09 janeiro, 2007

Carlos do Carmo - As Viagens do Fado


Personagem incontornável da história do fado, Carlos do Carmo editou há pouco mais de três anos um álbum que parte de Lisboa - eterno porto de chegada e de partida do fado e de outras músicas, de portugueses e de estrangeiros -, para chegar a África (onde o fado terá nascido), ao Brasil (por onde o fado terá passado), à Argentina (onde o fado tem um irmão chegado, o tango). Esta entrevista a propósito de «Nove Fados e Uma Canção de Amor» foi publicada originalmente no BLITZ em Fevereiro de 2003.


CARLOS DO CARMO
UM HOMEM NO MUNDO

Carlos do Carmo. Ouve-se o nome e ouve-se logo a voz. E ouvem-se os fados e as canções a que deu voz. «Gaivota». «Por Morrer Uma Andorinha». «Lisboa Menina e Moça». «O Cacilheiro». «Fado Ultramar». «No Teu Poema». Fados e canções que nunca eram como estávamos à espera. Porque, com Carlos do Carmo (como com Amália), havia sempre uma subversão qualquer - nas palavras, na música - que o levavam para além do fado (e das canções). Antes do Natal, Carlos do Carmo lançou um novo álbum, «Nove Fados e Uma Canção de Amor», onde volta a surpreender, quando ao fado junta África, Brasil, Argentina, ou quando homenageia outros fadistas e o próprio fado. Nesta conversa com o cantor, o BLITZ propôs-lhe um tema inspirado por cada um dos temas do álbum. Numa mesa ao fundo, noutra Casa do Fado.

1. «Partida» (Mário de Sá-Carneiro/Fernando Tordo)

Neste fado canta as seguintes palavras de Mário de Sá-Carneiro: «A vida, a natureza. Que são para o artista? Coisa alguma. O que devemos é saltar a bruma, correr no azul à busca da beleza». O fado, o canto, a música são, na sua vida, essa busca de beleza? E essa procura - que é diferente da de outros fadistas - tem sido compreendida?

Sim, essa é uma busca profunda e incessante. Mas tenho em relação ao fado um conceito estético que é muito meu, pessoal, de grande inquietação. E essa inquietação faz-me pisar, constantemente, terrenos minados - tenho tido sorte porque nenhuma mina rebentou. Para quem tenha uma visão conservadora da música, da tradição oral ou das músicas tradicionais, como o fado, acabo por me tornar uma pessoa incómoda. Porque o confinaram a um «gueto» tão fechado que apetece-me fazer experimentações. Dou um exemplo simples: hoje, um elevado número de jovens fadistas canta acompanhado a contrabaixo. Comecei a cantar acompanhado a contrabaixo há mais de vinte anos. Na altura em que comecei a fazer isso, fui criticado. Já cantei o fado acompanhado por uma orquestra alemã de sopros. E parecia um sacrilégio, na altura, mas soava tão bem!... Ou partilhar o conceito estético de um arranjador que tem uma visão pessoal do fado. Gosto de aceitar todos estes desafios, desde que sinta que estão de harmonia com a minha sensibilidade. E isso tem sido uma das provas da minha procura da beleza. É uma aventura.

2. «A Morte da Mariquinhas» (Maria Manuela Mota/Paulo de Carvalho)

Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues e Hermínia Silva - os mais populares intérpretes d'«A Casa da Mariquinhas» e das suas variações - já morreram. Este poema que Carlos do Carmo canta, que fala da morte da Mariquinhas, é, de algum modo, uma homenagem a esses fadistas e até a uma certa «idade do fado» que a Mariquinhas representa?

Tem um pouco de tudo o que disse. Eu tenho o gosto, a alegria, de ter conhecido essa geração de ouro do fado. Sempre que canto ao vivo, raramente deixo de referir essas pessoas, pelo contributo que elas deram. E tem a ver com outra coisa: a minha ternura para com o vulto da Mariquinhas, que para mim se tornou uma lenda. Quando era garoto - tinha os meus oito anos - Alfredo Marceneiro construiu, com as suas mãos, a Casa da Mariquinhas, peça a peça, em madeira. Com tudo aquilo que vem no fado, descrito nas primeiras quadras escritas pelo Silva Tavares - aliás, essa casa está no Museu do Fado, aqui em Lisboa. Vi essa casa quando era miúdo; e ouvi-o cantar esse fado. Mais tarde, ouvi-o cantar «O Leilão da Mariquinhas», que foi um texto de continuidade feito pelo João Linhares Barbosa. Mais tarde - no final dos anos 60, estava eu a esboçar a minha carreira -, o Dr. Alberto Janes deu-me a ler um poema para um fado. Mas eu andava num período de grande inquietação, à procura de qualquer coisa que não sabia o que era, mas não querendo confinar-me ao fado que estava sempre a cantar-se, que me parecia sempre igual e que tinha os seus intérpretes geniais. E recusei, com respeito, o poema. Ele depois entregou-o à Amália. Era o «Vou Dar de Beber à Dor» (NR: que era mais uma variação sobre o tema da Mariquinhas). E o assunto ficou em banho-maria durante anos. Há alguns anos, uma amiga minha, médica, trouxe-me algumas letras para fado de uma senhora que estava muito doente, em estado crítico, Maria Manuela Mota. Um dos poemas era «A Morte da Mariquinhas». Quando chegou, agora, a altura de gravar, disse: «bom, vou agora resolver este meu pseudo-contencioso com a Mariquinhas». E pedi ao meu amigo Paulo de Carvalho que fizesse uma música original para o poema; em vez de optar pelo fado corrido, o que seria comódo.

3. «Casa do Fado» (Paulo de Carvalho)

A protagonista deste fado não é identificada e até pode ser uma personagem abstracta. Mas essa frase lembra, inevitavelmente, a sua mãe, Lucília do Carmo - sendo que essa ligação se torna mais óbvia na «faixa escondida» do álbum, em que Carlos canta um extracto deste tema antes de aparecer a sua mãe a cantar «Maria Madalena»... Mas também faz lembrar Amália Rodrigues. Pode falar um pouco sobre estas duas cantoras?

A minha mãe é, de facto, a pessoa que está subjacente a esta personagem. E a história deste fado está carregada de ternura: o meu amigo Paulo de Carvalho - estava eu em plena convalescença da minha doença, ainda muito debilitado (NR: Carlos do Carmo venceu, há alguns meses, uma doença grave) - entregou-me uma cassete e disse «se gostares disto, canta». E este fado tem muito a ver com a nossa vida e com a casa de fados por onde passou a minha mãe e por onde eu passei (NR: Adega da Lucília; posteriormente O Faia). A minha mãe foi uma fadista genuína, com uma condução de carreira muito discreta. Ela, com o seu prestígio, com a sua maneira ímpar de cantar o fado, ocupou um espaço absolutamente seu. E não é o filho que está a falar - tento sempre manter alguma equidistância nestas análises -, mas ouvi muita gente, mesmo muita gente, considerá-la a maior fadista que o fado jamais conheceu. Isso aumentou o peso da minha responsabilidade quando escolhi o fado como modo de vida. Acho que encontrei um caminho, sem que isso colidisse ou competisse com a minha mãe. Guardo dela a memória de grande figura do fado, para além de um grande respeito e uma grande saudade. E estamos a falar de uma pessoa que coexistiu, na mesma geração, com a Maria Teresa de Noronha, a Hermínia Silva e a Amália Rodrigues... A Amália tinha uma voz privilegiadíssima e teve uma gestão de carreira exemplar. Esse conjunto de factores levou-a a que fosse um ícone do fado. Ela tirou o fado do «gueto» e projectou-o. Há um conceito estético amaliano, forte, que é só dela. Mas, a meu ver, nunca podemos perder de vista todas as outras fadistas. Por exemplo, as raparigas que estão hoje a aparecer a cantar o fado, cometem, talvez, o erro de ouvir apenas discos da Amália. E esse é um erro grave. Porque o fado é uma canção livre, criativa, onde o importante mesmo é a afirmação da característica individual. A história do fado é a história de todos nós - os que cantámos e cantamos, os que tocámos e tocamos. Mas na sua génese está a diferença, a identidade de cada um. E essa identidade cria-se com trabalho, talento, busca e humildade. Se hoje uma jovem fadista conversar comigo e me pedir uma sugestão, dir-lhe-ei que escute as outras fadistas, porque é aí, nesse leque aberto, que vai entender a dimensão do fado, que não se pode confinar a uma só pessoa. Corre o risco de dar mais, mas não do mesmo, porque Amália, em determinados fados, atingiu tal nível que esboçá-los só que seja, em canto, é perigoso. E isto não tem um sentido crítico mordaz; é apenas um alerta.

4. «Fado Maestro» (Fernando Tordo/António Victorino d'Almeida)

O maestro a que alude o título é o António Victorino d'Almeida?... E é importante estar rodeado de outras pessoas com quem se identifica (neste álbum o Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Victorino d'Almeida, Ivan Lins - todos também colaboradores de outrora)?

O António Victorino d'Almeida tinha a música feita já há alguns anos. E este é o único caso, neste disco, em que a música existe antes das palavras; no resto, as palavras existiam sempre antes das músicas. E pensei no meu amigo Fernando Tordo para as escrever. Isto aconteceu como um ritual: eles não têm uma relação próxima e o António deu um jantar na casa dele, onde estivemos todos e que foi interessantíssimo. A letra tem a ver com as diferenças entre nós todos: eu sou o homem da noite; o António levanta-se de manhã. E as palavras foram construídas naquela noite. O Fernando maravilhou-se com a personalidade do António e chamou ao poema «Fado Maestro». O António tem um quarto só para objectos de colecção que parece o quarto de um puto de dez anos, a que ele chama o «quarto da demência». Tem lá um jogo que parece um Subbuteo mas que foi inventado por ele... Esse lado das colaborações é bastante importante porque, quando convivemos, é uma festa. Esta ideia de que nós solidariamente existimos uns com os outros é muito bela. E quando colaborarmos nos trabalhos uns dos outros, isso é o prolongamento da festa da nossa existência. Neste disco, fiz a divisão exacta de quem iria fazer o quê: esta música é para o Fernando, esta é para o Paulo, esta é para o António, esta é para o Ivan. Porque os conheço e eles conhecem-me, sabem o que eu amo, o que eu gosto.

5. «Nasceu Assim, Cresceu Assim» (Vasco Graça Moura/Fernando Tordo)

Neste tema canta «Talvez a mãe fosse rameira... e o pai um decadente aristocrata». É o fado. O fado ainda é a canção do povo, pelo menos do povo de Lisboa? E como é que vê o nascimento de uma nova geração de fadistas (Mafalda Arnauth, Mísia, Cristina Branco, Camané...)?

Estamos em 2003 e, hoje, temos uma pequena burguesia ascendente. De povo, genuíno, temos uma percentagem mínima. Mas existe ainda um, digamos, foco resistente nos bairros históricos de Lisboa, ligado à sua tradição fadista. E essa é a guarita, a fortaleza, de um certo tipo de fado. Ele existe... Na nova geração, o fado espelha também as grandes modificações da sociedade. Quando era criança, ouvi fadistas, mulheres e homens, de uma imensa qualidade que não deixaram disco gravado. Hoje, se houver um pouquinho mais de capacidade de se mexer bem na zona do marketing e na promoção da sua imagem, aparece, o seu trabalho não fica escondido. O fado hoje é mais mediático. O que não quer dizer que a televisão o trate bem, que a rádio o trate bem... Há muita gente nova a gravar e em 2003 vai aparecer ainda mais gente. Um dia, vai-se fazer a triagem de qualidade, mas, para já, saúdo com muita alegria a chegada de muita gente a cantar o fado. Houve um período em que a sociedade quase baniu o fado e eu era praticamente o único a ter a bandeira da sobrevivência do fado nas mãos. Neste álbum gravei com músicos bastante jovens (NR: Ricardo Rocha, Carlos Manuel Proença, Fernando Araújo...) e foi uma festa.

6. «Fado Mulato» (Manuel Ruy Monteiro/André Mingas)

Este é um fado com sabor africano. Na sua opinião, de onde vem o fado? De Lisboa, mesmo, como local onde era possível existir um caldo de culturas diferentes? Da África Negra (que poderia ter dado origem à fofa e ao fado), do Brasil (o lundum), da música medieval provençal, da música árabe, etc?...

Não tenho uma opinião definitiva. E quanto mais o tempo passa mais me fascina o mistério. Cientificamente, ninguém pode ter a certeza. Uma coisa é certa: começa-se a ouvir falar de fado em meados do séc. XIX e a sua história é mais pujante e concreta no séc. XX. Tenho procurado ler o que escrevem os académicos sobre as questões do Brasil ou de África, oiço opiniões sobre a questão árabe ou a nostalgia do marinheiro em alto-mar. Mas nunca se vai parar a qualquer coisa de objectivo e concreto. Não faço ideia nenhuma de onde ele vem... No «Fado Mulato» são dois amigos meus, angolanos, que me dão um fado com uma estética angolana. Esta é a estética deles, que eu respeito: quem sou eu para dizer que aquilo não é um fado?... E é destes desafios que eu gosto. Perdoe-se-me a imodéstia, mas alguém poderia supor que o meu novo disco seria cómodo, igual a outros. E não é. Quis espelhar nele a minha inquietação. Não é mais de Carlos do Carmo, é outra coisa. Porque não estaria de bem comigo próprio nem com o meu público que espera, de mim, algumas loucuras.

7. «3 Sílabas de Sal» (Manuel Alegre/Ivan Lins)

É curioso haver brasileiros a fazer fados, como Caetano Veloso ou, neste caso, o Ivan Lins, que já tinha colaborado consigo noutras ocasiões...

Uma coisa que eu gostaria de já ter feito é um levantamento do fado que se canta no Brasil, porque há vários brasileiros, e muitos desconhecidos, que já fizeram fados muito interessantes. Há um conceito brasileiro de ver o fado. No caso do Ivan Lins, de quem sou um amigo sincero, ele tem uma relação afectiva com Portugal muito sólida, e, para além de conhecer bem Lisboa e o país, tem em sua casa muitos discos de música popular portuguesa. Ele vai fundo. Foi ele que escolheu o poema do Alegre para musicar. E nesta música há mar, há portugalidade, há fado visto pelos olhos de um brasileiro que gosta, sinceramente, desta terra.

8. «Dois Portos» (Gil do Carmo/Fernando Araújo e Gil do Carmo)

Na sequência dos dois temas anteriores (África e Brasil), este fado-tango (com bandoneon e tudo) é mais uma peça do puzzle que poderá aproximar esta «zona» do álbum de um projecto que, devido à morte de Ary dos Santos, nunca se concretizou, «Um Homem no Mundo»?

De facto, eu e o Ary fizemos «Um Homem na Cidade» e «Um Homem no País» mas não fizemos «Um Homem no Mundo». E ele vai-se fazendo assim. Para além destes temas, estou à espera de um fado cabo-verdiano, com música de Tito Paris. Talvez isso tenha ficado no sub-consciente... No caso de «Dois Portos», o meu filho Gil pegou no tango e na ideia do bandoneon naturalmente. Eu e os meus filhos sempre tivemos uma relação aberta: eu mostrava-lhes a música de que gostava (Brel, Piazzolla...) e eles mostravam-me jazz, rock... Ele, agora, perguntou-me se podia fazer um fado para mim e mostrou-me este fado misturado com tango sobre o qual eu, num primeiro momento, disse que ele estava a ser atrevido. «Mas não és tu que gostas de inovar?», perguntou ele. A gravação, depois, foi quase uma jam-session, com o bandoneonista Walter Idalgo. Envei o disco para a minha amiga Laura Piazzolla, viúva do Astor, e estou à espera que me diga o que sente...

9. «Eu Canto» (Cecília Meireles/António Victorino d'Almeida)

Aqui canta «não sou alegre nem sou triste: sou poeta». O Carlos do Carmo não costuma fazer nem as letras nem as músicas dos fados e das canções que canta. Sente-se bem a cantar as palavras dos outros? Nunca quis desenvolver esse lado criativo?

Quando se cantam grandes poetas, como eu, chega-se a uma altura em que se percebe que a bitola é tão alta que não poderemos sequer aproximar-nos dela. Quando trabalhava com o Ary dos Santos, alguns versos, só alguns versos, eram meus. Porque fui aprendendo, se é que se pode aprender uma espontaneidade criativa. Mas não tenho essa veleidade, nunca tive. Isso já poderia ser diferente na música. Por vezes assobio ou trauteio coisas que a Judite, depois, fica zangadíssima comigo por não as utilizar: «acabaste de fazer um belo fado».

10. «Sombra do Desejo» (João Monge/Rui Veloso)

Neste tema a música é de Rui Veloso. E o Pedro Abrunhosa já o tinha convidado para a canção «Manhã», do álbum «Tempo». Como vê a música portuguesa de características «modernas» - o rock, a pop, etc.?...

Vejo-a de uma forma saudável. Há uma explosão de talento em Portugal que, infelizmente, não é estimulada. E, não querendo tocar muito na tecla da música portuguesa na rádio, a verdade é que há muita música de qualidade que não é ouvida... E é um circuito fechado, negativo - não se ouve-não se faz-não se estimula-não se gosta-não se exporta e não saímos disto - mas que pode inverter-se a qualquer momento. Há gente com muito talento, que vai explodir e que vai resistir ao mediatismo de muita música medíocre...

Sem comentários: