29 setembro, 2006

Galandum Galundaina - Festança em Bragança


Os Galandum Galundaina comemoram dez anos de carreira com um concerto especial no Teatro Municipal de Bragança, dia 4 de Outubro. O concerto - que será também aproveitado para a gravação do seu primeiro DVD - marca uma data festiva para este grupo que, ao longo dos anos, tem feito um importantíssimo trabalho de divulgação da música, da língua e da cultura mirandesa, em discos, concertos, arruadas, colaborações (muitas vezes com a integração de Pauliteiros de Miranda nos seus espectáculos; em cruzamentos com músicos de outros lugares - Galiza, Castela e Leão, Escócia...) ou no passeio-maratona-festa-jam-session-anual L Burro i l Gueiteiro. Tudo, sempre, com o recurso às canções tradicionais das Terras de Miranda e aos instrumentos a elas associados - gaitas-de-foles, flauta pastoril, sanfona, caixa de guerra, conchas, castanholas, pandeireta ou uma estranha rabeca de drones mágicos. O concerto tem entrada livre (se bem que condicionada à apresentação de bilhete gratuito a ser previamente levantado nas bilheteiras do teatro). E Paulo Preto e os três Meirinhos - Paulo, Manuel e Alexandre - têm direito, claro, a um enorme coro de parabéns. Mais informações aqui.

28 setembro, 2006

Susheela Raman - Da Jóia da Coroa


Entre a Índia e o Ocidente, a cantora Susheela Raman tem construído uma carreira coerente e frutuosa. Há alguns meses editou o arriscado álbum «Music For Crocodiles», onde esse instável equilíbrio (estético e até emocional) entre as suas raízes e músicas mais cosmopolitas está bem patente. Esta entrevista - publicada originalmente em Novembro de 2003, aquando da sua vinda ao Sons em Trânsito, em Aveiro - ajuda a explicar os seus caminhos musicais...

SUSHEELA RAMAN
OS BRAÇOS DE KALI

Uma das grandes revelações da chamada world music nos últimos anos, Susheela Raman avança corajosamente pela pop, pelos blues, pela música clássica e pela música popular indiana, por África e Tuva e Espanha e por aí fora... Como se a deusa Kali, nas suas muitas mãos, segurasse diferentes tipos de música em cada uma.

Susheela Raman tem 30 anos. Nasceu em Londres, filha de pais indianos, e emigrou para a Austrália ainda criança. Em 1995 vai para a Índia estudar canto e música clássica indiana com Shruti Sadolikar. Regressa a Inglaterra em 1997, onde conhece Sam Mills, músico e produtor que fez parte dos 23 Skidoo (banda que, no início dos anos 80, foi percursora na fusão de ritmos de dança ocidentais com músicas étnicas) e que tinha acabado de gravar um álbum com o cantor indiano Paban das Baul. O clique entre Susheela e Sam é imediato: companheiros na vida e na criação musical, os dois atiram-se à grande aventura: fundir com bom-gosto, elegância e inventividade a música clássica do sul da Índia com a pop, os blues, o reggae, o jazz, a música do Mali e de outras partes do mundo, e sempre com a voz de Susheela a brilhar por cima. O resultado, «Salt Rain», editado em 2001, é assombroso e valeu-lhe o prémio BBC-Radio 3 na categoria World Music-Revelação e uma nomeação para o Mercury Prize. Dois anos depois, surge «Love Trap», um passo à frente e a descoberta de outras músicas: a música popular indiana (e não só a clássica de compositores oitocentistas como Tyagaraja e Dikshitar), o flamenco, o afro-beat nas peles de Tony Allen (que foi baterista de Fela Kuti) ou o «throat-singing» característico de Tuva levado por dois dos Yat-Kha. Dia 29, em Aveiro, vamos poder ouvi-la em concerto.

Como é que descobriu a música clássica indiana? Na infância?

Sim, era muito nova. A minha mãe tinha um grande interesse nesse género de música e pôs-me em contacto com ele. Gostava muito, mas esse interesse esbateu-se quando tinha quinze anos...

Porquê? Preferia ouvir outro tipo de música na adolescência?

Sim. Comecei a ouvir muito rock, pop; Beatles, Rolling Stones... E comecei a interessar-me por vozes femininas da pop como Annie Lennox (dos Eurythmics) e por cantoras soul como Aretha Franklin.

Também ouvia grupos de origem indiana radicados em Inglaterra como os Asian Dub Foundation ou os Fun-da-Mental?

Nem por isso. Vivi na Austrália muitos anos e só quando voltei a Inglaterra é que conheci o trabalho desses grupos.

E agora, o que é que ouve?

Muita coisa. Gosto muito da cantora peruana Susana Baca e da música de Tuva. Gosto de blues. E também gosto dos Radiohead e de PJ Harvey. Tenho gostos muito variados.

Na início da sua carreira pública cantou com o grupo de etno-house Joi. Isso foi importante?

Na verdade, não. Nos Joi, era apenas uma cantora contratada e não fazia parte do grupo. Limitei-me a pôr a voz em coisas deles.

Quando conheceu Sam Mills, a sua alma-gémea na música, percebeu logo que ele viria a ser importante para si?

Sim, fiquei logo apaixonada. Foi amor à primeira-vista, pelo menos da minha parte (risos).

Mas eu estava a falar de música...

Sim, mas isso só veio depois. Conheci-o num gabinete de «publishers» e ele disse-me aquela frase clássica «Não nos conhecemos de algum lado?». Mas fiquei logo apaixonada. Depois passámos um ano sem trabalhar em música; viajámos pela Índia...

Havia coisas mais importantes para fazer...

Sim (risos).

Há diferenças na maneira de trabalhar quando abordam as canções originais e quando fazem versões de canções indianas ou outras versões (como «Song To The Siren» ou «Save Me»)?

Sim. Numa canção como «Maya», por exemplo, a letra e a melodia são minhas e depois o Sam faz as harmonias e arranjos. Essa é uma maneira de trabalhar. Também podemos pegar numa melodia do Sam e eu trabalho-a depois para a minha voz. Com as canções clássicas indianas, pegamos nas letras e nas músicas originais e o Sam faz as harmonias. O «Song To The Siren» surgiu num outro projecto e fiquei apaixonadíssima por esta canção do Tim Buckley. Adoro-a. E ela vai ficando cada vez mais intensa à medida que a vou cantando, uma e outra vez, ao vivo. Esta canção tem o mesmo grau de espiritualidade que muitas canções indianas.

No seu primeiro álbum, «Salt Rain», canta algumas canções clássicas do sul da Índia. No segundo, «Love Trap», também interpreta canções populares e do norte da Índia. Quais são as diferenças mais significativas entre umas e outras?

Há diferenças de línguas e de construção musical. Mas depende... Por exemplo, «Sakhi Maro» é uma canção devocional, religiosa; não é clássica. Mas há muitas semelhanças entre as canções devocionais em toda a Índia. Já «Ye Meera Divanapan Hai» é uma canção retirada de um filme indiano. As grandes diferenças estão nas músicas clássicas do sul e do norte, mas não canto música clássica do norte...

Mas sente algumas diferenças siginificativas entre o primeiro e o segundo álbum?

Sim. O segundo tem mais ritmo, mais percussões, mais «groove». E é mais denso - no sentido que tem mais elementos musicais -, mais intenso, mais elaborado, com mais energia. Há pessoas que gostam do muito do primeiro mas já não gostam do segundo álbum; que preferiam que não tivesse mudado. Mas não podemos ficar a fazer o mesmo disco para sempre... O próximo álbum também vai ser diferente deste.

Numa entrevista, disse que se via mais como uma cantora pop do que como uma cantora de world music... Mas os músicos com que trabalha e que convida para os seus discos vêm quase todos de diferentes partes do mundo...

Isso é tudo muito relativo. Conhece o Johnny Halliday?

Sim, o rocker francês.

Pois, o outro dia entrei numa loja em Londres e ele estava na secção de world music (risos). Onde é que vocês, em Portugal, metem a Mariza? Ela, para vocês, é world music?

Não; é fado.

É isso que eu quero dizer. Muitas vezes, a designação world music não faz sentido. Muitas das pessoas que trabalham e gravam comigo vêm de géneros musicais diferentes. E muitos vivem em Londres e em Paris. A ideia não é reunir pessoas da world music, mas pessoas de diferentes culturas. Nunca disse: vamos fazer um disco de world music... (risos)

A Susheela canta em inglês mas também em diferentes línguas indianas (hindi, tamil, sânscrito...). Fala alguma delas no seu dia-a-dia ou tem que as aprender para cantar nessas línguas?

Eu falava tamil com os meus pais quando era criança e já cantava nalgumas dessas línguas. Infelizmente, neste momento não falo com ninguém em tamil porque os meus pais foram viver para a Índia. O Sam fala bastante bem uma língua da Índia, bengali, mas estou a pensar ensinar-lhe tamil. Apesar de ser difícil: é difícil dizer palavras como «uárrââparââm» (Nota: tentativa, provavelmente mal conseguida, de transcrição fonética...).

Ganhou um prémio da BBC; já fez várias digressões... Como é que está a lidar com o sucesso?

É um sucesso relativo. Mas é verdade que os últimos anos têm sido muito cansativos. Andar de país em país, de concerto em concerto, de aparição na TV em aparição na TV... Tenho que parar e fazer férias durante um mês. Principalmente para pensar. Mas não acho que esteja uma pessoa diferente... Estou, isso sim, cada vez mais confiante em cima de um palco. Estou a ficar uma melhor performer...

Dentro de alguns dias vai actuar pela primeira vez em Portugal. Quem é que a acompanha e como é o seu som ao vivo?

É mais forte, mais físico, tem mais energia. Não vamos duplicar o som do disco - mais a mais, sairia caríssimo levar os músicos todos para cima do palco (risos). Ao vivo sou eu, o Sam, Djanuno Dabo - percussionista da Guiné-Bissau -, e outro percussionista, Aref Durvesh - mas este é capaz de não ir porque está com alguns problemas. Mas eu gosto da luta de percussões africanas e indianas - é dinamite. E também um baixista.

Tem uma canção, «Woman», dedicada à deusa Kali. A Susheela concorda se eu disser que tem muitos braços e um género musical diferente em cada mão?

Sim, porque não?... Essa é uma boa maneira de ver a minha música...

27 setembro, 2006

World Circuit - Vinte Anos de Encantamento


Há algum tempo, a propósito de «Savane», de Ali Farka Touré, referi que mais dia menos dia iriam aparecer gravações inéditas do génio do Mali... Pois elas aí estão, na colectânea «World Circuit Presents...» - com edição marcada para meados de Outubro -, comemorativa dos 20 anos desta importante editora de world music, que deu a conhecer a muita gente a arte de Ali Farka, dos músicos cubanos recuperados no projecto Buena Vista Social Club (na foto), de Oumou Sangare, Toumani Diabaté, Sierra Maestra e Afel Bocoum, entre muitos outros...


VÁRIOS
«WORLD CIRCUIT PRESENTS...»
World Circuit/Megamúsica

Se não fosse pelo resto - que é muito -, esta colectânea já valeria pelos dois autênticos rebuçados a derreterem-se na boca dos fãs de Ali Farka Touré que são a versão ao vivo de «Amandrai» (oito minutos de encantamento puro; Jimi Hendrix em abençoados drunfos em vez de coca...) e um inédito absoluto, outtake das sessões de gravação de «In The Heart of The Moon» com Toumani Diabaté, o tema «Du Du» (com uma kora fadista de Toumani e uma guitarra de Ali Farka em círculos e pontilhismos minimais...). Mas «World Circuit Presents...», disco-duplo, tem ainda outros inéditos que os coleccionadores agradecem: um avanço do álbum dos quenianos Shirati Jazz que vem aí, um inédito do mestre do gnawa Mustapha Baqbou, outro da cantora mauritana Dimi Mint Abba e uma gravação «no terreno» de Afel Bocoum (com uma guitarra mágica e grilos ao fundo...). E temas emblemáticos - embora não inéditos - de artistas da World Circuit estão também no rol. Temas do colectivo Buena Vista Social Club, Cheick Lô, Radio Tarifa, Afro Cuban All Stars, Abdel Gadir Salim, Oumou Sangare, Toumani Diabaté's Symmetric Orchestra, Ali Farka Touré com Ry Cooder, Orchestra Baobab e Los Zafiros, para além de algumas pérolas do fundo de catálogo da editora: temas do cubano Ñico Saquito, do trompetista argelino Bellemou Messaoud ou do grupo vocal Black Umfolosi, do Zimbabwe.

A World Circuit - liderada por Nick Gold, que tem no fantástico engenheiro-de-som Jerry Boys o seu braço-direito - começou por ser uma pequena agência de concertos. Mas quando cresceu como editora fê-lo de uma forma honesta e límpida, dando sempre aos músicos contratados excelentes condições de gravação, patrocinando parcerias frutuosas com outros produtores e músicos (Ry Cooder, Pee-Wee Ellis, Youssou N'Dour...) e abrindo-lhes, muitas vezes, as portas para digressões de sucesso em todo o mundo. Dar os parabéns à World Circuit é pouco. (8/10)

26 setembro, 2006

Madredeus - Uma Viagem Interminável


Se se consultar o site dos Madredeus (na nova lista de links aqui ao lado, ainda à espera de mais acrescentos meus e de quem me esteja a ler), poderá verificar-se facilmente que o grupo de Teresa Salgueiro e Pedro Ayres Magalhães (e José Peixoto, Carlos Maria Trindade e Fernando Júdice) continua a levar a sua música, e a música portuguesa, a muitos lugares, numa digressão que parece não terminar, nunca. E que está ainda ligada ao álbum «Um Amor Infinito» - a propósito do qual recupero aqui uma entrevista com Pedro Ayres Magalhães, de Maio de 2004 - e àquele que foi registado nas mesmas sessões de gravação («Faluas do Tejo», editado em 2005). Depois disso, Teresa Salgueiro lançou o álbum a solo «Obrigado», no Natal do ano passado, mas de um disco novo - e do «fechar de ciclo» de que Pedro Ayres fala nesta entrevista - do grupo não se sabe nada...


MADREDEUS
OBRIGADO

O novo álbum dos Madredeus, «Um Amor Infinito», é ao mesmo tempo o fechar de um ciclo e um agradecimento aos seus fãs e à sua cidade de origem, Lisboa. A palavra a Pedro Ayres Magalhães...

«Um Amor Infinito» é o novo conjunto de canções dos Madredeus. Canções que falam, algumas delas, de Lisboa, cidade que assistiu ao nascimento do grupo mas que, ao longo de anos de viagens contínuas, só de vez em quando é morada habitual de alguns dos músicos dos Madredeus. Não por acaso, «Um Amor Infinito» tem um sub-título, em letras mais pequeninas, «Lisboa 2004». Diz Pedro Ayres (fundador, guitarrista e ainda o principal compositor do grupo): «É como se fosse a assinatura de um quadro... Nós temos o desidério de fazer uma música universal, de tocar para muitos públicos diferentes, mas as nossas obras correspondem a um período, como se fosse o período de um pintor ou de um escultor ou de um fotógrafo». E, antes ainda de explicar este reacender da paixão por Lisboa, Pedro explica o conceito de «período artístico»: «Isto pressupõe a existência de um atelier, de uma oficina, em constante aperfeiçoamento, e em que cada período cria um reportório para si próprio que tenta satisfazer melhor que o anterior as características estilísticas, históricas, do grupo, e as actuais». E Lisboa?... «Neste caso, o disco foi gravado em Lisboa - o nosso último disco que tinha sido gravado em Lisboa foi o «Existir» [1990] - e corresponde a uma mudança de estratégia do grupo: antes do «Movimento» tocávamos o ano todo ininterruptamente, e a partir do «Movimento», o grupo, para se manter unido, decidiu só tocar 15 dias por mês. E esta fase é aquilo que eu chamo "a fase do acampamento em Lisboa". E isso tornou-nos, de novo, cidadãos de Lisboa, porque há anos que não púnhamos cá os pés. Este disco tem treze canções, mas ficaram muitas de fora: em cada disco, que acaba por ser o reportório de concerto que vamos apresentar a seguir, preparamos sempre outras canções para o concerto que não entram no disco. E neste reportório estão canções inspiradas ou dedicadas a Lisboa, e estão também canções destinadas à juventude de todo o mundo, um pouco como a "Canção aos Novos", como agradecimento a todos aqueles que nos ouviram e acarinharam ao longo destes anos todos...».

O reportório de «Um Amor Infinito» é, na prática, o reportório do quinto concerto apresentar pelos Madredeus. Um disco - e a digressão que aí vem - que marca, também o fechar de um ciclo do grupo: «Temos a sensação de que o grupo vai ter que, depois disto, renovar-se de alguma forma. Neste disco atingimos a mais sofisticada criatividade que é possível dentro do contexto de desenvolvimento deste grupo. Não vejo isto como chegar aos nossos limites, mas mais como chegar aos limites do tempo... Nunca soubemos o nosso futuro, como ainda não sabemos... e quis escrever uma canção chamada "Um Amor Infinito" porque quis que ficasse na memória do nosso público como o agradecimento final dos Madredeus, a grande vénia ao extraordinário estímulo que recebemos de tantas minorias em tantos lugares do mundo - e falo em minorias porque o Madredeus é um grupo completamente fora do mainstream: é um grupo sem bateria, que canta em português... mas que foi recebido nos grandes teatros do mundo para apresentar todos os seus concertos... Os Madredeus, em quase todo o lado, são só conhecidos por algumas elites: veja-se, por exemplo, a relação da comunidade emigrante portuguesa com os Madredeus, que é praticamente nula; nós tocamos em Paris, por exemplo, e há portugueses mas há muitos mais franceses...».

O conceito por trás do álbum não se cinge, no entanto, às duas vertentes já referidas. O instrumental «O Olival» passa por músicas de várias épocas e vários lugares e tem, segundo Pedro Ayres, um objectivo que pode ser traduzível por palavras: «A oliveira é a árvore de Jerusalém, do Médio Oriente... O símbolo dos Templários era uma folha de oliveira e a minha inspiração para esse tema veio da linha de castelos templários ao longo da fronteira portuguesa... e seguindo essa linha percebe-se onde estava o agressor, percebe-se que não estava do lado de cá porque os castelos eram construídos para defesa. E fiz esse tema também para chamar a atenção para o estado de muitos desses castelos, que estão em ruínas, largados ao abandono, e que deveriam ser recuperados. Poderiam ser um chamariz turístico valiosíssimo, com gente de toda a Europa a vir visitar o roteiro dos castelos dos Templários: mais do que o vinho, mais do que a praia, mais do que o Manuelino...».

Essa preocupação com o passado e com a História de Portugal não é estranha a todo o percurso criativo dos Madredeus: «Sim, os Madredeus continuam a encenar a Saudade: são uma mulher [Teresa Salgueiro] sozinha em palco com os músicos lá atrás a fazer uma música que emula o mar, que emula o vento; e aquela mulher espera que alguma coisa aconteça, não se sabe muito bem o quê...». E acrescenta: «A música dos Madredeus é toda feita para a Teresa: ou quando ela canta, ou quando ela se cala... E todo o reportório dos Madredeus pode ser visto como se fosse uma colecção de vestidos para a Teresa. E numa certa época fica-lhe bem o amarelo, e noutra época fica-lhe bem o azul... Eu, como director artístico do grupo, tento ser sempre sensível quando escolho as canções que vamos levar para o palco e/ou para as gravações. Para além de que a identificação dos Madredeus ao passado é feito através da Teresa, e das duas guitarras clássicas, mas principalmente da Teresa».

A formação dos Madredeus continua a ser a mesma dos últimos anos: Teresa Salgueiro (voz), Pedro Ayres Magalhães (guitarra), José Peixoto (guitarra), Carlos Maria Trindade (sintetizadores) e Fernando Júdice (baixo acústico). E pergunto a Pedro Ayres se os Madredeus nunca sentiram a necessidade de recuperar a variedade tímbrica dos primeiros anos (quando também conviviam com acordeão e violoncelo)... Pedro responde que «os Madredeus vivem da exequibilidade e da independência do nosso grupo. Estes Madredeus vivem no limite daquilo que é possível organizar de forma independente. E a entrada de outros músicos punha-nos problemas até a nível logístico: quando viajamos compramos um bilhete de grupo para dez pessoas [os músicos e os técnicos], um a mais e ficaria muito mais caro. Pode parecer uma questão sem importância, mas não é, porque nós não temos subsídios de maneira nenhuma e temos que pensar nessas coisas... Essa liberdade permite-nos ir tocar a todos os pontos do mundo, o que de outra maneira - se fôssemos um grupo mais caro - já não nos seria permitido...». E acrescenta ainda outra razão: «O Madredeus é uma sociedade, não há músicos contratados, e somos um grupo ímpar, com cinco elementos, o que nos permite tomar decisões muito mais facilmente quando um dos elementos pode desempatar as questões... Nós não nos associámos para tocar até ao fim da nossa vida; associámo-nos para tocar até 2007, daqui por três anos; o que não quer dizer que não continuemos depois disso... E dentro de uns meses, em 2005, saímos de Lisboa com o nosso "submarino", vencemos mais uma vez o bloqueio à música não comercial e fazemos um concerto em que a música é tocada pelas nossas próprias mãos...». E depois?... «E depois já não é garantido que façamos um disco num estúdio, podemos fazê-lo em minha casa; e depois já não é garantido que lancemos um disco como o conhecemos até aqui: posso distribuí-lo na internet, com as pessoas a pagarem com cartão de crédito. Posso vir a fazer uma rádio, a Rádio Madredeus - porque a rádio não passa as nossas canções... Não sei. E é também por isso tudo que falo no fim de um ciclo».

Paralelamente, falo-lhe de rumores que circularam há alguns anos acerca da possibilidade de o grupo alargar o leque de instrumentos, nomeadamente com a entrada do flautista Rão Kyao. Pedro diz que é verdade: «Já pensámos em juntar outros músicos, pontualmente. O Rão Kyao, mas também já pensámos numa guitarra portuguesa e até num percussionista brasileiro com quem tocámos no Brasil e aquilo resultou muito bem, tal como resultou uma experiência que fizemos com a cantora peruana Tania Libertad... Nunca enjeitámos a ideia de colaborações: os concertos com a orquestra belga foram produzidos por nós, mas com um dispêndio de energia e de tempo muito maior... E o nosso grupo atingiu uma versatilidade que já não precisa de outros músicos». Uma das ideias primeiras dos Madredeus era até, em cada país por onde passassem, convidar músicos ou cantores locais para os seus concertos, mas, mais uma vez, a logística raramente o permitiu - «Era preciso chegarmos três dias antes, ensaiar, trabalhar com eles e por aí fora...» - e o calendário apertado das digressões - concertos diários em cidades diferentes, muitas vezes em países diferentes... - tem impedido este propósito.

25 setembro, 2006

Bonga - Esta Semana na Aula Magna


Um dos pioneiros da actual música angolana, Bonga, dá esta semana, dia 29, um concerto numa das mais prestigiadas salas da capital, a Aula Magna da Universidade de Lisboa. Com alguns convidados especiais como o também angolano Waldemar Bastos e a cantora cabo-verdiana Lura, Bonga (José Adelino Barceló de Carvalho, aka Bonga ou Bonga Kuenda) far-se-á acompanhar pela sua banda - Carlos José (baixo), André Francisco (acordeão), Lito Graça (bateria), Betinho Feijó (guitarra) e Chalana (percussões) - e promete apresentar, à mistura com temas novos, muitos dos clássicos que gravou para os míticos álbuns «Angola 72» e «Angola 74», à semelhança do que fez no memorável concerto do último África Festival, em Belém. São sembas, merengues e kizombas (e quase de certeza também a morna «Sôdade»), no concerto de encerramento do Projecto «Força Angola».

23 setembro, 2006

Tartit e Etran Finatawa - A Magia da Música Tuaregue (e Wodaabe)


Os Tinariwen são, provavelmente, o grupo de música tuaregue mais conhecido no Ocidente. Mas antes deles já os Tartit (na foto) tinham mostrado ao mundo estas melodias hipnóticas e estes ritmos concêntricos, em círculo e espiral, que nos sugam lá para dentro para deles dificilmente sair. O seu novo álbum, «Abacabok», é editado por estes dias. E, depois dos Tinariwen - e com semelhanças evidentes com eles -, surgem agora os Etran Finatawa, estes uma interessante junção de músicos tuaregues com músicos de etnia wodaabe. O seu álbum de estreia, «Introducing Etran Finatawa», foi editado há alguns meses.


TARTIT
«ABACABOK»
Crammed Discs/Megamúsica

Imagine-se uma brisa de vento quente, um movimento suave e lento, como se toda a areia do deserto levasse a eternidade inteira a escorrer na garganta de uma ampulheta. E imagine-se agora que este estilhaçar do conceito de tempo é feito de notas musicais raras e belas, de vozes - quase sempre cinco vozes femininas (que cantam ou que gritam e ululam, batem palmas e tocam percussões) - e de instrumentos de cordas que estão nas mãos de quatro homens velados por panos azuis indigo: o imzad (violino de uma corda) e, aqui e ali, guitarras eléctricas. É assim a música dos tuaregues Tartit: como um chamamento que vem dos confins do tempo, como uma melopeia de despedida ao amante ou ao irmão que parte na caravana, como um grito de igualdade entre homens e mulheres (os tuaregues, que pertencem à imensa família berbere, são dos poucos povos do norte de África que, apesar de tendencialmente muçulmano, permite às mulheres escolher marido e divorciar-se), como uma luz apontada a um futuro mítico em que todos os povos do mundo terão uma voz que é ouvida. E é sempre de uma beleza imensa, tanto na sua (aparente) lentidão hipnótica como (oiça-se o final de «Achachore I Chachare Akale», com a colaboração de Afel Bocoum e da sua banda) quando acelera em direcção às estrelas. Ou quando faz a ponte - uma ponte frágil, feita de areia e de barro - entre a música gnawa e os blues de Ali Farka Touré (os Tartit vivem em Timbuktu, no Mali). Ou quando, como em «Tihou Beyatene», há um travelling de aproximação a uma música perigosa, urgente, insidiosa, com uma respiração que vem do fundo dos tempos e onde duas vozes parecem conter toda a sabedoria do universo. A mesma respiração, em uníssono, que se ouve em «Al Afete», com vozes e uma flauta, numa oração pela paz, e no incandescente tema final, «Inbahwa», tocado só com imzad. (9/10)

ETRAN FINATAWA
«INTRODUCING...»
World Music Network/Megamúsica

Embora ligeiramente menos interessante e menos rico em nuances que o novo álbum dos Tartit, «Introducing Etran Finatawa» (com o sub-título «Desert Crossroads: Tuareg and Wodaabe Nomads Unite»), álbum de estreia dos Etran Finatawa, é também uma excelente porta de entrada na música dos tuaregues e, neste caso, também dos wodaabe (tribo nómada, tal como os tuaregues, mas de origem, língua e culturas diferentes - os tuaregues são berberes e falam tamashek enquanto os wodaabe são de etnia fulani). Originários do Niger, os Etran Finatawa (nome que significa «as estrelas da tradição») são seis wodaabe e quatro tuaregues, unidos pelo mesmo gosto pela música e pelo mesmo desejo de paz entre todas as etnias que vivem ou viajam pelo rio Niger (Nota: não esquecer que o Festival do Deserto, no norte do Mali, é exactamente uma celebração pacífica de comunhão entre tribos daquela imensa região há ainda poucos anos desavindas). E um gosto pela música que os faz viajar livremente pela música tuaregue, sim, por solistas e coros ricos em harmonias (os cantos wodaabe são polifónicos e ricos em jogos de chamada-resposta), sim, mas também pelo rock ácido e pelos blues eléctricos, pela experimentação e pelo funk, numa linha às vezes próxima dos Tinariwen, outras mais perto de Ali Farka Touré. Isto é, nos Etran Finatawa há guitarras eléctricas, muitas, mas também há espaço para surpresas como as vozes em transe, as palmas a compasso e uma flauta em espasmos no belíssimo «Maleele», ou a fabulosa «Anadjibo», uma canção wodaabe que fala das dificuldades que um nómada tem para cumprir os preceitos da religião muçulmana (se o fiel pára a uma hora certa para rezar a Alá, a sua vaca foge-lhe; já se não rezar fica com a vaca, mas...) ou ainda a canção/dança mágica «Ronde». (8/10)

22 setembro, 2006

Gospel - Música Sagrada, Música Viva


No imenso poço sem fundo que é a chamada world music também entram as músicas sagradas, de celebrações religiosas, funerais, procissões, ritos de iniciação... Os textos que se seguem - dedicados aos fabulosos Blind Boys of Alabama e à música gospel - foram publicados originalmente no BLITZ em Setembro de 2004, a propósito de um álbum de... Ben Harper.


BLIND BOYS OF ALABAMA
A LUZ INTERIOR

Os Blind Boys of Alabama - companheiros de Ben Harper no novo álbum «There Will Be a Light» - existem já desde 1939. São, portanto, senhores de uma carreira com quase sete décadas, iniciada quando eles ainda eram adolescentes e estudantes no Alabama Institute for the Negro Blind (uma escola para cegos), no Alabama, Estados Unidos. Eram cinco e quase todos cegos de nascença - daí o nome adoptado originalmente, The Five Blind Boys of Alabama, depois de começarem por ser conhecidos como Happy Land Jubilee Singers - e não escondiam a influência do na altura importantíssimo Golden Gate Quartet, um dos maiores grupos gospel de meados do século XX.

A primeira gravação dos Blind Boys ocorre em 1948 e o grupo tem alguns sucessos na década seguinte - um deles com o significativo título «I Can See Everybody's Mother But I Can't See Mine» (numa alusão à visão interior de Maria, mãe de Jesus Cristo e «de toda a gente», mas à impossibilidade de verem a sua mãe terrena). E é em 1950 que retiram a palavra Five do seu nome, devido à morte de um dos membros do grupo. Gravando regularmente ao longo das últimas décadas, os Blind Boys of Alabama tiveram alguns pontos altos da sua carreira no musical da Broadway «The Gospel At Colonus» (peça de Bob Telson e Lee Breuer, levada à cena em 1983) e em colaborações várias, nomeadamente com Peter Gabriel (para cuja editora, a Real World, gravaram alguns álbuns nos últimos anos). No grupo ainda se mantêm os fundadores Clarence Fountain (geralmente visto como o líder), Jimmy Carter e George Scott, acompanhados por membros mais recentes: Joey Williams, Ricky McKinnie, Bobby Butler e Tracy Pierce.


VOZES QUE FALAM COM DEUS (E UMAS COM AS OUTRAS)

A música é uma forma de comunicação. Do músico/cantor consigo mesmo, do músico/cantor com outros músicos e com outras pessoas (o público, a audiência), do músico/cantor com Deus (ou com os deuses). Se calhar, as primitivas - e primeiras - manifestações musicais da humanidade prendiam-se com a necessidade de comunicar com os outros seres humanos e também com os primeiros deuses que os homens (re)conheceram: a natureza circundante. Flautas que imitavam o canto dos pássaros, tambores que mimavam o som dos trovões, cordofones cujo som parecia água a correr, trompas que competiam em potência com o bramir dos elefantes (e cujo som também podia, eventualmente, derrubar muros e ameias)...

A Idade Média na Europa assistiu à emergência do canto gregoriano - coros masculinos que, a uma só voz (una, monofónica e codificada para não permitir desvios ou heresias), elevavam os seus cantos ao Deus católico, aumentados pelos «amplificadores Marshall» naturais que eram as catedrais góticas. Do cimo dos minaretes das mesquitas muçulmanas, o muezim canta versos do «Corão» para chamar os fiéis à oração. No Tibete, os monges budistas podem elevar as suas vozes e as suas enormes trompas metálicas (tão parecidas com as trompas dos Alpes!... a milhares de quilómetros de distância, mas a altitudes quase tão «perto» do Céu quanto as tibetanas e com necessidades de comunicação mais terrenas semelhantes) para abençoar as parcas colheitas nas encostas dos Himalaias... Etc, etc, etc...

Nos Estados Unidos, no século XIX e inícios do século XX, toma forma um novo género de música religiosa: o gospel (que significa, literalmente, «Evangelho», que por sua vez significa «Boa Nova»). E o gospel desenvolve-se no seio de igrejas protestantes (baptistas/evangélicas/pentecostais) do sul dos Estados Unidos, espaços de liberdade onde os ex-escravos negros do sul dos Estados Unidos podiam cantar, a solo ou em coro, os seus hinos a Deus - preces, agradecimentos, louvores... - e onde incluíam elementos africanos: uma maior liberdade no fraseado dos cânticos (improvisos), a inclusão de elementos percussivos (palmas, o bater dos pés), a dança... -, notas impensáveis, na altura, na música religiosa europeia ou dos Estados Unidos brancos. E notas vindas dos cânticos religiosos dos escravos (os espirituais negros) já antes «ensaiados» nos campos de algodão - o mesmo «alfobre» em que nasceriam os blues - onde trabalhavam. Outra coisa: no gospel cantam os pastores da igreja e/ou os fiéis - muitas vezes num movimento de parada e resposta, de diálogo uns com os outros -; a solo ou em coro (e aqui pode incluir-se o quarteto ou quinteto ou coros formados por dezenas de pessoas); homens e mulheres; negros e, anos depois, também muitos brancos; pode ser cantado a capella ou com a ajuda de instrumentos. É, portanto, uma música aberta a toda a gente e sem hierarquias internas, desde que a Fé seja comum.

Apesar de haver outras formas de gospel - como o country gospel (canções country de temática religiosa) - é o gospel tradicional, de raiz negra, que nos interessa aqui. Um género que começou logo a ter alguma visibilidade com digressões dos Fisk Jubilee Singers no final do século XIX e com a fama de C. Tindley (que começa a dar concertos a solo no início do século XX) e de T.A.Dorsey, que codificou o gospel e lançou vários coros profissionais nos anos 20 e 30 do século passado. Entre os nomes maiores do género podem incluir-se Mahalia Jackson (cantora promovida por T.A.Dorsey e que viria a ser o nome maior do género), os Pilgrim Jubilee Singers, os Sensational Nightingales, a cantora Dorothy Love Coates, os Mighty Clouds of Joy, os Sweet Honey in the Rock (apesar de também incluirem outros géneros nos seus alinhamentos) e os referidos mais acima Blind Boys of Alabama. Nas últimas décadas, o gospel tradicional continua a ser cantado por milhares de cultores mas também evoluiu para outras formas, com a inclusão de variadíssimos géneros musicais - rock, soul, etc. - dando origem à CCM (música cristã contemporânea), «género» (que afinal são muitos géneros, apenas com as letras de índole religiosa a uni-las) onde se podem incluir artistas como o grande Sam Cooke (famoso cantor soul - e gospel - e pastor protestante), a cantora Amy Grant, o rapper dc Talk e bandas como os metálicos Stryper ou os punks MXPX.

Nada de estranhar se pensarmos que Ray Charles ergueu a sua carreira sobre uma então impensável junção de gospel e rock'n'roll (a música de Deus feita sobre, segundo alguns, os ritmos do Diabo) que viria a dar origem à soul e ao funk, Elvis Presley gravou inúmeros hinos religiosos e até Bob Dylan, em finais dos anos 70, gravou um álbum cristão, «Slow Train Coming». E que foi no gospel que se basearam maioritariamente, embora com letras de temática mais politizada e interveniente, as «black american freedom songs» do Movimento dos Direitos Civis (cujo símbolo maior foi o pastor protestante Martin Luther King). Por cá, em Portugal, o gospel tem alguma visibilidade através de grupos como os Shout (que acompanharam Sara Tavares) e ganharam uma nova «aura» com a inclusão de um coro gospel no álbum «Eclesiastes 1.11», dos Wray Gunn.

21 setembro, 2006

Sétima Legião - Aos Amigos...


Os Sétima Legião foram o melhor exemplo nacional de que se pode fazer uma música viva, pulsante, actual, ao mesmo tempo popular e elitista (entendendo-se aqui a expressão, sem preconceitos, como sinónimo de «destinada a um público mais exigente e esclarecido»). E foram-no desde o início. A primeira vez que os vi (finais de 1983? início de 1984?) foi na então ESBAL, no Chiado, com uma violoncelista entretanto desaparecida e já com Paulo Marinho numas gaitas-de-foles que davam ao rock, àquele rock, a raiz de que todas as antenas precisam. A última, mais de vinte anos depois, foi no Frágil, em mais uma das suas raras e quase secretas aparições que fazem a banda continuar viva e a prometer algo para algum dia (assim como ninguém estava à espera do álbum «Sexto Sentido», há alguns anos, talvez um dia destes apareça um novo álbum deles, músicos amigos para além da música, pessoas extraordinárias para além de músicos e amigos)... Aqui, em homenagem aos músicos - e aos amigos, então já nos Sétima Legião ou chegados ao grupo depois... - fica um texto de memória do álbum «A Um Deus Desconhecido», publicado no BLITZ em Novembro de 2002, por alturas de uma escolha colectiva da redacção dos melhores álbuns de sempre da música portuguesa...


SÉTIMA LEGIÃO
«A UM DEUS DESCONHECIDO»
(LP Fundação Atlântica 1984)

Naquela altura, início dos anos 80, estávamos a viver o chamado «boom do rock português». Que de rock - pela incipiência e mediocridade da maior parte dos projectos - tinha pouco e de português - pela injecção de um qualquer espírito local - ainda tinha menos ou quase nada. Mas havia excepções. Havia na altura bons grupos rock, só rock!, fosse ele que rock fosse: GNR, Xutos & Pontapés, UHF, Rui Veloso, Street Kids... E havia grupos, e artistas, que do rock partiam para uma qualquer ideia de portugalidade e/ou de tradição: Heróis do Mar, António Variações, Ocaso Épico... E havia outras aproximações, de outras áreas: os Banda do Casaco vão, nessa altura, e muito bem, ao rock. Os Trovante estão em alta. Fausto assina, em 1982, um álbum magnífico chamado «Por Este Rio Acima», com uma energia que, se não é rock, está lá muito perto.

No início dos anos 80, um grupo de miúdos lisboetas - fascinado pelos sons vindos de Manchester, mas também pela música tradicional portuguesa - pega em guitarra eléctrica, baixo, bateria, mas também gaita-de-foles, para fazer uma música que viria a ficar cristalizada, no seu estado mais puro, no álbum «A Um Deus Desconhecido», editado em 1984 pela independente Fundação Atlântica e produzido por Ricardo Camacho (que viria, depois, a fazer parte do grupo). Neste disco, os Sétima Legião começam em rock - «Com o Vento», obviamente devedor de uns Joy Division ou, até, de uns Big Country - e terminam com um piano - «Anos Depois» - entre John Cale e Brian Eno, como um fio de água que corre. E pelo meio fica um desfilar interminável de visão e ousadia, ao misturar no mesmo prato ambientes que vêm dos Joy Division, sim, mas também de Virginia Astley e dos Durutti Column, dos Sound e dos Young Marble Giants/Gist, com uma alma obviamente portuguesa. O instrumental «Mar d'Outubro» é um fado, sem o ser, com guitarra acústica e sons que imitam gaivotas; «Ritual» tem ritmos, e gaita-de-foles, que vêm da tradição mirandesa; «Pois Que Deus Assim o Quis» é uma marcha processional entre Trás-os-Montes e a Galiza. Surpresas. Encantamento.

A escola Sétima Legião continua: depois de «A Um Deus Desconhecido» outros álbuns vieram, os seus músicos - dessa altura ou entrados posteriormente - passaram (ou passam) pelos Madredeus, Golpe de Estado, Gaiteiros de Lisboa, os projectos a solo de Rodrigo Leão e Gabriel Gomes. Um mundo.

Última Hora - Dazkarieh Adiam Concerto

O concerto de apresentação do novo álbum dos Dazkarieh, inicialmente marcado para o próximo sábado, dia 23, foi adiado para dia 30 de Setembro, no mesmo local (no pátio do Museu Nacional de Arqueologia, Mosteiro dos Jerónimos, e à mesma hora, 21h30), devido à previsão de chuva feita pelo Instituto de Meteorologia para essa noite, em Lisboa.

20 setembro, 2006

Mercan Dede, Bajofondo Tango Club, «Electric Gypsyland 2» - Dança Ainda Mais Dança


Três álbuns saídos este ano mostram à saciedade que nem todas as fusões de música electrónica (se se quiser, música de dança no sentido da actual expressão anglo-saxónica «dance music») com géneros mais tradicionais de músicas...de dança são foleiras ou inúteis: «Bajofondo Remixed», dos Bajofondo Tango Club (na foto), «Breath», de Mercan Dede, e a colectânea «Electric Gypsyland 2». Ou quando a música de dança o é, duplamente.


BAJOFONDO TANGO CLUB
«BAJOFONDO REMIXED»
Surco Records/Universal

O tango foi um dos primeiros ritmos de dança, digamos, tradicionais a ter uma grande aceitação fora do país em que nasceu, a Argentina (e do Uruguai ali ao lado), para se espalhar por todo o mundo. E, de música de paixões violentas nas ruas e prostíbulos de Buenos Aires cantada por homens do calibre de Carlos Gardel, saltou para forma de arte maior - e para salões e grandes salas de concerto - com o génio de Astor Piazzolla. Reinventando-se. É, talvez por isso, quase natural que o tango seja um dos géneros mais recorrentes nas manobras fusionistas de uma enorme geração de novos músicos, argentinos e não só, que vão ao tango e o lançam para um presente feito de electrónica e novos ritmos de dança. Gotan Project, Tango Crash, Narcotango, Tangheto e os Bajofondo Tango Club estão na linha da frente dessa renovação. E os Bajofondo um bocadinho à frente do pelotão, mercê da junção de alguns cérebros maiores da música sul-americana: o compositor, guitarrista e produtor argentino Gustavo Santaolala (ele que é um dos mais importantes produtores de rock latino e o homem da banda-sonora de «Brokeback Mountain»), o compositor, produtor e DJ uruguaio Juan Campodónico, o teclista, DJ e compositor Luciano Supervielle, o violinista Javier Casalla, o bandoneonista Martín Ferres, o contrabaixista Gabriel Casacuberta e a vocalista (e video-jockey) Verónica Loza, e, sempre, mais uma mão cheia de colaboradores (como a fabulosa cantora Adriana Varela). E, se nos dois álbuns de originais do grupo, «Bajofondo Tango Club» e «Supervielle» (este assim chamado porque teve no teclista o seu principal compositor), os Bajofondo já tinham levado o tango a viajar por muitos e excitantes novos territórios, nomeadamente o hip-hop, neste «Bajofondo Remixed» - que inclui remisturas de temas dos dois álbuns -, ainda há lugar para o rap em «Miles de Pasajeros (Omar Remix)», mas também para muitos outros géneros - electro espacial, house, dub, drum'n'bass ou um chill-out suavezinho - às mãos de remisturadores como Alexkid, Capri, Lalann, Bad Boy Orange, Mercurio, Omar, Romina Cohn, Marcello Castelli, Boris Dlugosh, Twin, Calvi & Neil, Androoval ou Nortec y Zuker. E é quase sempre muito boa de se ouvir, eventualmente de se dançar, esta re-releitura da já de si releitura do tango dos Bajofondo - a quem interessar, «bajofondo» quer dizer «underground». (7/10)


VÁRIOS
«ELECTRIC GYPSYLAND 2»
Crammed Discs/Megamúsica

Quando apareceu, há três anos, «Electric Gypsyland» foi uma muito boa surpresa. O álbum incluía temas dos Taraf de Haidouks, Koçani Orkestar e Mahala Rai Banda remisturados por DJ Shantel, Señor Coconut, Mercan Dede (de quem se falará a seguir), Arto Lindsay, DJ Dolores e Juryman, entre outros, e aquilo foi uma festa para quem gosta de dançar ao som da música cigana balcânica, aqui com um toque de modernidade, sim, mas com um respeito enorme pela música original. Em «Electric Gypsyland 2», o conceito continua - aqui os temas remisturados são também dos Taraf de Haidouks, Koçani Orkestar e Mahala Rai Banda, mais um do francês Zelwer - mas com alguns desvios surpreendentes (como a releitura dos electrofolk Tuung de «Homecoming» dos Taraf De Haidouks; a fabulosa remistura dos Animal Collective para «Oi Bori Sujie», da Koçani Orkestar; o lindíssimo trabalho do argelino Smadj sobre «Mi Bori San Korani» dos Koçani Orchestra - com a adição de oud e kanun a fazer a ponte com a música árabe -; dos neo-klezmers Oi Va Voi sobre «A Rom and A Home», dos Taraf de Haidouks; a bossa-novização dada pelos Nouvelle Vague a «Morceau d'Amour», da Mahala Rai Banda; ou a subida ao nordeste brasileiro por Cibelle em «Maxutu», da Koçani Orchestra) e alguns momentos de festa e folia completas (oiçam-se as remisturas dos Balkan Beat Box para «Red Bula» da Mahala Rai Banda; da Forty Thieves Orkestar sobre «The Man Who Drinks» da Mahala Rai Banda; a africanização dos ShrineSynchroSystem - com Tony Allen na bateria e Sekou Kouyate, dos Ba Cissoko, em kora - em «Neacsu In Africa», dos Taraf de Haidouks; o trabalho dos ucranianos Yuriy Gurzhy e Wladimir Kaminer que transformam um tema de Zelwer numa skazada klezmer-balcânica divertidíssima e com alusões aos Gogol Bordello; ou «Spoitoresa», da Mahala Rai Banda revisto por Russ & Roc). Outra surpresa do álbum é «Ismail Oro», da Koçani Orchestra, remisturado pelos ressuscitados para a ocasião 23 Skidoo (aqui chamados 43 Skidoo, isto é Sam Mills e Fritz Catlin), acompanhados pela cantora indiana Susheela Raman, mulher de Mills. Ah, e uma adição feliz: o novo «Electric Gypsyland» traz também um CD-bónus com os temas originais. (9/10)


MERCAN DEDE
«BREATH»
Doublemoon

O músico, compositor e DJ turco Mercan Dede é um dos mais notáveis fusionistas de música de tradicional com as novas linguagens electrónicas. No seu novo álbum, «Breath», Mercan Dede - que pudemos ver numa rara aparição em palcos nacionais no festival Sons do Atlântico, em Lagoa - continua a assombrar com o seu bom-gosto nas opções estéticas tomadas (nunca, mas nunca, a sua mistura de influências e sonoridades descamba para uma mistela foleira qualquer) e, nos quinze temas do álbum, há sempre lugar para uma verdade maior - a presença de belíssimas vozes femininas e masculinas, incluindo as de Aynur Dogan e Azam Ali e, pela primeira vez, a dele próprio; o recurso a instrumentos tradicionais como a ney, o saz, sanfona, kanun, violino, oud e percussões variadas, tudo tocado por gente de verdade e não samplado - e para uma utilização equilibrada de músicas tradicionais (de inspiração sufi e outras de origem turca, música árabe, música indiana e paquistanesa...) com ritmos e texturas electrónicos, quase sempre em downtempo ou midtempo ou incorporando elementos jazzísticos (como no tema-título). É mais música para ouvir, para reflectir, se se quiser para meditar - os temas de Mercan Dede têm muitas vezes um carácter quase sagrado - do que propriamente para dançar. Mas é na sua esmagadora maioria muito boa e nada impede que alguns temas sejam usados numa sessão de dança do ventre ou, ficcionando, numa reconstituição futurista de danças dervixes adaptadas d'«A Casa Dourada de Samarcanda», de Hugo Pratt. «Breath» é a terceira parte de uma tetralogia dedicada aos quatro elementos - na Turquia, «Breath» tem como título «Nefes», que significa «ar», e segue-se aos álbuns «Nar» («fogo») e «Su» («água»). (8/10)

Festival do Sol Nasce no Montijo


A primeira edição do Festival do Sol decorre no Montijo no último fim-de-semana de Setembro com uma ementa variada: música, bailes tradicionais, artes marciais, teatro e conversas sobre músicas de raiz, no Cinema-Teatro Joaquim d´Almeida e nas ruas da cidade. Dia 29, às 18h00, há uma conversa sobre «Músicas de Raiz» com Iñaki Pena (do programa «Trebede», Rádio Nacional de Espanha) e Angel Goyanes (director da revista «Interfolk») e à noite, uma arruada e um concerto/espectáculo com os Galandum Galundaina e um grupo de Pauliteiros de Miranda. Dia 30, de manhã, há uma apresentação de Tai-Chi e uma sessão de contos infantis, seguido, ao meio-dia, de nova arruada dos Galandum Galundaina e Pauliteiros de Miranda. À tarde decorre um atelier de danças tradicionais (europeias e americanas) pelo projecto Tarantela e, à noite, um concerto pelo grupo espanhol Vino de La Casa. Dia 1, ainda integrado no festival, decorrem, durante a tarde, ateliers de Expressão Dramática e Expressão Plástica. Mais informações aqui.

19 setembro, 2006

Folk em Portugal - Mergulho em 2002


Mais uma descida à memória recente da música folk - e híbridos e escapadelas e paralelos - feita em Portugal. Desta vez, com álbuns saídos em 2002 e criticados nesse ano, em conjunto, no BLITZ: Dazkarieh, Roldana Folk, Terrakota (na foto), Macacos das Ruas de Évora e Manuel d'Oliveira. E, como adenda, uma entrevista com os Terrakota, também de 2002, a propósito do seu álbum de estreia.


TRADICIONAL EXTRA

A história de uma possível música de fusão - e usemos o termo sem o sentido, redutor, de jazz de fusão dos anos 70 - em Portugal, já é longa, rica e excitante o suficiente para que dela se dê aqui - e a propósito de cinco novos discos editados nos últimos meses - apenas uma breve pincelada. E, passando por cima de mistérios mais ou menos insolúveis como «de onde vem o fado?», «o cante alentejano deve mais à música árabe ou ao canto gregoriano?» ou «a música transmontana é celta ou nem por isso?», vêm-nos à memória, como possível quadro geral da «fusão», nomes como Amália Rodrigues, José Afonso, Sérgio Godinho, Banda do Casaco, Heróis do Mar, Sétima Legião, Ocaso Épico, Trovante, entre outros artistas e grupos que nunca se limitaram a um estilo (e tivessem ou não como base a música portuguesa de «raiz», urbana ou rural... e com todas as dúvidas ou confusões ou intersecções que estas palavras implicam). Mais recentemente, os Gaiteiros de Lisboa - os mais fantásticos estilhaçadores de barreiras da actual música portuguesa -, Amélia Muge, Né Ladeiras (a solo), Vai de Roda ou Realejo, começaram também a inscrever o seu nome no rol dos aventureiros.

E, já em 2002, há cinco discos de estreia que vão - corajosamente - pelo mesmo caminho. Quer venham do emergente movimento folk do Porto (os Roldana Folk), do cadinho de mistura de culturas de Lisboa (os Terrakota e os Dazkarieh), de uma escola de jazz em Évora (Os Macacos das Ruas de Évora) ou do Minho (o fado/flamenco/e tudo o mais que se verá de Manuel d'Oliveira), em todos eles se nota uma vontade imensa de saltar fronteiras - estilísticas, geográficas... - e, quase sempre, quando as saltam, não deixam que o corpo toque na fasquia e sejam, por isso, eliminados. Saltam mesmo, com distinção, paixão, estilo, amor, e uma vontade, óbvia, de saltar ainda mais alto (ou longe), um dia. Fala-se, aqui, portanto, de mistura, fusão, sincretismo ou miscigenação.


ROLDANA FOLK
«VOAR NO FOLE»
Açor

Do Porto - e tendo como base músicos que passaram, ou ainda passam, pelos Frei Fado D'el Rei e Ceia dos Monges -, os Roldana Folk avançam para uma área (estranhamente ainda pouco visível em termos de edições discográficas nacionais) próxima da chamada música celta e de algumas sonoridades comuns ao norte de Portugal, Galiza, Bretanha, Irlanda... Mas «Voar no Fole», o álbum, não se limita a ser um repositório de ensinamentos colhidos nesse universo. Com o acordeão de Helena Soares (que faz lembrar, por vezes, a liberdade dos foles de Kepa Junkera) e a voz, suave, de Isabel Martinho (também dos Chamaste-m'ó?) como as faces mais em evidência da sua música, os Roldana Folk passeiam, com estilo, pelo «celtismo», sim, mas também vão a nomes da música portuguesa como os Trovante e Adriano Correia de Oliveira («Barca do Mar»), à Penguin Cafe Orchestra («À Luz do Sol»), a África e à América Latina, aos blues e ao reggae («Baila a Dor»), a José Afonso, Banda do Casaco e a algum folk-punk à la Oysterband («Sem Convite»). E, aqui e ali, há cheirinhos de jazz, de África, de rumbas, merengues, cumbias e bachatas. Sem medos e com alegria. Há até um aflorar, tímido, da música de dança em «Barca do Mar (versão remix)». E a folk - mesmo quando realmente entendida como uma ida ao folclore (de Trás-os-Montes, da Irlanda...) - é apresentada com bom-gosto e saber. (7/10)


TERRAKOTA
«TERRAKOTA»
Zona Música

Trezentos quilómetros a sul, os Terrakota são produto daquele enorme caldeirão de culturas que, cada vez mais, é a cidade de Lisboa. Com músicos de origem portuguesa, angolana, moçambicana e italiana, os Terrakota deram que falar nos inúmeros concertos e festivais em que participaram (arrastando consigo um assinalável grupo de fãs) antes de se atirarem à gravação de «Terrakota», aquele que é, até ao momento, o melhor álbum de música portuguesa (com todas as dúvidas que, aqui, se podem colocar à palavra «portuguesa») do ano. Usando, por vezes quase «abusando», da fusão - ou com «tudo na mesma panela» (como os Terrakota explicam, em jeito de manifesto, logo no primeiro tema do álbum, «Curruputu») -, os Terrakota socorrem-se de sons vindos um pouco de todo o mundo, com particular incidência na música africana (desde a música mandinga do Senegal e arredores até à música gnawa marroquina) e num dos seus afluentes maiores, o reggae jamaicano. Em «Inch Allah» há música árabe que desce até ao Mali e evolui para um reggae cantado em francês e italiano. Em «Sonhador» mistura-se África com Cuba, em «Bouge de Lá» há mais música árabe, uma parte da vocalização que parece, estranhamente, um fado tal como soaria na voz de Anabela Duarte e funk rasgado, em «Mali» há uma inspiração óbvia que é Ali Farka Touré (numa descida à eventual nascente dos blues), e em «Bolomakoté» há música mandinga em luta permanente com a escola jamaicana toda - ska, dub, reggae, ragga -, tudo numa celebração absoluta de liberdade estilística. Aqui e ali, a América Latina, o rock, os Balcãs, juntam-se à festa. E à riqueza tímbrica do conjunto - os instrumentos étnicos (djembé, steel drum, balafon, kissange ou sabar) e os instrumentos típicos do rock - somam-se letras (em várias línguas) de intervenção: contra a «xenofobia, nacionalismo, racismo», por uma Terra-Mãe mais justa, mais igual, mais limpa, mais bela, mais aquilo que queremos que uma mãe seja. (9/10)


DAZKARIEH
«DAZKARIEH»
Bigorna

Ainda em Lisboa, e num caminho paralelo ao dos Terrakota (passa-palavra, concertos cheios de admiradores...), os Dazkarieh assinam um disco, «Dazkarieh», vivo, solto, livre, em que as músicas vêm de muitas músicas e há um espaço deixado para o silêncio, para ambientes (sons de água, o crepitar de uma fogueira...), para experimentações e misturas. Em «Dazkarieh», a música nunca está muito tempo no mesmo lugar, há dinâmica e variações, há viagens constantes. E há uma vontade evidente de transmitir estados próximos da magia e do encantamento a quem ouve a sua música. E o que é a sua música? É, em «Abour Safar», música árabe com algo aparentado a fado (uma eventual boa banda-sonora para um filme sobre a batalha de Alcácer-Kibir). É, em «Kriamideah», ora ambiental e suave - a lembrar Dead Can Dance e Banda do Casaco da primeira metade dos anos 80 - ora feito de percussões frenéticas em competição com uma tin whistle pastoril. É, em «Elgtue», uma gaita-de-foles encantatória, vagamente transmontana, com uma voz (a de Marie Beatriz) a voar lá dentro. É, em «Troligh Ol'jighil», música medieval, folk das ilhas britânicas tal como poderia ter sido tocada, repete-se o nome, pela Banda do Casaco, uma batucada africana e uma dança irlandesa estranhamente arraçada de flamenco. É, em «Miafarê Boi», uma viagem cinemática pelo Mar Negro (Grécia, Turquia, Balcãs). «Dazkarieh» é beleza em estado quase puro. (8/10)


MACACOS DAS RUAS DE ÉVORA
«MACACOS DAS RUAS DE ÉVORA»
Associ'arte

E agora, uma banda de metais portuguesa!... Outra coisa rara. É que, apesar da tradição dos «cavalinhos», das bandas de bombeiros (e outras) e das charangas de aldeia, há pouquíssima música gravada de bandas de metais portuguesas e, se pensarmos bem, temos quase a ideia de que ela não existe. Mas existe (lembro-me agora, já com saudade, da fabulosa e divertidíssima Bandinha da Alegria, que actuou nas últimas Cantigas do Maio). E Os Macacos das Ruas de Évora (no disco sem o artigo «Os») são um belíssimo exemplo do que pode ser uma «brass band» à portuguesa (apesar de o grupo ter mais estrangeiros que portugueses). Os Macacos fazem animação de rua e, no disco, esse lado festivo está bem vincado. Neles, o jazz está, obviamente, presente, mas a improvisação não apaga a base celebratória e as linhas melódicas, imediatamente reconhecíveis, das canções que eles interpretam. Canções como «Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades», de José Mário Branco, aqui transformada numa festa semi-klezmer, semi-ska, semi-jazzy, o tradicional alentejano «Passarinho» (numa versão divertidíssima, com assobios a imitar passarinhos, ou serão passarinhos a sério?), «Dona» (dos Ena Pá 2000!), duas de José Afonso - «Os Vampiros» em be-bop e «Grândola, Vila Morena» numa versão cool -, mas também «Janko Partner» (sacado ao carnaval de Nova Orleães, um dos berços do jazz e das «brass bands») ou «Fiju Fiju Kolo» (uma homenagem, natural digamos, às bandas de metais dos Balcãs), entre muitos outros. Os arranjos são alegres e os instrumentos brilham à vez, geralmente sobre uma base rítmica dada pelas percussões e pela tuba. «Macacos das Ruas...» tem dezanove temas (!), mas mais espaço houvesse no CD e mais temas estariam lá, por certo, numa viagem interminável. (7/10)


MANUEL D'OLIVEIRA
«IBÉRIA»
Ultimatum

Finalmente, uma surpresa: «Ibéria», de Manuel d'Oliveira, guitarrista que se atreveu a fazer a ponte entre o fado, a música tradicional portuguesa e o flamenco, num álbum instrumental que tem como vedetas a guitarra acústica e a viola braguesa, tocadas por d'Oliveira com virtuosismo - mas não em demasia, isto é, sem aquele «demais» que é «de menos» e que impede os virtuosos de captar a «alma» nas cordas das guitarras, sentindo-lhes apenas o «corpo». Em «Ibéria», d'Oliveira mistura a saudade do fado e o sangue na guelra do flamenco, com a ajuda de apontamentos, dispersos, de bossa-nova, música «celta», música tradicional portuguesa (obviamente com vantagem para o Minho, a terra da braguesa), a pop, o jazz (a sombra de um Pat Metheny apaixonado pelo flamenco paira sobre o tema «Viagens») e do tratamento dado por Júlio Pereira aos cordofones tradicionais portugueses (o cavaquinho ou a própria braguesa). Trabalhando com a ajuda de uma banda fixa que lhe dá outras guitarras (acústicas e eléctricas, um baixo acústico, bateria e percussões) e de alguns convidados especiais - António Chaínho (na guitarra portuguesa), dois espanhóis (ligados ao flamenco e ao jazz), Carles Benavent (baixo) e Jorge Pardo (saxofone), e o acordeonista Ricardo Dias (da Brigada Victor Jara) -, d'Oliveira mostra neste disco, pelo menos, três temas fantásticos: «O Momento Azul» (perto do fado; também muito à custa da presença de mestre Chaínho), «Obrigado Paco» (presumível homenagem a Paco deLucia, com os dois espanhóis no barco; entre o flamenco e o jazz) e «Nicolinas» (um tema inspirado numa festa vimaranense em honra de S.Nicolau, e aqui numa fusão dos dois universos - fado/flamenco - bastante bem conseguida). Como curiosidade - e como mais um exemplo da largueza de vistas de d'Oliveira - , refira-se que «Brisa Mediterrânea» (a faixa-extra) é uma remistura jazzy, electrónica e dançante do guitarrista dos Rádio Macau, Flak, e de Carlos Morgado (isto é, os dois Micro Audio Waves). (7/10)


TERRAKOTA
ESPALHAR A PALAVRA

A palavra passou. Ensaio a ensaio, concerto a concerto, festival a festival, uma maqueta roufenha ali, um tema numa compilação acolá. E a palavra cresceu: Terrakota. Sempre com público à frente. É um grupo hippie, ou então são freaks, sei lá, diziam uns. É reggae, garantiam outros. Não, aquilo é mais música africana - tem djembés e kora e balafon e kissanges. É world, é fusão, é uma máquina de dança. É um grupo de intervenção política&ecológica&social. E é muito alegre e policromático... Etc, etc. O tira-teimas chama-se «Terrakota» e pode agora ser levado para casa, em digipack colorido, com treze canções lá dentro. A entrevista - outras palavras que passam - é com Romi, Alex, Humberto e Francesco.

O álbum «Terrakota» é um bom espelho do trabalho de dois ou três anos do grupo?

É claro que, como músicos, sonhamos sempre com grandes meios, uma grande produção... E pensámos em quem poderia trabalhar connosco naqueles pormenores e em todos os sons que nós temos. E acabámos por trabalhar com o Dominique Borde, que nos acompanhou do princípio ao fim - foram muitas horas de trabalho e ele foi inexcedível. Não foi um trabalho fácil, principalmente ao nível da equalização da dinâmica dos instrumentos - principalmente os acústicos... A nossa grande dúvida era saber se conseguíamos passar a energia, o calor que conseguimos transmitir ao vivo para uma rodela de plástico. E, no geral, estamos satisfeitos, embora tenha havido coisas que não resultaram como nós queríamos.

Para quem não conhece os Terrakota, poderiam dizer de onde vem esta música que se ouve no disco?

Vem da Terra (risos). E esta é apenas uma pequena parte de estilos de músicas de vários lugares do mundo que nós queremos tentar abarcar no futuro. Nós partimos de estudos no terreno ou, pelo menos, de muitas audições de discos em casa de cada um de nós. Precisamos de estudar as rítmicas, de estudar técnicas - por exemplo, se queremos usar um baixo da música gnawa, temos que ir a Marrocos para estudar como se toca da maneira certa; neste momento tocamos esse instrumento mas ainda não correctamente.

Os Terrakota nasceram de uma viagem a África que alguns de vocês fizeram...

Mas antes da viagem já havia a ideia de iniciar qualquer coisa musicalmente. Ainda não sabíamos exactamente o que era, nem como seria, mas sabíamos que algo iria acontecer. Os três que fizemos essa viagem - Alex, Humberto e Júnior - já estávamos ligados à música há alguns anos, como percussionistas, e tínhamos um contacto grande com músicos da Guiné-Bissau que estavam aqui em Portugal. Depois fomos à origem...

E porquê esse gosto específico por África?

É uma questão de afinidade. Um de nós nasceu em Moçambique, outro em Angola... Há música e instrumentos riquíssimos em Portugal - a guitarra portuguesa, as gaitas-de-foles... - mas nós não temos que nos restringir a um território demarcado. E sentimos a necessidade de descobrir de onde vinha este calor, esta energia que nos faz ficar alegres.

Quando viajam, não se sentem por vezes como o ocidental que vai roubar a música dos outros?

Não. Para nós, o fundamental é a relação humana. Não vamos com aquela ideia de ir lá roubar os sons ou comprar um instrumento barato. Em África, fizemos amigos, que ficaram amigos, com quem partilhámos músicas e emoções. E agora ainda fazemos trocas de instrumentos, e ainda lhes enviamos coisas... Mas sabemos de histórias de roubos absolutos, de gente que vai para lá gravar em estúdios móveis, que promete pagar-lhes e depois não paga nada.

Disseram há bocado que muitos de vocês foram percussionistas... A base dos Terrakota é o ritmo - ou vários ritmos - e tudo o resto vem por acréscimo?


Muitas vezes é, mas outras não. Podemos começar a trabalhar numa canção com uma base de percussão mandinga, mas também podemos partir de uma frase de guitarra. E, depois, experimenta-se muito. Dá-nos um grande gozo partir de um estilo e começar a ir para outros, mesmo com grandes discussões entre nós. Por exemplo, o tema «Sonhador» parte de uma base africana mas surgiu uma zona do meio que é cubana. Levámos seis meses a chegar aí.

Quando vocês estão em cima do palco nota-se uma grande cumplicidade entre todos vós. Vocês funcionam mesmo em colectivo?

Há muito trabalho colectivo. Existe um grande equilíbrio entre nós e temos uma grande ligação uns aos outros. Há uns mais amigos que outros, mas quando trabalhamos estamos todos a trabalhar para o mesmo... Fomos três vezes a Itália, numa carrinha, e vamos voltar agora, com passagem por Espanha (NR: a entrevista foi feita antes da última partida do grupo para o estrangeiro), para uma digressão de seis ou sete datas. E isto só pode acontecer quando há uma grande unidade entre todos nós. Nós tratamos de quase tudo: para além da música, há os contactos, backlines, PAs, transportes, um stress constante... Neste momento já temos pessoas que nos estão a ajudar, mas durante dois anos vivemos quase em exclusivo para os Terrakota. E nos concertos as pessoas sentem o amor que nós pomos nisto tudo.

Há várias canções vossas que falam de questões políticas e ecológicas...

Quando formámos os Terrakota, para além de todo o colorido musical que queríamos transmitir, também tivemos a preocupação de falar de uma série de problemas que nos afectam pessoal e colectivamente. A Romi (Nota: vocalista principal do grupo) é discriminada por ser africana e teve problemas para se legalizar em Portugal... Não nos vamos «queixar» dessas coisas directamente, mas tentamos arranjar uma maneira de falar delas de uma forma eficaz. Não usamos slogans nem frases feitas, mas as ideias estão lá. Às vezes partimos de questões que nos dizem respeito directamente, outras vezes, há notícias que nos sugerem outros temas como o «Inch Allah» - que tem que ver com o Afeganistão - ou o «Dear Mama», que fala de questões ecológicas. Depois, cada música é cantada em duas ou três línguas diferentes. Usamos o inglês, francês, português, italiano, árabe, espanhol, dialectos africanos e o terrakotense, que é uma língua que nós inventámos. Às vezes, para transmitir uma emoção não é preciso falar numa língua conhecida.

A capa do vosso álbum é extraordinária...

A capa demorou imenso tempo a fazer. Foi um trabalho do Feijão (Nota: pintor e gráfico que trabalha habitualmente com os Terrakota), em conjunto connosco, que também tem que ver muito com viagens. Ele esteve seis meses no Brasil e trazia aquelas cores todas na cabeça.

Há pouco falaram dos vossos concertos no estrangeiro. Vocês estão a começar a tocar mais vezes lá fora do que em Portugal.

Mas isso também se deve à situação política que se vive em Portugal, com muitas Câmaras a acabar com festivais de música. O Santana Lopes, em Lisboa, acabou com montes de coisas, incluindo o Multimúsicas, que era um festival importantíssimo e que estava a crescer. Mas acabou. Ele está mais preocupado com as festas da noite e discotecas do que com qualquer outra coisa qualquer. Quando é preciso cortar, corta-se nas verbas para a cultura. Nós tínhamos concertos marcados antes das eleições que foram desmarcados depois...

Em contrapartida, estão a aumentar os convites lá de fora.

Sim, nós queremos viajar com este projecto... E é possível que consigamos licenciar o álbum para outros países europeus. Em Portugal o disco sai pela Zona Música, mas é possível que em Itália saia por uma subsidiária da Sony. E também é possível que seja licenciado para Espanha e França.

18 setembro, 2006

Né Ladeiras - A Voz


Se há uma voz que corporiza a tradição musical portuguesa (e a sua renovação, em muitos e variados caminhos), essa voz é a de Né Ladeiras. Pioneira da recuperação do cancioneiro tradicional com a Brigada Victor Jara, com uma passagem fugaz pelos Trovante, presença determinante na revolução da Banda do Casaco na viragem dos anos 70 para os 80, Né lançou-se depois numa carreira a solo enviesada, inaugurada com o maravilhoso EP «Alhur» e pontuada com demasiado poucos discos (e quase tão poucos concertos) para o que o seu talento e a sua voz exigem. O último, «Da Minha Voz», é de finais de 2001, altura em que esta entrevista foi publicada. E, passados quase cinco anos, ainda não há notícias de algum álbum novo a vir dos seus lados. Quem dera que houvesse...


NÉ LADEIRAS
COM QUE VOZES

Houve mulheres nos Descobrimentos portugueses. As que ficavam, quais personagens de Gil Vicente, e as que partiam: prostitutas ou grandes damas, uma ou outra até de espada na mão, degredadas de Portugal, escravas engajadas em África ou índias descobertas no Brasil. É destas mulheres, que raramente se cantam mas por certo cantavam, que Né Ladeiras - ainda e sempre uma das melhoras cantoras portuguesas - fala em «Da Minha Voz», o novo álbum.

«Da Minha Voz» é uma viagem por sons - o Brasil, o fado, a música céltica e hebraica e arménia, guitarras eléctricas, electrónica e também didgeridoos e gaitas-de-foles e sanfona e percussões e o canto da baleia-de-bossa - e pelas histórias, inventadas, adaptadas, alendadas, da História. A voz e a produção (e, às vezes, a letra e as músicas) são de Né Ladeiras. De outras vezes, muitas, a música é do brasileiro Chico César. E de outras vezes, também muitas, as letras são de Tiago Torres da Silva. Como músicos, um núcleo duro: Paulo Nunes da Silva (que já trabalhou com Paulo Bragança, Miguel Ângelo ou Ritual Tejo) nas teclas, Nuno Patrício (dos Dumdumba; ex-Boomerang) em vários instrumentos e Vasco Ribeiro Casais (dos Dazkarieh) também em montes de instrumentos. Convidados: Ney Matogrosso, Pedro Jóia, Carlos Guerreiro (dos Gaiteiros de Lisboa), Jorge Palma, Francesco Valente (dos Terrakota), José Luís Nobre e alguns mais... Um luxo.

A última vez que falei contigo foi num castelo perto de Coimbra, há quase três anos, estavas a gravar um novo álbum com o Hector Zazou, e aquilo deu para o torto...

Sim, estávamos a gravar na altura errada. Mas depois fizemos as pazes. Houve, na altura, um desentendimento de linguagem musical entre nós. Esse disco não saiu, mas há-de sair, com outras directrizes... Estou há bastante tempo em contacto com os Transglobal Underground no sentido de finalizarmos em conjunto esse álbum.

Mas é abusivo da minha parte dizer que esse trabalho com o Hector Zazou acabou por ter alguma influência, tempos depois, na gravação de «Da Minha Voz», em que há por vezes um maior investimento na pop e na electrónica?

Acho que sim. Vou beber muitas coisas àquilo que oiço. Não estou a falar de plágios, mas gosto de viajar por essas novas linguagens... e não gosto de estar parada no tempo. Há miúdos novos a pegar em máquinas e a fazer coisas fantásticas. As máquinas não substituem os músicos mas são uma mais-valia e sinto-me muito bem a usá-las.

Neste álbum tanto há canções muito descarnadas - só com guitarra portuguesa e viola, ou só piano, ou só cavaquinho, ou só sanfona e acordeão - como há canções muito mais orquestradas. Queres falar um pouco dessa «divisão»?

Isso tem a ver com o carácter de cada uma das mulheres. Quando canto uma índia, a canção não pode ter muitos artefactos nem artifícios. Ou «A Mulher do Granito Verde» (Nota: só com o piano de Jorge Palma e a voz), que está tão nua que não lhe podem tirar mais nada, nem a alma nem a dignidade nem o pensamento. Mas também há a guerreira, como na «Flecha» - a amazona, a princesa... -, que a obriga a ter um envolvimento musical mais produzido.

«Da Minha Voz» pode ser uma resposta, no feminino, ao «Por Este Rio Acima», do Fausto, um autor que admiras - e que homenageaste no álbum «Todo Este Céu» - e que, com esse disco, iniciou um ciclo de álbuns sobre os Descobrimentos?

Pode. E acho que é, mas no melhor sentido. Era urgente falar das mulheres que estiveram sempre na sombra, mas que foram muito importantes nos Descobrimentos portugueses... São histórias de mulheres que viveram naquela época...

Mas uma delas queria enviar e-mails...

Essa canção chama-se «Visionária» e alguém terá pensado nisso. Se, na altura, houvesse uma forma de comunicação mais rápida, não estaria tanto tempo nesse vazio, sem notícias dos que partiram...

Neste álbum gravaste um fado pela primeira vez na tua vida, «Memórias Antigas»...

E não é bem um fado. Não é assumido... mas há um cheirinho de fado. O disco começa com esse «fado», no Ocidente, e viaja depois para Oriente. Começa pela mulher actual, nas «Memórias Antigas», e termina na Arménia, no «Vou Num Rio». Todas elas são marcadas pelos Descobrimentos, no bom e no mau sentido, mas quis fazer uma ficção minha, um resgate das mulheres que muitas vezes ficam no anonimato mas são as grandes obreiras da nossa sociedade, desde sempre. É a minha maneira de ler a História.

Mas como é que fizeste efectivamente esse trabalho? Criaste imagens, sons, para as «personagens»?

Sim, exactamente. Tudo o que aparece no disco não é por acaso. Há um caso que é o do som das baleias de bossa, que têm o canto mais sedutor que já ouvi. Se aquele marinheiro não volta há que mostrar porque é que não volta: porque se deixou seduzir pelo canto das baleias... E depois, a baleia de bossa é um animal em vias de extinção...

Há sempre um animal «protegido» pela Né Ladeiras. Depois dos lobos...

As baleias de bossa... (risos)

Quem é que teve a ideia deste disco?

Fui eu. Depois falei com o Chico César, que adorou a ideia e o Tiago Torres da Silva propôs-se para fazer as letras. Eu já tinha alguns esboços, mas o Tiago investigou, fez pesquisa e criou as letras.

Porque é que o Chico César, apesar de compor a maioria das músicas, acaba depois por aparecer «fisicamente» muito pouco?

Sim, com aquela voz belíssima no «Por Um Cristo Nagô»... Porque o trabalho foi feito cá, numa quinta da Beira, em comunidade com os meus músicos e não era possível, fisicamente, tê-lo cá. Houve a ideia de ele produzir o disco, mas eu achei que poderia ser capaz de fazer eu esse trabalho. Isso era uma coisa que tinha que resolver comigo própria. Fiquei a gostar do trabalho.

Como é que escolheste os músicos para este trabalho?

Dois deles, o Vasco e o Nuno, trabalharam comigo no espectáculo em que estava eu, a Pilar e a Anamar (Nota actual: esse espectáculo foi depois editado em disco, «Anamar, Né Ladeiras, Pilar - Ao Vivo», em 2002). O Paulo veio depois. E foi um encontro muito feliz: andava ansiosa por encontrar gente nova, de uma geração diferente da minha. E com eles, foi amor à primeira vista. Os outros todos foram escolhidos, também, por amor... São músicos que admiro e que respeito. Foi óptimo trabalhar desta maneira, sem pressão, podendo optar por me rodear por quem queria. E senti que também fui muito respeitada.

Tens, neste momento, alguns outros projectos a andar...

Tenho, tenho vários. Há esse disco meu que os Transglobal Underground têm entre mãos, e espero que o milagre aconteça agora, porque a minha mudança de editora (Nota: Né gravava para a Sony antes de se transferir para a Zona Música) facilitou muito o processo... Um disco de cantares da Beira. Há outro, «Escritos no Deserto», e ainda um disco sobre a pintora mexicana Frida Kahlo...

Vais ter que deixar crescer o bigode!

Sim, e unir as sobrancelhas (risos). Ela é maravilhosa. Mas é melhor ir com calma, senão fica tudo embrulhado.

Continua a haver muita música dentro de ti...

Sim, e se isso deixar algum dia de acontecer é porque está prestes a dar-me alguma coisa muito má. Agora vivo numa aldeia da Beira, estou muito tempo sozinha, caminho, leio, oiço muita música. E vêm-me muitas ideias à cabeça. Algumas são um disparate. Mas há outras que eu digo: nem que leve cem anos, eu vou concretizá-las.

15 setembro, 2006

Música Cigana dos Balcãs - Novos Caminhos


A Música Cigana dos países do leste europeu é um alfobre riquíssimo de ritmos, melodias, orquestras de metais em alta velocidade, alguns violinos que mais parecem metralhadoras sónicas, vozes dulcíssimas ou rudes e vindas do fundo dos tempos. E uma história, antiga, que só há poucas décadas começou a ter visibilidade fora das fronteiras (tantos anos fechadas) da Roménia, Hungria ou dos novos países que faziam parte da Jugoslávia. Nos últimos anos, esta música antiga começou a fundir-se, naturalmente, com outras músicas, exteriores, estrangeiras, modernas. Aqui deixo a crítica a três álbuns recentes de alguns dos fusionistas mais radicais que têm como raiz a música cigana do Leste: KAL, Gogol Bordello (na foto) e Shukar Collective. E isto numa altura em que também já andam por aí um álbum do grupo inglês de música de dança Basement Jaxx, «Crazy Itch Radio», que também vai lá beber inspiração e o segundo volume do álbum de remisturas «Electric Gypsyland».


KAL
«KAL»
Asphalt Tango/Megamúsica

Originários da Sérvia, os Kal são liderados pelo cantor e guitarrista cigano Dragan Ristic, cuja visão musical tanto lhe permite mergulhar na tradição genuína da música romani como experimentar outros territórios como o drum'n'bass, o jazz, ska, klezmer, música turca ou o hip-hop, todos presentes em «Kal» em doses pequenas e equilibradas, especiarias de exotismo e/ou modernidade que nunca estragam, antes sublinham, o carácter autêntico e antigo desta música. Este primeiro álbum do grupo com difusão internacional foi produzido por Mike Nielsen (Underworld, Jamiroquai, Natacha Atlas...), que soube - na mesma linha - balancear os dois lados do som Kal - a tradição e o futuro. Em «Kal» há violinos em voo picado, um acordeão que navega, por vezes, em diracção à Argentina, uma voz que tanto cavalga a tradição como se atira a estilizações de crooner ou de jazz, e vários temas fantásticos como «Boro Boro» (este com uma bonita voz feminina), o alegre e divertido instrumental «Mozzarella» ou o Piazzolla-meets-Havai-music-in-Belgrade «Gurbetski Tango». (9/10)


SHUKAR COLLECTIVE
«URBAN GYPSY»
Riverboat Records/World Music Network/Megamúsica

Menos interessante do que o álbum homónimo dos Kal, o álbum «Urban Gypsy» dos Shukar Collective perde-se demasiado na repetição da fórmula em que esta banda da Roménia embarcou há alguns anos: a interpretação de antigas canções ursari (dos ciganos que exibiam ursos amestrados nas feiras romenas, prática violenta entretanto caída em desuso mas ainda existente em alguns países, tal como o grupo refere no livreto), com uma base electrónica, jazzy e experimental. Andam por aqui ritmos house, mid-tempo e drum'n'bass, algum dub, algum industrial e temas mais ambentiais, à mistura com as canções dos ursari, cantos próximos do konnokol indiano, daraboukas e colheres percutidas. E, se o resultado disto tudo, durante as primeiras canções do álbum, impressiona pela vivacidade e até coerência interna, o agradável efeito de surpresa vai desaparecendo à medida que o álbum vai avançando para a sua conclusão e se vai notando alguma repetição de processos. Fazendo justiça aos Shukar Collective, a sua música nunca descamba para o lado azeiteiro, mas, paradoxalmente, às vezes quase que apetecia que descambasse, para nos divertirmos mais um bocadinho. (6/10)


GOGOL BORDELLO
«GYPSY PUNKS»
SideOneDummy

Diversão é coisa que não falta, bem pelo contrário, nos Gogol Bordello. Banda de ucranianos imigrados em Nova Iorque (não são balcânicos mas a música que fazem é lá que vai buscar a essência), liderada por uma espécie de Shane MacGowan tresloucado de nome Eugene Hutz, os Gogol Bordello são qualquer coisa como os Pogues em versão cigana, os Clash armados em surfistas prateados a deslizar a 300 à hora sobre o Muro de Berlim, Manu Chao a voar sobre a música de todo o antigo Bloco de Leste em vez de o fazer sobre os países da América Latina. Nos Gogol Bordello há skazadas, punkalhadas, surfbillyzadas, metaladas, espaço para o rap e para algumas frases em espanhol. Sexo, bebedeiras, revolução, a condição dos imigrantes. Palavras de ordem em inglês e ucraniano. Gritos oi em luta com violinos supersónicos, baladas assassinas sobre acordeões afogados em vodka, folias e tragédias variadas. E «Gypsy Punks» é um álbum quase sempre muito bom, apesar de se deixar ir abaixo um bocadinho nos últimos temas (à excepção do extraordinário «Underdog World Strike»). Ah, só um pormenor: a produção é de Steve Albini (pois, o produtor de álbuns dos Nirvana, Sonic Youth, etc, etc...). (7/10)

Natacha Atlas no Porto (& O Folktulha)



A cantora belga de origem anglo-egípcia Natacha Atlas (na foto) faz uma rara incursão pelos palcos portugueses com um concerto, dia 28 de Setembro, na Casa da Música, Porto. Com uma carreira feita, essencialmente, do lado da fusão das músicas orientais (árabe e anglo-indiana com os Transglobal Underground) com as novas tecnologias dançantes do ocidente, a cantora promete, no entanto, um concerto predominantemente acústico para a Invicta, onde apresenta o seu novo álbum a solo «Mish Maoul». Com um percurso riquíssimo na música, em Natacha Atlas sempre coabitaram, facilmente, o cha'abi egípcio ou o bhangra indiano com a electrónica, o rock, o hip-hop, o reggae e o dub (Natacha Atlas trabalhou, para além dos Transglobal Underground, com outro alegre fusionista, Jah Wobble). Uma ocasião única. Mais informações aqui.

E, agora, algo de completamente diferente: o Folktulha - Festival de Música Ibérica da Casa da Tulha, que decorre em Cepelos, Vale de Cambra, nos dias 22, 23 e 24 de Setembro. Com concertos dos Chuchurumel e Diabo a Sete (dia 22), Paddy B & Celtic Express e Ginga (dia 23) e um outro, ainda por definir, na tarde de dia 24. Mais informações neste site.

14 setembro, 2006

Brian Eno e David Byrne - O Arbusto e Os Fantasmas Vivos


Um dos discos mais revolucionários e inovadores de inícios dos anos 80, «My Life In The Bush of Ghosts», de Brian Eno e David Byrne, foi reeditado, remasterizado e aumentado recentemente (tendo também uma capa nova, diferente daquela que está aqui em baixo). Já era tempo. O álbum ficou como um marco de vários géneros musicais, como um dos momentos-charneira da utilização de samples na música popular e precursor de muitos cruzamentos que, depois, a chamada world music iria desenvolver. No site bushofghosts, dedicado à reedição do álbum, está a decorrer um curioso concurso de remisturas dos temas, aberto à participação de toda a gente. E, aqui, recupero um texto originalmente publicado no BLITZ, em Agosto de 2002, de memória do álbum.


BRIAN ENO & DAVID BYRNE
«MY LIFE IN THE BUSH OF GHOSTS»
LP Sire, 1981

Um deles, Brian Eno, foi o responsável pelo traçar de caminhos dos Roxy Music, antes de abandonar o grupo (logo ao segundo álbum), por incompatibilidades com Bryan Ferry, e para se lançar numa fabulosa carreira a solo onde traçou as coordenadas de muitos dos caminhos que as músicas electrónicas e/ou ambientais iriam tomar depois, para além de se abalançar na produção (David Bowie, Devo, Ultravox...) e colaborar com gente como John Cale, Nico, Camel ou Robert Fripp. O outro, David Byrne, fazia parte de um dos mais importantes grupos da new wave nova-iorquina, os Talking Heads. Os dois encontram-se quando Eno produz o álbum «More Songs About Buildings and Food», dos Talking Heads, em 1978. E Eno ainda produziria mais dois álbuns da banda - «Fear of Music» e «Remain in Light» - antes de os dois cérebros lançarem, no início de 1981, uma obra assinada Brian Eno & David Byrne, «My Life In The Bush of Ghosts», que viria a ser uma peça fundamental da música ocidental ao abrir caminho(s) para vários horizontes: o «corta e cola» do sampler (as vozes que se ouvem em «My Life...» são todas elas «pilhadas» em rádios, discos obscuros, gravações feitas aqui e ali...); uma maior abertura à música de origem não anglo-saxónica (gravações de cantoras e cantores de Marrocos, Líbano, Egipto, Japão...); o escavar pistas para as músicas electrónicas de características mais dançáveis (apesar de haver temas mais ambientais, ao jeito de Eno, há outros que são uma funkalhada pegada ou que têm como base ritmos tribais africanos, mais ao jeito de Byrne...). Mas tudo isto sem ar de tese nem de teoria pura e simples: há momentos que se podem considerar, digamos, divertidos (a voz demencial de um pregador evangélico americano e até a voz, realmente assustadora, de um exorcista!) e a base musical, tocada não samplada, é viva e pulsante (cortesia, para além de Eno e Byrne, de gente como Bill Laswell, Busta Cherry Jones, Robert Fripp ou Chris Frantz, baterista dos Talking Heads).

Depois de «My Life In The Bush of Ghosts», Eno seguiria a sua carreira a solo e embarcaria em colaborações e produções (U2 e o projecto paralelo Passengers, James, Laurie Anderson, Harold Budd, Johnny Cash, Peter Gabriel, Elvis Costello, Robert Fripp, Robert Wyatt...). E Byrne, depois de abandonados os Talking Heads, partiria ainda mais à descoberta das «músicas do mundo», usando-as na sua própria carreira ou como sementes de uma editora que deu a conhecer (ou permitiu o reconhecimento) gentes do Brasil, África ou Portugal, através da editora Luaka Bop. São grandes, enormes, músicos, com uma carreira brilhante (antes e) depois da edição de «My Life In The Bush of Ghosts». Mas nunca mais atingiriam o nível, o génio, a profecia, visão e presciência deste álbum que semeou milhares de arbustos e deu vida a milhões de fantasmas nas estradas dos sons.

Descendências (entre muitas outras):

Banda do Casaco - «Banda do Casaco com Ti Chitas»
Stewart Copeland - «The Rhythmatist»
Peter Gabriel - «Passion»
Negativland - «Helter Stupid»
Loop Guru - «The Third Chamber»
Deep Forest - «Deep Forest»
Moby - «Play»
The Avalanches - «Since I Left You»
1 Giant Leap - «1 Giant Leap»

13 setembro, 2006

A Crise no Médio Oriente... e Richard Zimler


Por uma estranha e arrepiante coincidência acabei de ler «À Procura de Sana», de Richard Zimler, na noite em que passavam cinco anos sobre os atentados às Twin Towers, em Nova Iorque. Talvez por isso, a resolução do livro (por muito surpreendente, inesperada e até verosímil que seja) foi a única coisa, a única, de que não gostei nele. Noutro dia qualquer, se calhar, teria gostado. Mas gostei muito do resto do livro. Todo.


Gostei de conhecer um bocadinho melhor Zimler - dele só li, além de «À Procura de Sana» (ed. Cavalo de Tróia/Gótica), «O Último Cabalista de Lisboa», que me ensinou muitas coisas da nossa História que desconhecia e de como, numa escala menor mas não menos horrível, os judeus de Portugal tiveram também o seu Holocausto -, gostei de conhecer aquelas personagens (são todas fictícias?), maduras, completas, todas apaixonantes: os judeus e os palestinianos, todos com uma história de vida em que os pedaços de que vamos tendo conhecimento - mesmo nas suas mentiras, contradições e enganos - se encaixam na perfeição e fazem todo o sentido.

Uma das coisas mais bonitas do livro é a constatação de que Zimler - judeu nova-iorquino há muitos anos radicado no Porto - não deixa escorregar um pingo de ódio que seja nesta sua visão do conflito israelo-pelestiniano. Mesmo que esse ódio escorra de algumas das suas personagens (o assustador capítulo dedicado a Jamal, jovem palestiniano com perturbações psiquiátricas, usado - e, depois, provavelmente assassinado - pelos seus e, do outro lado, torturado pelas autoridades israelitas; nas cartas de Helena ou nas manifestações, artísticas ou políticas, de Sana...). Pelo contrário, Zimler demonstra aqui um amor imenso por estes dois povos irmãos desavindos por um destino maior qualquer. E, no fundo, esta é mesmo a história de uma amizade (de um amor) nascido entre duas miúdas, uma palestiniana outra judia, em Haifa (quantas vezes ouvimos o nome desta cidade nos últimos meses?), do seu exílio e da sua conclusão, à luz de... um destino maior qualquer (o seu destino; o destino das suas famílias; o destino dos seus povos...).

Nota: ver post (neste blog) «A Crise No Médio Oriente... e os Asian Dub Foundation».