05 setembro, 2006

Sérgio Godinho - O Elixir


Uma das coisas que continuam a maravilhar-me em Sérgio Godinho é a sua capacidade, levemente camaleónica, de se rejuvenescer, rejuvenescer sempre a cada ano que passa. Rejuvenescer a sua música, o seu público, as suas canções, as suas bandas, rejuvenescer-se a si próprio. O belíssimo concerto que Godinho deu na Festa do «Avante!» fez-me recuperar uma entrevista de Abril de 2003 a propósito da edição do álbum de duetos «O Irmão do Meio». Um novo álbum de originais («Lupa» é de 2000) já seria muito bem-vindo...


SÉRGIO GODINHO
MANO A MANO

Encontro de gerações, álbum de homenagem sem o ser, criações que se libertam do seu criador, um mostruário de algumas canções «enjeitadas», releituras livres, extraordinário exemplo da eterna juventude (com ou sem elixir) dos temas de Sérgio Godinho, tudo isto é «O Irmão do Meio», o álbum de duetos, trios e equipas inteiras em que Godinho lança as suas palavras ao vento. Com o sopro de Teresa Salgueiro, Xutos & Pontapés, Jorge Palma, Caetano Veloso, Da Weasel, Gabriel O Pensador, David Fonseca, Carlos do Carmo, Gaiteiros de Lisboa, Clã, José Mário Branco, Rui Veloso, Vitorino, Zeca Baleiro, Milton Nascimento, Tito Paris, Camané... Mano a mano.

Qual é o significado de «O Irmão do Meio»? Tem alguma coisa a ver com o facto de poderes ser considerado uma ponte entre gerações?

Sim. É esse o simbolismo evidente d'«O Irmão do Meio». E tenho, de facto, um irmão mais novo e um irmão mais velho... mas é evidente que tem esse simbolismo de diálogo inter-geracional. E isto, apesar de não gostar muito do termo «gerações»: primeiro, sinto-me em várias gerações e não me sinto agarrado a uma particularemente; fui evoluindo ao longo dos tempos. Em termos estritamente etários, neste disco há alguns que são mais velhos que eu, outros mais ou menos da minha idade e muitos que são muito mais novos. Durante a gravação deste disco houve trocas de experiências, aprendizagens... E em termos da música que está representada, as canções que ali estão correspondem a várias épocas e não foram, necessariamente, cantadas ou tocadas por pessoas das gerações que lhes correspondem. Houve uma troca muito grande, «bigamias tanto passageiras como sustentáveis, e o irmão do meio revolvendo feliz no turbilhão da família em permanente resolução», como escrevo na capa do disco.

Porque é que, o ano passado (em 2002 passaram 30 anos sobre a publicação do primeiro álbum de Godinho, «Os Sobreviventes»), recusaste - tanto quanto se sabe - a ideia de um álbum de homenagem na linha dos «tributos» normais, com outras pessoas a tratarem do processo todo?

Não. O que aconteceu é que houve a ideia de comemorar a efeméride - e efemérides são coisas a que não ligo muito. Se esse álbum de homenagem aparecesse não iria dizer que não, mas teria que me distanciar do processo... Mas preferi olhar para as minhas canções e encará-las quase como canções novas. E achei mais aliciante fazer uma escolha de interlocutores, das pessoas com quem canto, e um «casting» em que fiz corresponder as canções com os cantores e músicos.

Nesse «casting» deste mais importância às canções ou às pessoas que iriam interpretá-las contigo?

Às duas coisas. Fiz uma pré-lista de canções e de cantores, cantoras, bandas, músicos. E também dei importância a um conjunto de canções que iriam entrar no disco e que não seriam, necessariamente, das mais conhecidas. Aliás, a escolha, em certos casos, não é nada óbvia, porque havia canções que nunca tinham tido o seu justo papel na «sociedade» das minhas canções... Algumas delas, eu próprio deixei-as antes para trás, como é o caso do «Antes o Poço da Morte».

Foi por isso que ficaram de fora canções emblemáticas como «A Noite Passada», «O Primeiro Dia», «Com Um Brilhozinho nos Olhos» ou «É Terça-Feira»?...

Essas canções não aparecem porque não quis. Até o «Lisboa Que Amanhece» não estava no meu primeiro alinhamento de canções, mas quando pensei em duas ou três hipóteses para o Caetano Veloso, o «Lisboa Que Amanhece» emergiu, amanheceu, como qualquer coisa que tinha uma linguagem compatível com o universo e a maneira de cantar do Caetano... Mas não quis que esses «greatest hits» aparecessem para dar uma oportunidade às outras canções.

Já conversámos sobre isto uma vez e sei que não gostas de compartimentar as tuas canções em «canções de amor», «canções de intervenção», etc. Mas há uma boa maioria de canções neste disco que têm uma fortíssima carga social e política: entre outras, desde o «Pode Alguém Ser Quem Não É» ao «O Galo É o Dono dos Ovos», do «Barnabé» à «Fotos do Fogo», do «Que Força É Essa» a, pelo menos, uma quadra do «Dancemos no Mundo»...

Sim, são muitas... E o «Dancemos no Mundo» não é só numa quadra: essa canção nasceu depois de ter visto uma reportagem fotográfica de casamentos mistos em zonas em que isso era proibido, palestinianos com israelitas, brancos com negros na África do Sul... E a canção gira toda à volta disso. O nome de trabalho dessa canção era «Fronteiras». Parece uma canção muito andante mas, ao mesmo tempo, está a dizer coisas importantes. É um bom exemplo de uma canção que tem uma vertente política mas é também uma canção de amor. E é por isso que não gosto de fazer essas separações. As canções falam de tudo. O «Pode Alguém Ser Quem Não É» é uma canção que fala de amor mas também de emigração. Os géneros interpenetram-se.

Neste álbum, parece ter havido uma tentativa óbvia de adequação das canções ao universo dos convidados... Isto é, a «Antes o Poço da Morte» com os Xutos é obviamente rock, a «Isto Anda Tudo Ligado» com os Da Weasel e o Gabriel O Pensador é obviamente rap, a «Fotos do Fogo» com o Carlos do Carmo e o Camané é obviamente fado...

No caso da «Fotos do Fogo», tinha composto a canção já com um subtexto musical de fado, apesar de depois não ter sido tratada originalmente dessa maneira. Quis que essa origem fosse apenas subentendida. Posteriormente, num espectáculo com o Ricardo Rocha (NR: guitarra portuguesa), assumi o fado nessa canção e neste novo disco achei que era interessante também ir por aí, com o Carlos do Carmo e o Camané e eu como irmão do meio. Noutras canções, quis mandá-las para outros territórios, sempre sem violentar ninguém e estando eu confortável com a linguagem dos outros. No caso dos Xutos, a canção era, à partida, muito Xutos, com a ironia de que, quando apareceu, no «Canto da Boca», inícios dos anos 80, os Xutos estavam a começar. O universo um bocado duro do «Poço da Morte» tem a ver com os Xutos. Há o caso do Zeca Baleiro, em que sempre achei que o «Coro das Velhas» tinha algo de música nordestina brasileira, que tem muito a ver com o trabalho do Zeca Baleiro. E o «Isto Anda Tudo Ligado» - que é uma canção de que sempre gostei muito mas pensei que estava perdida para sempre -, de repente pensei que poderia ser cantada numa linguagem hip-hop comigo a fazer as partes melódicas...

Mas eu via mais os Da Weasel e o Gabriel O Pensador a reinterpretarem outras canções tuas, à partida mais «rapáveis» como, por exemplo, «Os Conquistadores»...

Ou «O Fugitivo», sim...

E via os Xutos a pegarem no «Maré Alta»...

É engraçado, porque houve de facto duas canções em que pensei para os Xutos. Esta que foi escolhida e o «Maré Alta». Só não usámos o «Maré Alta» porque era muito óbvio e o «Poço da Morte» tinha, no original, um tratamento jazzístico apesar do substrato rock: era um desafio maior, e mais enriquecedor, pegar nela. No caso dos Da Weasel, também era mais surpreendente fazer o «Isto Anda Tudo Ligado» do que as outras. E é curioso, porque eles pegam num sampler da versão original, com uma sanfona do Carlos Guerreiro (NR: agora nos Gaiteiros de Lisboa) e a transformam na linguagem deles. E o disco foi muito feito destes desafios... Depois, também há casos em que os convidados entram no universo do meu grupo, porque tiveram que se adaptar aos arranjos do Nuno Rafael... E este disco também acaba muito com aquela ideia que se tinha há anos atrás: «só Sérgio Godinho pode cantar Sérgio Godinho»...

Mas isso era dito com respeito, do género «só Bob Dylan pode cantar Bob Dylan» ou «só Leonard Cohen pode cantar Leonard Cohen»...

Sim, sei que era dito com respeito. Mas era limitador. E só timidamente começou a haver versões das minhas canções. No «Afinidades», com os Clã, a Manuela Azevedo provou de uma vez por todas que outras pessoas podem cantar canções minhas, pessoalizando-as mas não deixando de ser minhas. E este novo disco acabou de vez com esse mito.

A escolha dos produtores de cada tema também foi tua?

Sim, foi inteiramente minha. Há cinco canções que são produzidas pelo Nuno Rafael e pelo meu grupo - que agora, oficialmente, se chama Os Assessores (risos), porque tenho aquela canção em que falo do presidente e dos assessores - e noutros casos dei a produção a quem me pareceu mais indicado para cada tema, sejam os grupos - que têm o seu som próprio, como os Xutos, os Da Weasel, os Gaiteiros ou os Clã - sejam os artistas. No caso do José Mário Branco, foi ele que convidou o coro Canto Nono e resolveu fazer uma versão vocal. Ele nunca tinha produzido uma canção para mim, apesar de ter colaborado bastante n'«Os Sobreviventes». No caso do «Mudemos de Assunto» dei os arranjos ao Jorge Palma mas ele disse que gostava de os fazer com o Palma's Gang... E também houve casos diferentes: no tema com o Vitorino convidámos o Tomás Pimentel, que fez um arranjo brilhante, pontilhista, para o «Barnabé», e no «Fotos do Fogo», convidei o Ricardo Rocha, por quem tenho uma grande admiração. Tudo com uma grande confiança nas pessoas. E há o caso da canção com o David Fonseca, a partir de um arranjo que o Rui Costa já tinha feito para a «Balada da Rita» no concerto dos Silence 4 no Pavilhão Atlântico, em que eu colaborei, e que ele agora melhorou.

As únicas senhoras que entram -- tirando os coros -- abrem e fecham o disco. A Teresa Salgueiro a abrir e a Manuela Azevedo e os Clã a fechar...

Objectivamente, há aqui um défice de senhoras. Houve um caso que não aconteceu e que desequilibrou um bocadinho... E já que havia um desequilíbrio achei que podeia pôr as cantoras a abrir e a fechar o disco. Para além disso, o disco começa bem com o «Pode Alguém Ser Quem Não É?», uma interrogação. E o disco não começa logo com as charangas todas, começa com duas canções mid-tempo, essa e a do Caetano. Por outro lado, estava muito fresco, quando comecei este disco, o «Afinidades» com os Clã. E se os Clã entrassem as pessoas poderiam achar que era mais do mesmo. Mas também seria extremamente injusto se eles não colaborassem neste disco. E pensei no «Dancemos no Mundo», que não aparece no disco com eles mas já tinha aparecido como encore num espectáculo, com um arranjo fantástico - alternativo ao que aparecia no «Lupa» - do Hélder Gonçalves e que não poderia perder-se. Com o «Afinidades» eles iniciaram este ciclo e era justo encerrá-lo com eles. E acaba o disco de uma maneira festiva.

Como é que escolheste os convidados brasileiros e o cabo-verdiano?

Teve a ver com vários factores. O Milton já tinha trabalhado comigo - na «Barca dos Amantes» e noutra canção menos conhecida, «Ouro Preto» - e sempre fiquei com essa amizade activa com o Milton. Tinha mesmo que entrar neste disco e o «Enfim S.O.S.» tem texturas muito densas que jogam bem com a voz dele. O Caetano esteve para colaborar comigo no «Coincidências», isso não aconteceu, e tinha que entrar agora pela amizade - embora a amizade não esteja em causa, porque há amigos meus que não entraram no disco - e pela admiração que tenho por ele. A participação dele esteve tremida, porque andava por fora, em digressões, mas acabou por gravar a parte dele do «Lisboa Que Amanhece» - que tem algo de bossa, de lounge - em Salvador, no estúdio do Carlinhos Brown, quando teve um bocadinho de tempo livre para o fazer. O Zeca Baleiro é virtualmente desconhecido em Portugal e é, da nova geração de cantores brasileiros, um dos mais talentosos, com uma maneira peculiar de cantar. E já tinha colaborado com ele, há alguns anos, na Festa do «Avante!». Ele trouxe alguns músicos... e fico muito contente por ele ter contribuído para o disco. Com o Gabriel aconteceu uma coisa bonita: pediram-me para escrever algumas palavras para o livro dele que foi editado pela D. Quixote e, depois disso, ele mandou-me mails em que se notava que conhecia bem o meu trabalho e mantivemos contacto. Tivemos uma amizade repentina mas bonita. E o Tito Paris também era inevitável ele entrar: já tinha tocado no «Domingo no Mundo», trabalhamos na mesma «unit», a Praça das Flores, e neste caso quis ir para uma canção óbvia, uma canção que falasse da terra dele, Cabo Verde, escrita por um português. E aquela canção tem a ver com uma coisa que me aconteceu no Festival da Baía das Gatas, em Cabo Verde: estava na minha quarta canção e começou a chover. Ninguém ficou chateado, pelo contrário.

Estive a fazer as contas e neste disco não há temas dos álbuns «À Queima-Roupa», «De Pequenino É Que Se Torce o Destino», «Coincidências» e «Domingo no Mundo». Porquê?

Não houve nenhum motivo especial para isso acontecer. Escolhi as canções e não me preocupei com os discos a que pertenciam. Não houve discos enjeitados e essa escolha não significa que goste mais de uns discos do que doutros. Também não houve uma preocupação de abranger a discografia toda. Há bocado não referi isto, mas houve outro critério de escolha das canções: não quis massacrar as pessoas com canções que tenham sido muito interpretadas recentemente, nomeadamente no disco com os Clã. Não iria pôr o «Elixir da Eterna Juventude», que estava gravada com os Clã e num disco ao vivo passado... Também gosto muito do «Etelvina», mas também já tenho várias versões gravadas, nomedamente uma, acústica, que está no disco que não chegou a sair do «Porto Cantado».

«Fotos do Fogo» é um tema terrível de se ouvir em tempos de guerra, apesar da guerra de agora não ser a nossa guerra colonial...

É. Há guerras muito presentes, que estão acontecer. E o pior, talvez, é que vão acontecer outras à conta desta do guerra no Iraque. Incluí o «Fotos do Fogo» porque é um libelo, uma canção de que sempre gostei porque resume aquilo que está soterrado na nossa cabeça: um soldado que folheia um álbum de fotos e os traumas vêm ao cimo. É um tema importante para se reflectir sobre ele.

Não tiveste a tentação de incluir algum inédito?

Não. Vou começar a trabalhar num próximo álbum, de inéditos, mas neste momento não tinha nenhuma razão para pôr um inédito porque o propósito não era esse.

Para quando poderemos esperar esse álbum de originais?

Para o ano. Este ano ainda vai sair, espero, uma biografia musical, com uma componente de foto-biografia e que pode ter um «song-book» acoplado. Mas quando esse processo estiver terminado quero atirar-me a compor e para o ano ter um disco de originais.

Vai haver algum concerto com esta gente toda ou isso é impossível?

Não, não vai. Era bom, era um sonho, e toda a gente falou nisso. Mas é muito difícil juntar esta gente toda e também seria muito difícil em termos técnicos. Com grande pena minha. O que pode acontecer é num concerto ou noutro, com características específicas, eu ter alguns destes convidados.

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