actualidade. Com um gosto especial pelas mornas, a cantora não deixa por isso de experimentar outros géneros cabo-verdianos como a coladeira ou o funaná e de se atirar a versões pessoalíssimas de outros géneros, como a música cubana. Apesar de ter cantado regularmente nos anos 60 e 70 - tendo chegado a gravar um single com o grupo Conjunto -, Cesária passa depois dez anos sem cantar e só grava o seu primeiro álbum a sério, «Cesária Évora», em 1987. Seguem-se o famoso «La Diva aux Pieds Nus» (1988), «Destino di Belita» (1990), «Mar Azul» (1991) e «Miss Perfumado» (1992), que a instalam definitivamente nas rotas dos festivais da world music. O seu último álbum de originais, «Rogamar», foi editado em 2006 e, em 2008, saiu «Radio Mindelo» (querecuperou gravações suas dos anos 60).

Cromo IX.4 - The Nightlosers


Liderados por um realizador de cinema, Hano Hoffer, os Nightlosers são uma banda romena que se dedica à fusão dos blues eléctricos de Chicago com a música tradicional da Transilvânia. Um excelente exemplo - entre milhares de outros - de uma miscigenação cada vez mais efectiva de músicas locais com sonoridades anglo-saxónicas, os Nightlosers são também os protagonistas do filme ««Euroamerican Nightlosers/The Human Hambone», realizado por Sorin Iliesiu e Mark Morgan, que conta a história dos blues desde África aos Estados Unidos e à... Roménia. O seu álbum de 2000, «Plum Brandy Blues», mostra clássicos como «Hoochie Coochie Man», «Stormy Monday Blues», «Everyday I Have the Blues», «Pretty Thing» ou até «Blue Suede Shoes» (de Elvis Presley) infectados por um violino cigano e um cimbalom.

09 janeiro, 2007

Carlos do Carmo - As Viagens do Fado


Personagem incontornável da história do fado, Carlos do Carmo editou há pouco mais de três anos um álbum que parte de Lisboa - eterno porto de chegada e de partida do fado e de outras músicas, de portugueses e de estrangeiros -, para chegar a África (onde o fado terá nascido), ao Brasil (por onde o fado terá passado), à Argentina (onde o fado tem um irmão chegado, o tango). Esta entrevista a propósito de «Nove Fados e Uma Canção de Amor» foi publicada originalmente no BLITZ em Fevereiro de 2003.


CARLOS DO CARMO
UM HOMEM NO MUNDO

Carlos do Carmo. Ouve-se o nome e ouve-se logo a voz. E ouvem-se os fados e as canções a que deu voz. «Gaivota». «Por Morrer Uma Andorinha». «Lisboa Menina e Moça». «O Cacilheiro». «Fado Ultramar». «No Teu Poema». Fados e canções que nunca eram como estávamos à espera. Porque, com Carlos do Carmo (como com Amália), havia sempre uma subversão qualquer - nas palavras, na música - que o levavam para além do fado (e das canções). Antes do Natal, Carlos do Carmo lançou um novo álbum, «Nove Fados e Uma Canção de Amor», onde volta a surpreender, quando ao fado junta África, Brasil, Argentina, ou quando homenageia outros fadistas e o próprio fado. Nesta conversa com o cantor, o BLITZ propôs-lhe um tema inspirado por cada um dos temas do álbum. Numa mesa ao fundo, noutra Casa do Fado.

1. «Partida» (Mário de Sá-Carneiro/Fernando Tordo)

Neste fado canta as seguintes palavras de Mário de Sá-Carneiro: «A vida, a natureza. Que são para o artista? Coisa alguma. O que devemos é saltar a bruma, correr no azul à busca da beleza». O fado, o canto, a música são, na sua vida, essa busca de beleza? E essa procura - que é diferente da de outros fadistas - tem sido compreendida?

Sim, essa é uma busca profunda e incessante. Mas tenho em relação ao fado um conceito estético que é muito meu, pessoal, de grande inquietação. E essa inquietação faz-me pisar, constantemente, terrenos minados - tenho tido sorte porque nenhuma mina rebentou. Para quem tenha uma visão conservadora da música, da tradição oral ou das músicas tradicionais, como o fado, acabo por me tornar uma pessoa incómoda. Porque o confinaram a um «gueto» tão fechado que apetece-me fazer experimentações. Dou um exemplo simples: hoje, um elevado número de jovens fadistas canta acompanhado a contrabaixo. Comecei a cantar acompanhado a contrabaixo há mais de vinte anos. Na altura em que comecei a fazer isso, fui criticado. Já cantei o fado acompanhado por uma orquestra alemã de sopros. E parecia um sacrilégio, na altura, mas soava tão bem!... Ou partilhar o conceito estético de um arranjador que tem uma visão pessoal do fado. Gosto de aceitar todos estes desafios, desde que sinta que estão de harmonia com a minha sensibilidade. E isso tem sido uma das provas da minha procura da beleza. É uma aventura.

2. «A Morte da Mariquinhas» (Maria Manuela Mota/Paulo de Carvalho)

Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues e Hermínia Silva - os mais populares intérpretes d'«A Casa da Mariquinhas» e das suas variações - já morreram. Este poema que Carlos do Carmo canta, que fala da morte da Mariquinhas, é, de algum modo, uma homenagem a esses fadistas e até a uma certa «idade do fado» que a Mariquinhas representa?

Tem um pouco de tudo o que disse. Eu tenho o gosto, a alegria, de ter conhecido essa geração de ouro do fado. Sempre que canto ao vivo, raramente deixo de referir essas pessoas, pelo contributo que elas deram. E tem a ver com outra coisa: a minha ternura para com o vulto da Mariquinhas, que para mim se tornou uma lenda. Quando era garoto - tinha os meus oito anos - Alfredo Marceneiro construiu, com as suas mãos, a Casa da Mariquinhas, peça a peça, em madeira. Com tudo aquilo que vem no fado, descrito nas primeiras quadras escritas pelo Silva Tavares - aliás, essa casa está no Museu do Fado, aqui em Lisboa. Vi essa casa quando era miúdo; e ouvi-o cantar esse fado. Mais tarde, ouvi-o cantar «O Leilão da Mariquinhas», que foi um texto de continuidade feito pelo João Linhares Barbosa. Mais tarde - no final dos anos 60, estava eu a esboçar a minha carreira -, o Dr. Alberto Janes deu-me a ler um poema para um fado. Mas eu andava num período de grande inquietação, à procura de qualquer coisa que não sabia o que era, mas não querendo confinar-me ao fado que estava sempre a cantar-se, que me parecia sempre igual e que tinha os seus intérpretes geniais. E recusei, com respeito, o poema. Ele depois entregou-o à Amália. Era o «Vou Dar de Beber à Dor» (NR: que era mais uma variação sobre o tema da Mariquinhas). E o assunto ficou em banho-maria durante anos. Há alguns anos, uma amiga minha, médica, trouxe-me algumas letras para fado de uma senhora que estava muito doente, em estado crítico, Maria Manuela Mota. Um dos poemas era «A Morte da Mariquinhas». Quando chegou, agora, a altura de gravar, disse: «bom, vou agora resolver este meu pseudo-contencioso com a Mariquinhas». E pedi ao meu amigo Paulo de Carvalho que fizesse uma música original para o poema; em vez de optar pelo fado corrido, o que seria comódo.

3. «Casa do Fado» (Paulo de Carvalho)

A protagonista deste fado não é identificada e até pode ser uma personagem abstracta. Mas essa frase lembra, inevitavelmente, a sua mãe, Lucília do Carmo - sendo que essa ligação se torna mais óbvia na «faixa escondida» do álbum, em que Carlos canta um extracto deste tema antes de aparecer a sua mãe a cantar «Maria Madalena»... Mas também faz lembrar Amália Rodrigues. Pode falar um pouco sobre estas duas cantoras?

A minha mãe é, de facto, a pessoa que está subjacente a esta personagem. E a história deste fado está carregada de ternura: o meu amigo Paulo de Carvalho - estava eu em plena convalescença da minha doença, ainda muito debilitado (NR: Carlos do Carmo venceu, há alguns meses, uma doença grave) - entregou-me uma cassete e disse «se gostares disto, canta». E este fado tem muito a ver com a nossa vida e com a casa de fados por onde passou a minha mãe e por onde eu passei (NR: Adega da Lucília; posteriormente O Faia). A minha mãe foi uma fadista genuína, com uma condução de carreira muito discreta. Ela, com o seu prestígio, com a sua maneira ímpar de cantar o fado, ocupou um espaço absolutamente seu. E não é o filho que está a falar - tento sempre manter alguma equidistância nestas análises -, mas ouvi muita gente, mesmo muita gente, considerá-la a maior fadista que o fado jamais conheceu. Isso aumentou o peso da minha responsabilidade quando escolhi o fado como modo de vida. Acho que encontrei um caminho, sem que isso colidisse ou competisse com a minha mãe. Guardo dela a memória de grande figura do fado, para além de um grande respeito e uma grande saudade. E estamos a falar de uma pessoa que coexistiu, na mesma geração, com a Maria Teresa de Noronha, a Hermínia Silva e a Amália Rodrigues... A Amália tinha uma voz privilegiadíssima e teve uma gestão de carreira exemplar. Esse conjunto de factores levou-a a que fosse um ícone do fado. Ela tirou o fado do «gueto» e projectou-o. Há um conceito estético amaliano, forte, que é só dela. Mas, a meu ver, nunca podemos perder de vista todas as outras fadistas. Por exemplo, as raparigas que estão hoje a aparecer a cantar o fado, cometem, talvez, o erro de ouvir apenas discos da Amália. E esse é um erro grave. Porque o fado é uma canção livre, criativa, onde o importante mesmo é a afirmação da característica individual. A história do fado é a história de todos nós - os que cantámos e cantamos, os que tocámos e tocamos. Mas na sua génese está a diferença, a identidade de cada um. E essa identidade cria-se com trabalho, talento, busca e humildade. Se hoje uma jovem fadista conversar comigo e me pedir uma sugestão, dir-lhe-ei que escute as outras fadistas, porque é aí, nesse leque aberto, que vai entender a dimensão do fado, que não se pode confinar a uma só pessoa. Corre o risco de dar mais, mas não do mesmo, porque Amália, em determinados fados, atingiu tal nível que esboçá-los só que seja, em canto, é perigoso. E isto não tem um sentido crítico mordaz; é apenas um alerta.

4. «Fado Maestro» (Fernando Tordo/António Victorino d'Almeida)

O maestro a que alude o título é o António Victorino d'Almeida?... E é importante estar rodeado de outras pessoas com quem se identifica (neste álbum o Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Victorino d'Almeida, Ivan Lins - todos também colaboradores de outrora)?

O António Victorino d'Almeida tinha a música feita já há alguns anos. E este é o único caso, neste disco, em que a música existe antes das palavras; no resto, as palavras existiam sempre antes das músicas. E pensei no meu amigo Fernando Tordo para as escrever. Isto aconteceu como um ritual: eles não têm uma relação próxima e o António deu um jantar na casa dele, onde estivemos todos e que foi interessantíssimo. A letra tem a ver com as diferenças entre nós todos: eu sou o homem da noite; o António levanta-se de manhã. E as palavras foram construídas naquela noite. O Fernando maravilhou-se com a personalidade do António e chamou ao poema «Fado Maestro». O António tem um quarto só para objectos de colecção que parece o quarto de um puto de dez anos, a que ele chama o «quarto da demência». Tem lá um jogo que parece um Subbuteo mas que foi inventado por ele... Esse lado das colaborações é bastante importante porque, quando convivemos, é uma festa. Esta ideia de que nós solidariamente existimos uns com os outros é muito bela. E quando colaborarmos nos trabalhos uns dos outros, isso é o prolongamento da festa da nossa existência. Neste disco, fiz a divisão exacta de quem iria fazer o quê: esta música é para o Fernando, esta é para o Paulo, esta é para o António, esta é para o Ivan. Porque os conheço e eles conhecem-me, sabem o que eu amo, o que eu gosto.

5. «Nasceu Assim, Cresceu Assim» (Vasco Graça Moura/Fernando Tordo)

Neste tema canta «Talvez a mãe fosse rameira... e o pai um decadente aristocrata». É o fado. O fado ainda é a canção do povo, pelo menos do povo de Lisboa? E como é que vê o nascimento de uma nova geração de fadistas (Mafalda Arnauth, Mísia, Cristina Branco, Camané...)?

Estamos em 2003 e, hoje, temos uma pequena burguesia ascendente. De povo, genuíno, temos uma percentagem mínima. Mas existe ainda um, digamos, foco resistente nos bairros históricos de Lisboa, ligado à sua tradição fadista. E essa é a guarita, a fortaleza, de um certo tipo de fado. Ele existe... Na nova geração, o fado espelha também as grandes modificações da sociedade. Quando era criança, ouvi fadistas, mulheres e homens, de uma imensa qualidade que não deixaram disco gravado. Hoje, se houver um pouquinho mais de capacidade de se mexer bem na zona do marketing e na promoção da sua imagem, aparece, o seu trabalho não fica escondido. O fado hoje é mais mediático. O que não quer dizer que a televisão o trate bem, que a rádio o trate bem... Há muita gente nova a gravar e em 2003 vai aparecer ainda mais gente. Um dia, vai-se fazer a triagem de qualidade, mas, para já, saúdo com muita alegria a chegada de muita gente a cantar o fado. Houve um período em que a sociedade quase baniu o fado e eu era praticamente o único a ter a bandeira da sobrevivência do fado nas mãos. Neste álbum gravei com músicos bastante jovens (NR: Ricardo Rocha, Carlos Manuel Proença, Fernando Araújo...) e foi uma festa.

6. «Fado Mulato» (Manuel Ruy Monteiro/André Mingas)

Este é um fado com sabor africano. Na sua opinião, de onde vem o fado? De Lisboa, mesmo, como local onde era possível existir um caldo de culturas diferentes? Da África Negra (que poderia ter dado origem à fofa e ao fado), do Brasil (o lundum), da música medieval provençal, da música árabe, etc?...

Não tenho uma opinião definitiva. E quanto mais o tempo passa mais me fascina o mistério. Cientificamente, ninguém pode ter a certeza. Uma coisa é certa: começa-se a ouvir falar de fado em meados do séc. XIX e a sua história é mais pujante e concreta no séc. XX. Tenho procurado ler o que escrevem os académicos sobre as questões do Brasil ou de África, oiço opiniões sobre a questão árabe ou a nostalgia do marinheiro em alto-mar. Mas nunca se vai parar a qualquer coisa de objectivo e concreto. Não faço ideia nenhuma de onde ele vem... No «Fado Mulato» são dois amigos meus, angolanos, que me dão um fado com uma estética angolana. Esta é a estética deles, que eu respeito: quem sou eu para dizer que aquilo não é um fado?... E é destes desafios que eu gosto. Perdoe-se-me a imodéstia, mas alguém poderia supor que o meu novo disco seria cómodo, igual a outros. E não é. Quis espelhar nele a minha inquietação. Não é mais de Carlos do Carmo, é outra coisa. Porque não estaria de bem comigo próprio nem com o meu público que espera, de mim, algumas loucuras.

7. «3 Sílabas de Sal» (Manuel Alegre/Ivan Lins)

É curioso haver brasileiros a fazer fados, como Caetano Veloso ou, neste caso, o Ivan Lins, que já tinha colaborado consigo noutras ocasiões...

Uma coisa que eu gostaria de já ter feito é um levantamento do fado que se canta no Brasil, porque há vários brasileiros, e muitos desconhecidos, que já fizeram fados muito interessantes. Há um conceito brasileiro de ver o fado. No caso do Ivan Lins, de quem sou um amigo sincero, ele tem uma relação afectiva com Portugal muito sólida, e, para além de conhecer bem Lisboa e o país, tem em sua casa muitos discos de música popular portuguesa. Ele vai fundo. Foi ele que escolheu o poema do Alegre para musicar. E nesta música há mar, há portugalidade, há fado visto pelos olhos de um brasileiro que gosta, sinceramente, desta terra.

8. «Dois Portos» (Gil do Carmo/Fernando Araújo e Gil do Carmo)

Na sequência dos dois temas anteriores (África e Brasil), este fado-tango (com bandoneon e tudo) é mais uma peça do puzzle que poderá aproximar esta «zona» do álbum de um projecto que, devido à morte de Ary dos Santos, nunca se concretizou, «Um Homem no Mundo»?

De facto, eu e o Ary fizemos «Um Homem na Cidade» e «Um Homem no País» mas não fizemos «Um Homem no Mundo». E ele vai-se fazendo assim. Para além destes temas, estou à espera de um fado cabo-verdiano, com música de Tito Paris. Talvez isso tenha ficado no sub-consciente... No caso de «Dois Portos», o meu filho Gil pegou no tango e na ideia do bandoneon naturalmente. Eu e os meus filhos sempre tivemos uma relação aberta: eu mostrava-lhes a música de que gostava (Brel, Piazzolla...) e eles mostravam-me jazz, rock... Ele, agora, perguntou-me se podia fazer um fado para mim e mostrou-me este fado misturado com tango sobre o qual eu, num primeiro momento, disse que ele estava a ser atrevido. «Mas não és tu que gostas de inovar?», perguntou ele. A gravação, depois, foi quase uma jam-session, com o bandoneonista Walter Idalgo. Envei o disco para a minha amiga Laura Piazzolla, viúva do Astor, e estou à espera que me diga o que sente...

9. «Eu Canto» (Cecília Meireles/António Victorino d'Almeida)

Aqui canta «não sou alegre nem sou triste: sou poeta». O Carlos do Carmo não costuma fazer nem as letras nem as músicas dos fados e das canções que canta. Sente-se bem a cantar as palavras dos outros? Nunca quis desenvolver esse lado criativo?

Quando se cantam grandes poetas, como eu, chega-se a uma altura em que se percebe que a bitola é tão alta que não poderemos sequer aproximar-nos dela. Quando trabalhava com o Ary dos Santos, alguns versos, só alguns versos, eram meus. Porque fui aprendendo, se é que se pode aprender uma espontaneidade criativa. Mas não tenho essa veleidade, nunca tive. Isso já poderia ser diferente na música. Por vezes assobio ou trauteio coisas que a Judite, depois, fica zangadíssima comigo por não as utilizar: «acabaste de fazer um belo fado».

10. «Sombra do Desejo» (João Monge/Rui Veloso)

Neste tema a música é de Rui Veloso. E o Pedro Abrunhosa já o tinha convidado para a canção «Manhã», do álbum «Tempo». Como vê a música portuguesa de características «modernas» - o rock, a pop, etc.?...

Vejo-a de uma forma saudável. Há uma explosão de talento em Portugal que, infelizmente, não é estimulada. E, não querendo tocar muito na tecla da música portuguesa na rádio, a verdade é que há muita música de qualidade que não é ouvida... E é um circuito fechado, negativo - não se ouve-não se faz-não se estimula-não se gosta-não se exporta e não saímos disto - mas que pode inverter-se a qualquer momento. Há gente com muito talento, que vai explodir e que vai resistir ao mediatismo de muita música medíocre...