22 setembro, 2006
Gospel - Música Sagrada, Música Viva
No imenso poço sem fundo que é a chamada world music também entram as músicas sagradas, de celebrações religiosas, funerais, procissões, ritos de iniciação... Os textos que se seguem - dedicados aos fabulosos Blind Boys of Alabama e à música gospel - foram publicados originalmente no BLITZ em Setembro de 2004, a propósito de um álbum de... Ben Harper.
BLIND BOYS OF ALABAMA
A LUZ INTERIOR
Os Blind Boys of Alabama - companheiros de Ben Harper no novo álbum «There Will Be a Light» - existem já desde 1939. São, portanto, senhores de uma carreira com quase sete décadas, iniciada quando eles ainda eram adolescentes e estudantes no Alabama Institute for the Negro Blind (uma escola para cegos), no Alabama, Estados Unidos. Eram cinco e quase todos cegos de nascença - daí o nome adoptado originalmente, The Five Blind Boys of Alabama, depois de começarem por ser conhecidos como Happy Land Jubilee Singers - e não escondiam a influência do na altura importantíssimo Golden Gate Quartet, um dos maiores grupos gospel de meados do século XX.
A primeira gravação dos Blind Boys ocorre em 1948 e o grupo tem alguns sucessos na década seguinte - um deles com o significativo título «I Can See Everybody's Mother But I Can't See Mine» (numa alusão à visão interior de Maria, mãe de Jesus Cristo e «de toda a gente», mas à impossibilidade de verem a sua mãe terrena). E é em 1950 que retiram a palavra Five do seu nome, devido à morte de um dos membros do grupo. Gravando regularmente ao longo das últimas décadas, os Blind Boys of Alabama tiveram alguns pontos altos da sua carreira no musical da Broadway «The Gospel At Colonus» (peça de Bob Telson e Lee Breuer, levada à cena em 1983) e em colaborações várias, nomeadamente com Peter Gabriel (para cuja editora, a Real World, gravaram alguns álbuns nos últimos anos). No grupo ainda se mantêm os fundadores Clarence Fountain (geralmente visto como o líder), Jimmy Carter e George Scott, acompanhados por membros mais recentes: Joey Williams, Ricky McKinnie, Bobby Butler e Tracy Pierce.
VOZES QUE FALAM COM DEUS (E UMAS COM AS OUTRAS)
A música é uma forma de comunicação. Do músico/cantor consigo mesmo, do músico/cantor com outros músicos e com outras pessoas (o público, a audiência), do músico/cantor com Deus (ou com os deuses). Se calhar, as primitivas - e primeiras - manifestações musicais da humanidade prendiam-se com a necessidade de comunicar com os outros seres humanos e também com os primeiros deuses que os homens (re)conheceram: a natureza circundante. Flautas que imitavam o canto dos pássaros, tambores que mimavam o som dos trovões, cordofones cujo som parecia água a correr, trompas que competiam em potência com o bramir dos elefantes (e cujo som também podia, eventualmente, derrubar muros e ameias)...
A Idade Média na Europa assistiu à emergência do canto gregoriano - coros masculinos que, a uma só voz (una, monofónica e codificada para não permitir desvios ou heresias), elevavam os seus cantos ao Deus católico, aumentados pelos «amplificadores Marshall» naturais que eram as catedrais góticas. Do cimo dos minaretes das mesquitas muçulmanas, o muezim canta versos do «Corão» para chamar os fiéis à oração. No Tibete, os monges budistas podem elevar as suas vozes e as suas enormes trompas metálicas (tão parecidas com as trompas dos Alpes!... a milhares de quilómetros de distância, mas a altitudes quase tão «perto» do Céu quanto as tibetanas e com necessidades de comunicação mais terrenas semelhantes) para abençoar as parcas colheitas nas encostas dos Himalaias... Etc, etc, etc...
Nos Estados Unidos, no século XIX e inícios do século XX, toma forma um novo género de música religiosa: o gospel (que significa, literalmente, «Evangelho», que por sua vez significa «Boa Nova»). E o gospel desenvolve-se no seio de igrejas protestantes (baptistas/evangélicas/pentecostais) do sul dos Estados Unidos, espaços de liberdade onde os ex-escravos negros do sul dos Estados Unidos podiam cantar, a solo ou em coro, os seus hinos a Deus - preces, agradecimentos, louvores... - e onde incluíam elementos africanos: uma maior liberdade no fraseado dos cânticos (improvisos), a inclusão de elementos percussivos (palmas, o bater dos pés), a dança... -, notas impensáveis, na altura, na música religiosa europeia ou dos Estados Unidos brancos. E notas vindas dos cânticos religiosos dos escravos (os espirituais negros) já antes «ensaiados» nos campos de algodão - o mesmo «alfobre» em que nasceriam os blues - onde trabalhavam. Outra coisa: no gospel cantam os pastores da igreja e/ou os fiéis - muitas vezes num movimento de parada e resposta, de diálogo uns com os outros -; a solo ou em coro (e aqui pode incluir-se o quarteto ou quinteto ou coros formados por dezenas de pessoas); homens e mulheres; negros e, anos depois, também muitos brancos; pode ser cantado a capella ou com a ajuda de instrumentos. É, portanto, uma música aberta a toda a gente e sem hierarquias internas, desde que a Fé seja comum.
Apesar de haver outras formas de gospel - como o country gospel (canções country de temática religiosa) - é o gospel tradicional, de raiz negra, que nos interessa aqui. Um género que começou logo a ter alguma visibilidade com digressões dos Fisk Jubilee Singers no final do século XIX e com a fama de C. Tindley (que começa a dar concertos a solo no início do século XX) e de T.A.Dorsey, que codificou o gospel e lançou vários coros profissionais nos anos 20 e 30 do século passado. Entre os nomes maiores do género podem incluir-se Mahalia Jackson (cantora promovida por T.A.Dorsey e que viria a ser o nome maior do género), os Pilgrim Jubilee Singers, os Sensational Nightingales, a cantora Dorothy Love Coates, os Mighty Clouds of Joy, os Sweet Honey in the Rock (apesar de também incluirem outros géneros nos seus alinhamentos) e os referidos mais acima Blind Boys of Alabama. Nas últimas décadas, o gospel tradicional continua a ser cantado por milhares de cultores mas também evoluiu para outras formas, com a inclusão de variadíssimos géneros musicais - rock, soul, etc. - dando origem à CCM (música cristã contemporânea), «género» (que afinal são muitos géneros, apenas com as letras de índole religiosa a uni-las) onde se podem incluir artistas como o grande Sam Cooke (famoso cantor soul - e gospel - e pastor protestante), a cantora Amy Grant, o rapper dc Talk e bandas como os metálicos Stryper ou os punks MXPX.
Nada de estranhar se pensarmos que Ray Charles ergueu a sua carreira sobre uma então impensável junção de gospel e rock'n'roll (a música de Deus feita sobre, segundo alguns, os ritmos do Diabo) que viria a dar origem à soul e ao funk, Elvis Presley gravou inúmeros hinos religiosos e até Bob Dylan, em finais dos anos 70, gravou um álbum cristão, «Slow Train Coming». E que foi no gospel que se basearam maioritariamente, embora com letras de temática mais politizada e interveniente, as «black american freedom songs» do Movimento dos Direitos Civis (cujo símbolo maior foi o pastor protestante Martin Luther King). Por cá, em Portugal, o gospel tem alguma visibilidade através de grupos como os Shout (que acompanharam Sara Tavares) e ganharam uma nova «aura» com a inclusão de um coro gospel no álbum «Eclesiastes 1.11», dos Wray Gunn.
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