31 agosto, 2006

Folk em Portugal - Mergulho em 2004


Aqui se recupera uma crítica conjunta a alguns discos de trad/folk portugueses editados em 2004: Frei Fado d'El Rei, José Barros e Navegante, Boémia, Tocándar, Belaurora e Segue-me à Capela (na foto e também com entrevista mais em baixo, neste post).


TRADICIONAL EXTRA

Enquanto se aguardam ansiosamente os álbuns de estreia d'Uxu Kalhus e Mandrágora e os novos discos de Danças Ocultas, Dazkarieh, Terrakota e Realejo, aqui vai o levantamento de existências mais recentes na música portuguesa de inspiração tradicional.

E começamos por aquele que está, de facto, mais próximo das raízes: o álbum homónimo - e primeiro - das Segue-me à Capela, um disco lindíssimo onde se recuperam - só com o recurso a um coro de sete vozes femininas, algumas percussões e alguns apontamentos «laterais» (lenga-lengas, diálogos...) - temas tradicionais de várias zonas do país recolhidos por Michel Giacometti, José Alberto Sardinha ou o GEFAC e algum do reportório de José Afonso. Destaque absoluto para as versões de temas da Beira Baixa («Macelada/S.João», «Senhora do Almortão»...) e para aqueles em que a voz solo de Cristina Martins brilha a grande altura («Tu Gitana», de José Afonso, ou a arrepiante «Por Riba se Ceifa o Pão»). (8/10)

Gravado ao vivo no Mosteiro de Leça do Bailio, no ano passado, o novo álbum dos Frei Fado d'El Rei, «Em Concerto», transporta-nos para um ambiente mágico onde se cruzam sintetizadores, guitarras acústicas, harpa, percussões com instrumentos feitos de barro e peles e madeiras, e belas vozes femininas (Carla Lopes e, a espaços, a guitarrista Cristina Bacelar), o passado (canções medievais galaico-portuguesas, romances...), o presente (Madredeus, o flamenco, o fado...) e o futuro (pense-se numa música tradicional imaginária do século XXIII português). (7/10)

Também gravado ao vivo, mas sem a capacidade encantatória do álbum dos Frei Fado d'El Rei, é o novo álbum (duplo) de José Barros e Navegante, «...Vivos. E ao Vivo». Com alguns convidados ilustres - Rui Vaz e José Manuel David (dos Gaiteiros de Lisboa), José Martins, Pedro Jóia, a cantora galega Uxia - e até uma boa escolha de reportório, o álbum sofre, no entanto, dos mesmos males que outros discos dos Navegante: a voz de José Barros é pouco flexível e os arranjos são, muitas vezes, bastante devedores de Fausto e dos Trovante-dos-momentos-apenas-assim-assim. Mesmo assim(-assim), bons momentos no aflamencado «S.João», no hipnótico «Senhora dos Remédios» ou no cante alentejano de «Laranjinha». (5/10)

E por falar em Fausto e em Trovante, «Semente», o álbum de estreia dos Boémia, é completamente devedor destes dois nomes. A voz de Rogério Oliveira (também autor de muitas das, boas, letras) oscila entre os timbres de Fausto e de Luís Represas (às vezes conseguindo o milagre de fazer lembrar os dois ao mesmo tempo) e as influências são tão assumidas - com humildade - que tanto Fausto quanto Represas são convidados no disco, juntamente com o cantautor espanhol Luís Pastor. E, apesar da colagem aos modelos, há alguns momentos bastante interessantes no álbum como o primeiro tema, «O Avançado e o Guarda-Redes», com um belo arranjo de cordas, a suavezinha «Já Desce a Noite», «Por Los Pasos de Mis Días» (de e com Pastor), o início mirandês de «Presságio de Um Conquistador» ou a versão de «Que Amor Não Me Engana», de José Afonso. Um álbum honesto. (6/10)

Na esteira dos pioneiros O Ó Que Som Tem? e dos seus inúmeros «filhos» dos Tocá Rufar, os Tocándar editaram recentemenente o seu álbum de estreia, homónimo, onde as percussões são rainhas - afinal, são dezenas de percussionistas em acção simultânea - mas onde também há lugar para as gaitas-de-foles (cortesia de gaiteiros das Astúrias e da Banda de Gaitas Xarabal, da Galiza, e dos lisboetas Gaitafolia) e de alguns elementos exteriores como Paulo Abelho (Sétima Legião) e João Eleutério, que são responsáveis pelo som do disco e também transformam o último tema, «Às Onze no Farol», numa interessante mistura onde se cruzam os bombos e as caixas com a electrónica. Os ritmos são bastante variados - desde chulas a rufares processionais - e a inclusão das gaitas em vários temas e de flauta e sintetizador no belíssimo «Deus dos Trovões», fazem com que o disco seja uma constante surpresa. (7/10)

Finalmente, chega-nos, do meio do Atlântico, o álbum «Achados do Tempo», dos Belaurora, um disco simples e sem grandes pretensões que dá a conhecer muitos temas tradicionais de várias ilhas dos Açores. Com uma formação - e uma sonoridade - semelhante à dos ranchos folclóricos açorianos, os Belaurora mostram aqui sapateias, o lundum (género que, segundo alguns teóricos, poderá estar na origem do fado e nesta versão está muito próximo do fado de Coimbra), o divertido «Matias Leal» ou uma homenagem a Jaime «Chumeca». (5/10)


SEGUE-ME À CAPELA
ENTREVISTA

O álbum de estreia, homónimo, das Segue-me à Capela é uma das maiores revelações dos últimos anos da música de raiz tradicional portuguesa. Vozes e rituais no tempo explicados por Cristina Martins, fundadora do grupo.

As Segue-me à Capela nasceram no dia 1 de Abril de 1999, na sequência de «um convite para cantar no Bar Botirão, em Aveiro, durante o fim-de-semana da Páscoa de 1999. Propus ao dono desse estabelecimento realizar um espectáculo de música tradicional portuguesa cantado a capella e convidei 5 cantoras com as quais tinha uma forte ligação», algumas delas antigas companheiras de Cristina no GEFAC, de Coimbra, outras ainda ligadas a este grupo.

Eram seis, passaram a ser sete, «porque sentimos a necessidade de ter mais uma cantora para interpretar temas a quatro vozes, distribuindo-se assim melhor os naipes. E o sete é um número mágico». São elas, agora - e para além de Cristina Martins - Mila Bom, Margarida Pinheiro, Graça Rigueiro, Catarina Moura, Maria João Pinheiro e Cristina Rosa. Sete cantoras, muitas delas também percussionistas, porque «muitos cantares tradicionais interpretados por mulheres são acompanhados por adufes» e, ao vivo como em disco, ainda um percussionista acompanhante, de modo a «enriquecer os cantares com o apoio da percussão, o que nos permitiu também fazer arranjos mais diversificados dos temas. Gostamos de ritmos e da criação de ambientes que a introdução dos instrumentos de percussão permite». Com as Segue-me à Capela já trabalharam, ou trabalham ainda, os percussionistas Quiné, André de Sousa Machado, Fernando Molina, João Luís Lobo e Jorge Queijo.

O reportório do grupo bebe nas fontes tradicionais reveladas por Michel Giacometti, José Alberto Sardinha e/ou temas por elas já interpretados no GEFAC. E, diz Cristina, ao vivo «cantamos muitos temas para além dos que gravámos no disco. Felizmente, Portugal tem um espólio riquíssimo e estamos sempre a descobrir cantares não muito divulgados».

Pontos altos na carreira do grupo foram a actuação no XI Festival Intercéltico do Porto, o Festival de Segóvia, Espanha, «tendo sido essa participação determinante para muitos outros concertos que se seguiram em Festivais no país vizinho» e o XII Cantigas do Maio, «onde recebemos o convite de Carlos Nuñez para cantar durante o seu espectáculo».

Curiosamente, é em Espanha que surge pela primeira vez a possibilidade de gravar um álbum: «Em Espanha, quando terminávamos os concertos, o público procurava adquirir um disco nosso que não existia e recebemos um convite para gravar em Espanha. Mas a editora procurou uma distribuidora em Portugal e as negociações estavam a demorar muito. Ao fim de um ano de impasse decidimo-nos pela gravação do disco como edição de autor». E o disco aí está, gravado e distribuído pelo grupo, mas «com críticas óptimas... e estamos muito satisfeitas com a reacção do público em geral. Temos o disco à venda em todas as lojas FNAC e em algumas lojas de discos que apostam na comercialização da música tradicional portuguesa» como «a Associação José Afonso, o Mundo da Canção, etc».

Recentemente, na noite de 24 de Abril, as Segue-me à Capela participaram num concerto especial no Terreiro do Paço que as reuniu com as Cramol, as Tucanas e os Gaiteiros de Lisboa. Diz Cristina, a propósito: «Adorámos a experiência de cantar num espectáculo em conjunto com todos esses grupos, que admiramos, e gostávamos de repetir a experiência».

30 agosto, 2006

Tjak - Portugueses na Circum-Navegação


Uma aventura rara na música portuguesa foi encetada há alguns anos por três músicos, Gabriel Gomes, Victor Bandeira e Pedro Sotiry, reunidos no colectivo Tjak: fazer música electrónica envolvida em samples de músicas étnicas recolhidas em vários locais do globo. O resultado foi um álbum, «Viajando», e alguns concertos. Aqui fica uma entrevista e a crítica ao álbum, textos publicados originalmente no BLITZ em Novembro de 2003. É uma pena não se saber o que andam a fazer agora...


TJAK!

E, de repente, há um novo projecto nacional que cruza - com saber e respeito - as novas linguagens electrónicas com músicas e sons e ambientes vindos de África, de Bali (na Indonésia), do Tibete, da Amazónia. Na viagem embarcam Gabriel Gomes, Victor Bandeira e Pedro Sotiry. E o destino - por enquanto - é o álbum «Viajando».

Há um país imaginário, chamado Tjakistan, que é habitado por três músicos portugueses (ou então por milhões de pessoas em todo o planeta). E as fronteiras - linhas que «separam, mas também unem» - desse país começaram a ser desenhadas em 1960, quando Victor Bandeira começou a «recolher objectos de artes primitivas. Esses objectos estão todos no Museu Nacional de Etnologia. E também fiz gravações audio, filmes e fotografias para documentar as cerimónias a que esses objectos estavam associados. Esse trabalho esteve esquecido no Museu durante muitos anos, até que agora estes dois amigos [Gabriel Gomes e Pedro Sotiry] propuseram que me juntasse a eles para, a partir destes samples, fazermos música».

E a motivação primeira para a música dos Tjak «é a viagem motivada por esses sons. É essa a base de trabalho», diz Gabriel Gomes. «Algumas coisas estavam muito sujas, com muitos ruídos, e limpei-as». E Pedro Sotiry conclui: «Depois, era um jogo: o sample influenciava umas coisas e, depois, a evolução da música necessitava de outros samples de que íamos à procura. O que é curioso é que há carcterísticas comuns consoante as regiões: quase todos os samples vindos de África estão entre fá sustenido e si; os da Amazónia estão entre sol e dó. Há um ambiente harmónico comum a regiões definidas».

O território em que os Tjak se inscrevem - digamos, fusão de electrónica com world music (com as aspas todas nestas palavras todas) - não é virgem, mas também ainda não é muito explorado. «As únicas referências que nós tínhamos eram os Transglobal Underground, os Banco de Gaia... Pouco mais. As nossas grandes influências foram as nossas vivências musicais anteriores», dizem, acrescentando que «tudo isto foi um processo muito intuitivo. Há um álbum do Miles Davis, dos anos 70, o "On The Corner", em que usa sitar, tambura, tablas, mas reinventando a maneira de tocar desses instrumentos». E complementam um pouco mais da história do grupo: «Há dois anos atrás começámos a ensaiar por cima dos samples, a improvisar... Só depois arranjámos e estruturámos os temas. As nossas músicas não tinham 12 minutos; tinham 25, 30 minutos. Chegámos a fazer um espectáculo com temas muito longos. Os temas do disco são um concentrado daquilo que existia».

E que música é esta?... A resposta vem rápida e honesta: «Começámos como um projecto chill-out, mas apercebemo-nos ao longo dos espeectáculos que já não éramos chill-out, que aquilo que fazíamos provocava emoções. Pelo menos, as pessoas que estavam deitadas sentavam-se e olhavam para nós (risos)... E outras dançavam, o que não era o nosso objectivo inicial». Ao vivo, a música dos Tjak surge mais orgânica, mais viva, mais verdadeira. «Já tivemos o Pedro Wallenstein a tocar contrabaixo, um percussionista chileno, uma cantora [Carla Galvão]... Mesmo no disco, o acordeão do Gabriel [que se tornou conhecido como acordeonista dos Sétima Legião e, depois, dos Madredeus] está lá, embora embrenhado no resto da música. E tivemos o José Galissa, na kora, como um "sample vivo", e a Carla Galvão a cantar».

A questão que fica para o futuro é se os Tjak permenecerão sempre assim. Eles também não sabem. Mas têm algumas certezas: «Quando se acabarem os samples - e há ainda milhares de samples diferentes recolhidos pelo Victor -, ficará pelo menos um "país" que nós estamos a criar, o Tjakistan. Ainda não sabemos para onde vamos, mas vamos continuar a funcionar intuitivamente e sempre com a componente ao vivo como muito importante». Por outro lado, diz Gabriel, «convenci os Tjak a fazer um single, um tema de quatro minutos, ainda mais concentrado (risos). E vai haver remisturas de dança, feitas por mim. Vai ficar uma coisa mais pobre, mais minimal, mas não quero cair no foleirismo...».


TJAK
«VIAJANDO»
Tjakistan/Última

Electrónica com gravações de world music? Talvez, nem sempre, tem dias. Tem os (sempre) maus dias dos Deep Forest, mas os (quase sempre) bons dos 1 Giant Leap. Tem as remisturas feitas com estilo de temas de Nusrat Fateh Ali Khan pelos Massive Attack ou, mais recentemente, de brass-bands ciganas em «Electric Gipsyland», mas também há desastres como quando se mexe sem saber nem bom-gosto em temas dos Madredeus ou Cesária Évora. E há, em Portugal, experiências bem conseguidas como o projecto Megafone (de João Aguardela) ou os Sétima Legião do álbum «Sexto Sentido», estes dois trabalhando sobre recolhas de música tradicional portuguesa.

Agora, os Tjak - Gabriel Gomes (precisamente dos Sétima Legião - e ex-Madredeus, e d'Os Poetas e do Projecto OM..., aqui sem acordeão mas em sintetizadores e programações), Victor Bandeira (etnólogo e o «fornecedor» dos samples de músicas étnicas presentes no álbum) e Pedro Sotiry (ligado ao jazz e ao teatro, aqui em teclados e programações) - lançam «Viajando», um álbum em que a electrónica é entendida como uma base inventiva, pulsante, sempre activa, para músicas vindas da Ásia, África, América do Sul...

A música dos Tjak pode ser ouvida como chill-out - nada contra! - mas é mais, muito mais, um roteiro de viagens alternativas, onde uma trompete jazz pode coabitar com sons de pássaros e vozes vindas dos confins da China, e onde o ritmo é entendido como apenas mais um elemento dinâmico de toda a música. Os temas são muito longos, para dar espaço a todas as surpresas, as menores das quais não serão o extraordinário trabalho na kora do mestre guineense José Galissa ou a hipnose dada por um tema onde uma procissão de monges do Tibete encontra Sun Ra, uma banda funk em ácidos e o krautrock dos Can. (7/10)

28 agosto, 2006

Zouk, Kizomba & Som da Kabilia - Géneros Menores?


Assim como há músicas híbridas, na chamada world music, que são bem aceites neste circuito - desde o neo-flamenco de uns Ojos de Brujo aos punks de Tuva Yat-Kha, dos cruzamentos das novas electrónicas com a tradição de DJ Dolores ou Mercan Dede a mil outras experiências de fusão -, há outros géneros que não são considerados nobres o suficiente para integrarem os circuitos habituais de difusão das chamadas músicas do mundo como o kuduro, o baile funk, o reggaeton, o kwaito sul-africano, o zouk das Caraíbas, a kizomba angolana e cabo-verdiana ou a música popular da Kabilia, na Argélia. Três colectâneas editadas há pouco tempo reunindo temas dos três últimos géneros referidos são uma boa porta de entrada nestes estilos musicais. A adesão, ou não, a cada um deles (ou a todos) só depende de quem os ouvir... ou de quem os dançar.

VÁRIOS
«ZOUK ME LOVE»
Ngola Música/Maxi Music

O zouk é um estilo nascido nas Caraíbas (principalmente nas ilhas de Martinica e Guadalupe) que mistura ritmos locais com a pop anglo-saxónica e francesa, a soul, o reggae, a música africana e, mais recentemente, o hip-hop e o novo r'n'b norte-americano. Tendo como figuras de ponta nos anos 80 e seguintes os incontornáveis Kassav, rapidamente o género se dividiu em vários sub-géneros como o zouk lambada e o zouklove. E é bastante popular nos países de origem e também em Angola e Cabo Verde - países onde o zouk contribuiu para o aparecimento da kizomba - e junto de comunidades imigrantes caribenhas e africanas em Lisboa, Paris, Amesterdão ou Londres. «Zouk Me Love», colectânea de artistas de zouklove, género mais romântico e lento do que o zouk propriamente dito, é uma boa mostra deste género, maioritariamente cantado em francês mas por vezes com desvios - como acontece no tema «Tudo Pa Bo», de Suzanna Lubrano, cabo-verdiana radicada na Holanda - para o inglês e o creoulo cabo-verdiano. Destaque para «Fanm'Fo», excelente tema de Valerie Odina, Lea Galva e Danielle Renee-Corail, para a entrada mais que natural de um flow hip-hop em «Wooh She's Who», de Shydeeh, e a festa quentíssima e quase salseira de «Bagaill La Bandé», de Jean-Philippe Marthely, Jean-Luc Guanel e Marius Priam que fecha o álbum. (6/10)

VÁRIOS
«O MIDJOR DI KIZOMBA»
Farol Música

Basta ouvir esta colectânea de kizomba a seguir à de zouk para, facilmente, constatar a proximidade, quase de irmãos, destes dois géneros. Nascida em Angola - misturando semba, merengue, zouk e géneros anglo-saxónicos - mas também bastante popular e praticada em Cabo Verde, a kizomba foi popularizada por Bonga, primeiro, e Don Kikas, depois, até chegar à expressão que tem actualmente, com dezenas (centenas?) de artistas a aderir ao género. «O Midjor di Kizomba», colectânea lançada agora pela editora portuguesa Farol e apontada às comunidades imigrantes africanas de expressão portuguesa (e a todos os outros que a queiram ouvir), agrupa 16 temas recentes de kizomba feito por artistas angolanos e cabo-verdianos e é um bom espelho deste ritmo quente, sensual e - também à semelhança do zouk - para dançar a dois, bem agarradinhos. O primeiro tema, «Ná-Ri-Ná», de Denise, é lindíssimo, com o funaná e a coladeira cabo-verdianos a meterem-se facilmente pela kizomba dentro. Já o segundo, «Alta Segurança», de Philip Monteiro, é kizomba a sério, cheia de sintetizadores e reverberação açucarada na voz do cantor, tendências repetidas por outro nome histórico da kizomba, os Irmãos Verdades, em «Amar-te Assim». E o resto da colectânea é um desfilar coerente de temas que oscilam, sempre, entre a modernidade (produções cheias e luxuosas e até aproximações ao hip-hop, como em «I Want You Back», de Katinga MC) e a tradição: ouvem-se sembas e merengues aqui e ali, ouve-se mais Cabo Verde acolá (o funaná quase em estado puro de «Nha Madrinha», de Jorge Neto), ouve-se uma pitada de São Tomé misturada com Angola (no tema do falecido Camilo Domingos, «Dicena»). Um vídeo sobre como dançar bem kizomba surge como bónus neste CD. (7/10)

VÁRIOS
«KABYLIE NON-STOP - Vol.1»
Night&Day/Megamúsica

Prima do zouk e da kizomba - na mistura de elementos da música ocidental com géneros locais - a música popular da Kabilia (região do norte da Argélia) está próxima do rai, da música berbere (e os seus característicos gritos ululantes, que aparecem em quase todos os temas deste género musical) e de outras zonas do norte de África e, em igual medida, da pop anglo-saxónica e francesa. É uma música alegre, saltitante, óptima para dançar à sombra de uma tamareira (ou outra árvore qualquer) e com um chá de menta na mão. Nesta colectânea, «Kabylie Non Stop - Vol.1», com música escolhida e misturada pelos DJs Fayçal e Youcef, podem ouvir-se muitos temas representativos do género como os incontornáveis «Anzor L'Wali», de Hassiba Amrouche, «Nana Ala», de Mohamed Allahoua, o delicioso «Byiy Anasay», de Alilou, «Yemma», do histórico Takfarinas, o excelente «Sidi Lqurci», de Ouerdia, «Ça Va, Ça Va», de Nadia Baroud; mas também temas mais próximos da música tradicional (sem instrumentos ocidentais) dos Freres Khalfa, «Idbalen», com as gaitas-de-foles da região, bendires e darabukas, e da veterana e respeitadíssima Cherifa (na foto que encabeça este post), «Echah Arnouyas», que está bastante perto da tradição kabiliana, da música clássica egípcia e do flamenco; e ainda remisturas de temas como «Ines Ines», de Massa Bouchafa, e «Sniwa Difengalen», de Ali Irsane. (7/10)

27 agosto, 2006

Cacharolete de Discos (Parte 425)


E mais uma colecção de críticas de discos, dispersas, a álbuns de Keziah Jones, dos Urban Trad, de Youssou N'Dour (na foto) e de Tito Puente. Para conhecer...


KEZIAH JONES
«BLACK ORPHEUS»
Delabel/EMI-VC

Pensa-se num cantor e guitarrista e compositor oriundo de Lagos, na Nigéria, e é em Fela Kuti que se pensa logo. Mas depois sabe-se que é de Keziah Jones que se fala e o caso muda de figura: Keziah (Olufemi Sanyaolu de verdadeiro nome) deixou a Nigéria quando tinha oito anos e foi viver para Londres, onde fez a sua formação com toda a música negra... feita fora de África. E mais tarde é acolhido em Paris, na editora Delabel, o espaço perfeito para mostrar a sua música - uma mistura viva e pulsante de música africana de variadas proveniências, afro-beat, funk, soul, jazz, blues, bossa-nova, tudo apimentado por letras que misturam o inglês com o yoruba. Keziah chamou-lhe blufunk, mas podia ter-lhe chamado afrosoul ou yorusurrealism, que seria a mesma coisa. Em «Black Orpheus», o seu quarto álbum, Keziah Jones transporta as suas influências a um estado de depuração máxima. Quando se ouve o álbum ouvem-se ecos de Fela Kuti (até na apropriação de um termo por este inventado, «kpafuca»), sim, mas também de Manu Dibango e Salif Keita, de Jimi Hendrix e de Frank Zappa, de Sly & The Family Stone e de Stevie Wonder (da primeira metade dos anos 70), de João Gilberto e de Prince e de Miles Davis. Mas tudo embrulhado numa música nova, excitante, personalizada - e a letra do tema «72 Kilos», em que Keziah (explícita ou implicitamente) assume todas as influências, explica bem o que por aqui se passa. O último tema, «Orin O'Lomi», só com voz, guitarra e som de chuva, é um lindíssimo espaço de paz (antes de revelar, minutos depois, uma faixa escondida que parece um «rewind» até aos cantos dos escravos levados de África...). (7/10)

URBAN TRAD
«ELEM»
Mercury/Universal

Oriundos da Bélgica, os Urban Trad fazem uma curiosa mistura de folk europeia – da escola «céltica» irlandesa, escocesa e especialmente da nossa irmã Galiza – com rock e electrónicas, notando-se a influência do «efeito» Hedningarna em linguagens folk aqui mais a sul. Resulta muitas vezes bem e de uma forma extremamente interessante - com as programações e os sintetizadores a não encharcarem em demasia os instrumentos tradicionais (gaitas-de-foles, flautas irlandesas, concertina, violino…). Mas também há aqui alguns temas escusadamente ligeiros (um segundo lugar dos Urban Trad num Festival da Eurovisão deixou marcas!) que desequilibram a coisa, outras vezes, para um lado mais pop e «festivaleiro». Um melhor equilíbrio entre os vários elementos constituintes do som Urban Trad não lhes fazia mal nenhum. (6/10)


YOUSSOU N’DOUR
«HEY YOU! – THE ESSENTIAL COLLECTION»
Nascente/Megamúsica

Recordação do astro senegalês nos anos da discórdia.

Youssou N’Dour não é uma personagem consensual. Como se refere – com uma honestidade de assinalar – no livreto deste álbum, muita gente considera-o demasiado africano para atingir o mainstream da pop ocidental, outros acham-no demasiado pop para ser um verdadeiro músico africano. E esta condição dúbia está especialmente patente em «Hey You!», que reúne temas dos álbuns «The Lion» e «Set» (ambos da viragem dos anos 80 para os 90), que lançaram definitivamente o inventor do mbalax no circuito internacional e lhe valeram temas de sucesso como «The Lion», «Shakin' The Tree» ou «Medina». Eu gosto; os outros que decidam também por si. (7/10)

TITO PUENTE
«THE ROUGH GUIDE TO...»
World Music Network/Megamúsica

Tito Puente foi um dos maiores músicos do Séc. XX. Percussionista, compositor, arranjador, chefe de orquestra, «compagnon de route» de alguns dos nomes maiores do jazz nova-iorquino (ele que era nova-iorquino de ascendência porto-riquenha), Tito Puente passou dezenas de anos da sua vida com uma missão: dar dignidade aos géneros musicais latino-americanos, mostrando – através das suas orquestrações que misturavam, em boa dose, poderosas secções de metais e muitas percussões (com um violino aqui e ali; com vozes algumas vezes – e neste disco estão as de La Lupe, Célia Cruz, Vicentico Valdes...) – que se pode dançar com muitas e desvairadas músicas. Neste álbum ouvem-se mambos, salsas, bossa-nova («Meditação», de Tom Jobim), boogaloos... e latin-jazz e funk de vez em quando. E os pés saltam, saltam sempre. (8/10)

26 agosto, 2006

Janelo da Costa - Os Kussondulola & A Pré-História do Reggae em Portugal


O reggae foi o primeiro exemplo de música fora da esfera anglo-saxónica a ter um sucesso global, partindo de Kingston, Jamaica, para conquistar o mundo. Antes, a bossa-nova brasileira, a rembetika grega (via «Zorba»), o fado (via Amália Rodrigues), o flamenco, o calipso (via Harry Belafonte), a música «exotica» de Martin Denny ou Yma Sumac, a música indiana (via Beatles e Ravi Shankar) e marroquina (via Brian Jones/Rolling Stones) estiveram quase lá, mas foi o reggae que se constituiu como primeira expressão de «world music» a saltar fronteiras com facilidade. Portugal, nos anos 70, também foi tocado pela magia do reggae. Mas a história desta música em Portugal ainda teria um longo caminho a percorrer até atingir o sucesso que tem hoje. Aqui ficam duas entrevistas com Janelo da Costa, mentor dos Kussondulola, a propósito da história (e pré-história) do reggae no nosso país e do último álbum da sua banda, «Guerrilheiro», e a crítica a este disco, em textos publicados no BLITZ em Abril deste ano.



REGGAE EM PORTUGAL
UMA HISTÓRIA TARDIA

Por muito estranho que pareça, o primeiro álbum de reggae feito em Portugal foi editado há apenas dez anos: «Tá-se Bem», dos Kussondulola. Estranho, porque as raízes da música já por cá estavam lançadas desde duas décadas antes. Janelo, a voz dos
Kussondulola, desfia as suas memórias.

Nos anos 70 – principalmente depois do 25 de Abril de 74 -, os discos de Bob Marley e Peter Tosh (principalmente destes dois) circulavam de mão em mão entre os portugueses mais dados às coisas da música. E eram passados em festas de garagem, em finais dessa década, a par do disco-sound, de grupos punk e new wave e de baladas xaroposas. E havia espaços que começavam nessa altura a dar uma maior visibilidade ao género: a discoteca Jamaica (o nome diz tudo), no Cais do Sodré, em Lisboa, e um programa de rádio, na então nascente Comercial, de Humberto Boto, exclusivamente dedicado ao reggae. Mas reflexos na música feita em Portugal havia muito poucos. E foi mais fácil detectar, no chamado boom do rock português, em inícios dos anos 80, influências do ska (via Madness, Specials ou até Police) do que do reggae em bandas portuguesas como os Táxi, Grupo de Baile ou Jáfumega.

Mas havia, já nessa altura, algo a nascer em termos musicais na direcção de uma cultura reggae nacional. E na semente estavam duas personagens que se tornariam fundamentais para a divulgação do género em Portugal: Janelo da Costa (que viria, muitos anos depois, a formar os Kussondulola) e Papa Paulo (radialista e o maior coleccionador português de discos de reggae, estimando-se a sua colecção em mais de 15 mil itens, principalmente em vinil). Nessa altura (início dos anos 80) a viver no Algarve, o angolano Janelo junta-se a Papa Paulo para criar um sound-system, KMAC, em que Papa Paulo passava os discos e Janelo espalhava as suas «riddims» por cima.
Diz Janelo que a diferença entre ele e a generalidade das pessoas que gostam de reggae, «foi que eu quis fazê-lo e não só ouvi-lo. E tive força para nunca desistir. Agarrei-me ao reggae a 100 por cento, mesmo em termos de rastafarianismo [a religião/filosofia do reggae]. E há outra coisa: quando em miúdo tocava música angolana, o merengue, a sua cadência é muito reggae. O primeiro disco de reggae que tive foi do Peter Tosh, oferecido pela minha mãe. E ela, ainda hoje, não gosta de reggae, só gosta do Peter Tosh. Quando vim para Portugal, vivi durante cinco ou seis anos com uma família jamaicana, de quem apanhei aquele espírito. E, no início dos anos 80, vi um grande concerto, na Festa d’O Avante, da primeira banda de reggae que veio tocar a Portugal: Clint Eastwood & General Saint, que tinham um grande sucesso».

Entretanto, Janelo vive durante algum tempo no Algarve (1979/1980), onde trava conhecimento e amizade com Papa Paulo, e data daí o nascimento do primeiro sound-system português, o KMAC: «Ele a passar os discos, eu a cantar por cima. E ainda hoje continuamos a fazer sound-systems. Ele é espantoso: dizemos o nome de um músico qualquer de reggae – seja guitarrista, seja baterista... - e ele sabe tudo sobre ele, quando nasceu, com quem tocou. O Papa Paulo deu-me um grande empurrão no sentido de começar a fazer reggae».

A primeira banda de Janelo chamava-se Rumde, que era o nome do guitarrista do grupo, Edmur, escrito ao contrário. «Ensaiávamos numa cave em Sto. António dos Cavaleiros. Entrámos num daqueles festivais de rock e ficámos em terceiro lugar. Éramos quase todos de Angola. Daí ficou uma canção que ainda hei-de editar, “Mama Nadi”». Os Kussondulola vêm depois, e têm esse nome porque é «mais africano. A minha mãe tinha um bar com esse nome, que também é o nome da minha bisavó. E a palavra engloba uma série de ideias: movimento, deslocação. E o grupo foi-se formando: o Daddy Bé, o Messias...». E os Kussondulola acabaram por ser a primeira banda de reggae em Portugal a chegar à edição de um álbum, «Tá-se Bem», e com bastante sucesso.

Nos últimos anos – e já com discos editados ou não – muitos grupos e artistas de reggae e ska nasceram em Portugal. Sem ser uma lista exaustiva, pode falar-se de Mercado Negro (fundado por Messias, ex-Kussondulola), One Love Family, Montecara, Souls of Fire, Prince Wadada, Sativa, Ja Vai, Legalize, One Sun Tribe e, com bastantes elementos de música jamaicana mas não só, Terrakota, Blasted Mechanism, Philharmonic Weed, Sloppy Joe, Primitive Reason, etc, etc... E, diz Janelo, «há também um veterano do reggae em Portugal de quem gosto muito, Pascoal Silva – com uma carreira tão longa quanto a dos Kussondulola -, cabo-verdiano, que tem um disco muito bom mas que passou ao lado de toda a gente». Janelo não enjeita o epíteto de «padrinho» do movimento: «Sim, sinto-me de certo modo responsável pelo aparecimento de muitos destes grupos. O primeiro disco dos Kussondulola foi um exemplo, até no sentido de podermos cantar esta música em português».

Hoje, o reggae está bem vivo em Portugal. Para além dos grupos e artistas, surgiram vários sound-systems – Yes Mi Selecta, Kintal do Dub, Fankambareggae, Dubadelic Sound System, Reggae Portugal Sound System, Mighty Sound System... -, há festas dedicadas ao género, muitos concertos de vedetas internacionais, sites na internet (como o importante reggaeportugal.com), produtoras especializadas (como a Positive Vibes) e espaço para festivais exclusivamente dedicados ao género. Segundo Janelo, «há cada vez mais gente que se identifica com a filosofia do reggae: paz, amor, boas energias, vibrações positivas».


KUSSONDULOLA
ALEGRES EMIGRANTES

Janelo da Costa, líder (nas suas palavras, «mentor») dos Kussondulola, fala do novo álbum, «Guerrilheiro», de Angola, da língua portuguesa, de cannabis e da sociedade que nos rodeia. A todos.

«Guerrilheiro» é mais um álbum dos Kussondulola e um álbum de reggae cantado em português...

Cantado em português, e isso é importante... Há muita gente que me pergunta: «porque é que não cantas em inglês?... Faz um hit em inglês ou uma versão do Bob Marley». Mas não, não faço. E é estranho porque muitos artistas portugueses cantam em inglês. Nas comunidades africanas, quando há festas – e nós fazemos festas a propósito de tudo -, há sempre música, temos sempre que ter um grande tijolo para ouvir o som, e 99 por cento da música que ouvimos é cantada em português. E as festas dos portugueses brancos têm só música cantada em inglês. Essa é capaz de ser uma das razões para a minha insistência em cantar en português.

Com tantas mensagens de paz que o álbum tem, porque é que se chama «Guerrilheiro»?

Somos guerrilheiros da paz (risos)... É uma referência à História de Angola, que está cheia de guerrilheiros. E também a uma canção do primeiro álbum dos Kussondulola, que se chamava «Guerrilheiro», que por sua vez é uma homenagem a um cantor clássico da música angolana, David Zé, que foi morto na guerra. E eu sinto-me um pouco guerrilheiro, mas um guerrilheiro-artista, com uma abordagem da política através da arte. E, ao fim deste tempo todo a divulgar o reggae, achámos que a nossa luta, dos Kussondulola, é uma luta de guerrilha. Assim como decidimos chamar à nossa digressão, a digressão do Mayombe, em homenagem à floresta angolana com esse nome – temos que vir da floresta falar às pessoas das cidades...

A cidade é a «Babilónia» e o Mayombe é a «Mãe-África»...

Exactamente! (risos)

Para este álbum foi convidada muita gente do universo do reggae em Portugal. E voltaram alguns músicos dos Kussondulola do início...

Desde o início que os Kussondulola são uma banda de «alegres emigrantes». No sentido em que há músicos que entram, saem, voltam a entrar, há muitos convidados que passam por cá (o álbum anterior estava cheio de convidados da pop...). Entrei agora numa fase em que quero ser produtor. E se eu estou a trabalhar com a Sara Tavares, quero no disco dela as melhores cantoras nos coros. E o melhor guitarrista... Nos Kussondulola é a mesma coisa: vou buscar os melhores músicos e cantores. Há uma entidade Kussondulola, mas não conseguimos sobreviver se pertencermos só a uma banda... E nós funcionamos mais como uma grande família, em que há os Kussondulola, os músicos de estúdio, os convidados...

Pode dizer-se que este é um álbum conceitual? Parece haver uma ligação, uma continuidade, nas letras, algumas delas versando a História de Angola...

Não acho que haja um conceito. Essas referências a Angola são inevitáveis. Tenho uma grande ligação à comunidade rasta angolana e sinto que tenho que fazer alguma coisa por Angola. E esta é uma forma de me empenhar nas questões angolanas. Por exemplo, falar da História de Angola à chavalada de lá, interessá-la pelo seu passado. E mostrar que, apesar das guerras e dos conflitos todos, no fim, o Bem vence sempre o Mal...

Essa tónica de esperança está presente em muitos poemas teus, quer nos outros álbuns quer neste - em que continuas a falar de política, paz, religião, ecologia, e, muitas vezes, disto tudo misturado no mesmo poema. Há uma razão para todos os males e uma solução global para todos eles?

É isso mesmo. A resposta só pode ser essa. E essa solução vem da religião rastafariana, sim, mas também de qualquer religião que esteja no caminho do Bem. Nós fomos dotados, na origem, com coisas mais viradas para o Bem. No meu caso, tive uma educação cristã e isso ficou muito enraizado em mim...

Podes esclarecer algumas palavras que usas neste álbum? Por exemplo, o que significa «dengue» (no tema «Dengue Foi Jah»)?

Significa «criança». Esse título significa que Jah está presente nas crianças.

E usas a palavra «bula», que significa «erva» (em «Legalizem a Bula»). Achas que a cannabis vai ser algum dia legalizada em Portugal?

Cada um tem o seu pensamento próprio sobre esse assunto. E nesta canção eu transmito o meu. Quis pôr as pessoas a navegar um bocado nesta letra...

Vocês metem música angolana pelo meio do reggae. Há aqui elementos de semba e merengue...

Esses elementos da música angolana são muito importantes porque são uma forma de identificação dos Kussondulola. E o nosso mercado passa muito por Portugal e Angola, mas também por Moçambique, Brasil, Guiné-Bissau... E essas sonoridades angolanas, essas fusões, dão-nos uma originalidade grande e, ao mesmo tempo, uma identificação com outros países lusófonos. A lusofonia é uma «mix» original e temos que fazer essas misturas com elementos daqui e dali, que nos dão tanta riqueza... No «Lua Luanda» começamos com música angolana e só depois é que vamos ao reggae...

De onde é que vem a canção «Poeta do Povo»? É repescada da Linha da Frente?

Sim, porque nós gravámos essa música para o álbum da Linha da Frente (projecto que juntava João Aguardela, Luís Varatojo, Viviane e Janelo, entre outros), mas acabou por não entrar no álbum. E aproveitei-a para o o álbum dos Kussondulola: acrescentei umas guitarras, um piano, mas a base vinha da Linha da Frente... A Linha da Frente era um projecto fantástico e tem que haver mais projectos destes, de união entre artistas de várias áreas. Nós não temos uma indústria musical e, se nós, artistas, não nos unirmos não vamos a lado nenhum... Por exemplo, um dos meus grandes desejos é que haja um festival de Verão, tão grande como os outros, mas só com música portuguesa e de expressão portuguesa: 50 bandas, todos os anos...


KUSSONDULOLA
«GUERRILHEIRO»
Zona Música

Janelo da Costa está há mais de 20 anos na linha da frente do reggae feito em Portugal – com sound-systems que agitaram o Algarve no início dos anos 80, com projectos de bandas que deram origem aos Kussondulola, a primeira banda reggae nacional a chegar ao formato álbum e ao reconhecimento popular. Das suas sementes nasceram muitos outros grupos e esse é apenas um dos seus méritos. O outro, de Janelo e dos Kussondulola, é lançar mais um álbum, este «Guerrilheiro», que soa a fresco e a novo (e é sabido como, muitas vezes, o reggae tende a repetir-se a si próprio). «Guerrilheiro» é reggae cantado em português (e com muitas palavras vindas de Angola, como «dengue» que significa «criança» ou «bula» que significa «erva»), com mensagens políticas, sociais, ecológicas, religiosas, pacifistas... e com um enquadramento musical riquíssimo. Porque, pelo meio do reggae, há dub, dancehall, desvios rock, funk e disco-sound (!), formas musicais angolanas como o merengue e, sempre, muito bem servidos por músicos fantásticos e alguns convidados que dão maior riqueza no jogo de vozes (Prince Wadada, Legalize, Melo D, Paulo Gonzo ou Viviane). (7/10)

25 agosto, 2006

Castro Verde e Portalegre - O Alentejo e Tudo à Volta


O Festival Planície Mediterrânica decorre em Castro Verde, de 7 a 10 de Setembro, com vários e diversificados motivos de interesse. «Memória Andaluzí», um projecto especial do espanhol José Luís Rodriguez aqui acompanhado pelos marroquinos Nour Eddine e Jamal Ouassini, o português Marco Reis e a espanhola Pastora Galván; Nour Eddine a solo; e os italianos de inspiração cigana Acquaragia Drom (na foto) são alguns dos destaques deste festival organizado pela Câmara Municipal de Castro Verde, o Festival Sete Sóis Sete Luas e a associação Pé de Xumbo. E, a seguir, em Portalegre, de 13 a 16 de Setembro, o Festival Sons do Mundo - Festival Internacional de Música e Danças do Mundo, traz até nós o notável colectivo feminino Zap Mama (Bélgica/Congo), o colectivo multinacional Cherno More Quartet e Kilema (Madagáscar), entre outros.

Disperso por vários locais de Castro Verde, o Festival Planície Mediterrânica começa no dia 7 com a abertura da exposição «Olhares Sobre Um Lugar», de António Cunha, Helena Lousinha e Jean Pierre dos Santos, mas o arranque dos concertos e bailes tradicionais é no dia 8 com um workshop de danças orientais (Denise Carvalho) e um concerto do coro alentejano Os Ganhões de Castro Verde, à tarde, e, já à noite, d'As Camponesas de Castro Verde, do projecto especial «Memória Andaluzí» e, em after-houres, um baile com os Al-Driça. No dia 9, à tarde, há um workshop de danças do Mediterrâneo (Mercedes Prieto) e outro de cante alentejano, e a actuações da Banda Filarmónica 1º de Janeiro (Castro Verde), Os Chocalheiros (Vila Verde de Ficalho), A Bardoada (Palmela) e Grupo Coral As Antigas Mondadeiras de Casével. À noite, os concertos estão por conta do Grupo de Viola Campaniça, Nour Eddine (Marrocos) e Acquaragia Drom (Itália), com baile a seguir a cargo dos Amanida Folk (Catalunha). No dia 10, à tarde, decorre um workshop de danças europeias (Mercedes Prieto), outro de Modas Campaniças (Grupo de Viola Campaniça) e actuações, em várias tabernas, d'Os Ganhões, Viola Campaniça e outros tocadores, enquanto noutro local se mostram o Grupo Coral As Vozes de Casével e o Grupo das Pedrinhas de Arronches. À noite, o concerto de encerramento é assinado por Akim El Sikameya (Argélia). Também há exposições, encontros, conversas com alguns dos artistas presentes, feira do disco, poesia e muita gastronomia do Mediterrâneo.

Um pouco mais a norte, em Portalegre, o Centro de Artes e Espectáculos é o palco do Festival Sons do Mundo, que começa dia 13 com o Quarteto de Cherno More (Bulgária/Síria/Sudão) e continua, dia 14 com os Almakam (Marrocos), dia 15 com Kilema e a sua banda homónima (Madagáscar) e encerra, dia 16, com as históricas Zap Mama (Bélgica/Congo). Uma iniciativa paralela, as Oficinas Sons do Mundo oferecem workshops de percussões árabes (com Wafir Sheik, dias 13 e 14) e de dança do ventre (com a bailarina Shakti, dia 14).

23 agosto, 2006

Tom Zé - Estudando a Personagem


Tom Zé - um dos nomes míticos do tropicalismo - deu vários concertos extraordinários nos últimos meses em Portugal. Concertos-concertos mesmo ou os geniais concertos-palestras como aquele/aquela que apresentou na Casa da Música, Porto (e noutros locais), na abertura do Festival Mestiço. Aqui, recupera-se uma entrevista com Tom Zé publicada originalmente no BLITZ em Junho do ano passado tendo como mote o álbum «Estudando o Pagode – Na Opereta SegregaMulher e Amor».


TOM ZÉ
MEU XARÁ!

Tom Zé é um homem surpreendente. Com fama de louco ou de alguém que tomou um ácido em finais dos anos 60 – um ácido que ainda não foi completamente expulso pelo organismo –, em conversa Tom Zé revela-se um homem inteligentíssimo, muito culto, hiper-simpático e com um discurso absolutamente coerente com a obra que assina. A última, o álbum conceitual «Estudando o Pagode – Na Opereta SegregaMulher e Amor», critica o papel secundário (ou secundarizado) das mulheres na sociedade ao mesmo tempo que fala de religião, de política, de História e... de amor. Os mesmos temas em que repega nesta conversa. Uma conversa em que o compositor e cantor tratou o entrevistador (António José, tal como ele) por «meu xará» (carinhoso termo brasileiro para «homónimo»).

Vou ler-lhe um excerto da «1ª Carta de S.Paulo aos Coríntios» (Cap. 34, vers. 36), que diz assim: «Calem-se as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido falar; mostrem-se submissas, como diz a própria Lei. Se querem aprender alguma coisa, perguntem-no em casa aos seus maridos». Quer comentar?


Estou até arrepiado com isso... Isso só demonstra como o machismo está tão incrustado nas religiões. Essa é uma frase trágica, que parece dita por um coro grego falando uma coisa absurda. Parece saída das obras do Ésquilo, que era o mais religioso dos autores trágicos gregos. Que coisa terrível! Que estigma!

Tenho aqui outra frase que lhe peço para comentar, esta do «Alcorão», que tem um capítulo, o 4, só dedicado às mulheres. Esta diz assim: «Se receardes não poder tratar os órfãos com equidade, desposai tantas mulheres quantas quiserdes: duas ou três ou quatro. Contudo, se não puderdes manter igualdade entre elas, então desposai uma só ou limitai-vos às cativas que por direito possuis»...

Houve um tempo em que havia uma convivência harmoniosa entre o homem e a mulher, mas já há muitos séculos que isso acabou. E todas as grandes religiões segregam a mulher. Essa frase do «Alcorão» parece indicar que todas as mulheres são escravas do homem, já que podem ser escolhidas por ele. Mas quero fazer uma ressalva a este comentário ao «Alcorão»: eu não conheço bem esse livro e, por isso, os meus comentários podem ser falíveis. Já em relação à «Bíblia», eu posso comentar porque nasci católico.

E para além de ter nascido católico, já disse em várias entrevistas, a propósito de Estudando o Pagode, que nasceu mulher...

Sim... quando nasci não o sabia, mas eu nasci mulher. E a ideia para este álbum vem desde que eu nasci (risos). A gente é educado como homem, mas toda a minha maneira de ver - a igualdade, o respeito mútuo - é mais da mulher do que do homem. Também tenho traços machistas e prepotentes, mas a coisa mais profunda da minha personalidade é a tentativa de ter uma convivência harmoniosa com as mulheres, uma característica que é delas. Sou casado há 35 anos e tive que modificar muitos conceitos e muitos procedimentos para dar alguma tranquilidade moral à minha mulher. Aprendi muito com ela, principalmente nos últimos anos. E quando comecei a preparar um novo disco, em 2000, aconteceram vários casos de segregação da mulher, de homossexuais e lésbicas, e também a invasão do Iraque pelo Bush, que é também uma prepotência machista americana. Há bocado falou do «Alcorão» e é impressionante como tanta gente – artistas, desportistas... – se converteram nos últimos anos ao islamismo, talvez porque o Ocidente, nomeadamente os Estados Unidos, já não tem uma religião. O vosso grande poeta Fernando Pessoa, numa carta a Sá de Miranda escreveu que «não estou a dizer nada no meu juízo próprio porque acabei de traduzir um livro da Blavatsky [Nota: Helena Blavatsky, escritora e pensadora esotérica/teosófica] e estou num estado de transe». O que prova, mais uma vez, que a religião está afastada da civilização ocidental. O catolicismo está enfraquecido por uma igreja arbitrária e prepotente. E o disco fala da mulher de um ponto de vista religioso...

Não é por acaso, portanto, que o seu novo disco começa com uma oração, a «Avé Maria», adaptada. Uma oração que é dedicada a uma mulher, Maria, não por ser uma mulher mas por ter sido a mãe de Jesus Cristo, filho de Deus...

Correcto. Mas faço também isso porque – segundo muitos mitos religiosos e esotéricos - só a mulher pode levar o homem ao Divino. A mulher é a intermediária para a salvação...


Mas, ao mesmo tempo, é também – segundo alguns relatos religiosos, nomeadamente no livro do «Génesis», da Bíblia – quem leva o homem ao pecado...

E é aí que começa a segregação! Mas também se pode dizer que foi a mulher que nos levou à Ciência. Já pensou se o mundo fosse como estava programado sendo o Éden [NR: o Paraíso]? Nada sairia do lugar... Andei a ler as coisas de Fernando Pessoa sobre esoterismo, mas é difícil ler uma pessoa como ele e juntar todas as ideias. Mas há uma ideia dele fácil de explicar: a de que o Deus de Abraão, que hoje reina sobre quase todo o planeta Terra (Nota: Tom Zé refere-se às três grandes religiões que descendem deste tronco comum: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo), é um grande poema inventado por um homem. Quando Abraão foge de Ur, na Babilónia, foge de deuses como Baal ou a lua, e chama ao seu deus O Altíssimo. E este Deus já derrotou todos os outros deuses. O Deus de Irará [Nota: cidade do interior do estado da Bahia], a minha terra, é o mesmo Deus de Roma. É o Deus de Abraão... O Deus do «Alcorão» é o mesmo. O Deus dos protestantes – de Lutero e de Calvino – é o mesmo. E aqui há uma nuance: as mulheres são mais admitidas nas religiões protestantes. Os pastores protestantes têm direito ao casamento...

À medida que o disco avança há uma evolução do «papel» da mulher. Passa de mulher segregada, submissa, escravizada, a um patamar de igualdade... Acha que essa igualdade existe na actualidade ou, de facto, não existe e foi por isso que fez este disco?

Para lhe responder, vou-lhe falar de um conceito filosófico de uma pessoa do PT [Nota: Partido dos Trabalhadores] brasileiro, que já morreu, o Professor Paulo Freire: ele era brilhante, intelectualmente, e ele tem um conceito chamado «hospedar o opressor», que significa «de tanto conhecer o método do opressor, de tanto ver o opressor agir, de tanto conhecer a técnica intrínseca do procedimento do opressor, no momento em que o oprimido – neste caso a mulher -, aparece como protagonista, age igual ao opressor, porque é a única técnica que os oprimidos conhecem». Respondi à sua pergunta indo lá adiante, como se fosse uma jogada de xadrez um pouco estranha, mas dá para entender a ideia. O próprio PT neste momento está agindo quase como o opressor. Eu defendi Lula [Nota: Lula da Silva, líder do PT e presidente do Brasil] até há pouco tempo, quando ele usou métodos para suspender uma investigação de uma corrupção terrível. O PT está hospedando o opressor... Isto para dizer que a mulher precisa de ter cuidado para, na hora em que tiver oportunidade de ter o comando, não hospedar o opressor.

Porque é que escolheu um género musical tão maltratado e tão desconsiderado como o pagode para charneira sonora deste disco?

O Brasil é um país de pobres e de ricos. Os excluídos, aqui, estão numa situação dolorosa, parecendo que nem são mais gente humana. E são submetidos a uma cultura de massas degradante, terrível. Não têm escola e não podem fazer uma música melhor do que a que fazem. E aqui no Brasil não se pode confundir pobreza com burrice, porque foi das classes pobres que saíram as melhores manifestações populares de música do nosso país. Escolhi o pagode porque quis dizer que eles estão submetidos a uma escravidão intelectual, a uma segregação do «know how» básico que é a alfabetização. E um pouco também para dizer que se pode pegar em qualquer género do mais simples e engrandecê-lo, desde que você aumente as opções de conhecimento estético, de variação, de criação, de uso dos instrumentos... Por exemplo, neste disco fiz uma orquestrinha de folhas de ficus – a folha do ficus pode ser tocada dobrando-se-lhe a ponta e soprando por ela. É um instrumento de crianças, muito irritante, e nunca ninguém tinha pensado em usar esse sonzinho. Mas com a tecnologia de hoje usei as folhas de ficus e fiz uma escala de duas oitavas com elas. O disco todo é acompanhado por esse instrumento infantil! O resultado final foge da escala diatónica ocidental, é mais glissada, e remete para os cristãos cantando nas catacumbas, antes da Igreja ter estabelecido o cantochão na Idade Média. Quis, com isso, criar uma espécie de um mundo primal. Também usei pentes com papel de celofane e outros instrumentos infantis.

A utilização do pagode não está em contradição com as letras do seu disco?... Não conheço muito pagode, mas do pagode que chega a Portugal – a Turma do Pagode e outros grupos --, as letras...

...Segregam a mulher. São letras machistíssimas, horrorosas. Mas veja: o pagode é segregado, ele próprio segrega a mulher... E esse foi um dos motivos para escolher o pagode. E aí fica um caldeirão bastante interessante. Tenho o sonho, a esperança, que este seja um disco-escola para os pagodeiros ou, então, para as crianças que crescem no meio do pagode. E pode haver alguma que pensa, ouvindo este disco, «eh pá, ele brinca com uma porção de coisas. Eu também posso brincar». Tenho essa esperança.

Mas no meio do pagode aparecem outras referências... Por exemplo, cita os Beatles, o Vinícius de Moraes e faz um trocadilho com as «Mulheres de Atenas», de Chico Buarque, no libretto, com «Mulheres de Apenas»...

Correcto. A minha canção dedicada aos Beatles é aquilo a que eu chamo «plágio-arrastão-combinação». E há mesmo esse trocadilho com as «Mulheres de Atenas», numa referência ao Chico Buarque e também ao Artur Bual. Por outro lado, a República de Ipanema, da qual Vinícius de Moraes foi um dos grandes reis, era terrivelmente machista. Vinícius, com aquele encanto, e ele era um encanto de conquistador, enganou as mulheres do Brasil e talvez de Portugal durante muito tempo com aquele negócio do «(amor) que seja infinito enquanto dure»! Que filho de puta! Que bandidão! É o mesmo que dizer «o meu amor é eterno, minha filha; para a semana dou-lhe um pontapé»...

Não é estranho que um homem que escreveu uma coisa fabulosa, de esquerda, chamada «O Operário em Construção», tenha, por outro lado, essa postura machista?

Acabei de falar em «hospedar o opressor»...

OK, está explicado...

Eu não acho que o meu disco seja feminista. É um disco masculinista, porque estou dizendo ao homem «veja o que temos perdido por tratarmos mal as mulheres». Pode-se «comprar» a mulher com o casamento, a sedução, até o dinheiro... Mas não se pode comprar a sua intimidade, o seu segredo mais secreto. E quando isso acontece, o homem é como um mendigo. É por isso que eu, nas fotos do disco e nos concertos, e a banda em palco nos vestimos de mendigos. Quando a mulher não tem confiança no homem como é que mostra a sua intimidade profunda, o gozo [NR: o orgasmo], para o seu secular inimigo em potencial? Conheci muitas mulheres – não sou um conquistador, mas fui solteiro até aos 32 anos - que não gozavam e eu até pensava que era um amante pouco hábil. Mas recentemente saiu um estudo do Departamento de Sexologia da USP [Nota: Universidade de S.Paulo], que revela que 70 por cento das moças consultadas, entre os 15 e os 25 anos, se queixaram que, durante o acto sexual, não são devidamente excitadas – os machos não ligam para isso –, que sofrem dores na altura da penetração e que o cara levanta e deixa ela lá sem gozar. Para além disso, não têm coragem de dizer que não gozaram porque fica parecendo que são prostitutas. E isso acontece em 2005!

22 agosto, 2006

Cacharolete de Discos (Parte 127)


E mais uma selecção de críticas a álbuns saídos há alguns meses, publicadas originalmente no BLITZ. Desta vez, Salif Keita, SambaSunda (na foto), Susheela Raman, DJ Marlboro (e o baile funk das favelas brasileiras) e uma colectânea comemorativa da importantíssima editora africana Syllart.



SALIF KEITA
«M’BEMBA»
Universal

Cantor maliano rodeado de vozes e cordas que o levam ao céu.

O novo álbum de Salif Keita continua a sua viagem de regresso às raízes da música mandinga – tendência já registada no álbum «Moffou» (2002) –, depois de ter flirtado durante muito tempo com géneros, digamos, ocidentais (o jazz, o funk...). Em «M’Bemba» ainda há alguns traços dessa «ocidentalização» - como no segundo tema, o lindíssimo «Laban», com um baixo eléctrico suavemente funk – mas é maioritariamente ocupado por música que só pode vir dali, do Mali e das zonas limítrofes. Rodeado por uma banda fabulosa (onde se inclui Kante Manfila na guitarra acústica) e por alguns convidados de luxo como o cantor de reggae Buju Banton (num tema fortíssimo, «Ladji», que faz naturalmente a ponte entre o Mali e a Jamaica) ou Toumani Diabaté (em kora no maravilhoso tema-título), Keita assina um álbum que é uma festa de vozes (a dele e de coros femininos), cordas (muitas) e percussões. (8/10)

SAMBASUNDA
«RAHWANA’S CRY»
Network/Megamúsica

Da Indonésia conhecemos, geralmente, os gamelões (orquestras de xilofones de metal ou de bambu, gongos e outras percussões), a música de Bali (o «kecak» ou «canto dos macacos») e pouco mais. É, por isso, uma surpresa grande depararmo-nos com um álbum como «Rahwana’s Cry». Oriundos do oeste da ilha de Java, os SambaSunda são uma imensa trupe (cerca de quinze elementos) liderada por Ismet Ruchimat, compositor de boa parte dos temas do grupo. E, sem nunca recorrer a instrumentos «modernos» (guitarras eléctricas, sintetizadores...), conseguem criar uma música viva, alegre e de uma modernidade absoluta, cheia de groove e transe e melodias lindíssimas, misturando vários géneros do arquipélago e recorrendo quase sempre a instrumentos locais (o violino e o djembé são excepções). Ah, e têm também uma excelente voz feminina (Rita Tila). (8/10)

VÁRIOS
«20 YEARS HISTORY - THE VERY BEST OF SYLLART PRODUCTIONS»
Syllart/Sono/Megamúsica

O produtor e editor Ibrahima Sylla é uma lenda da música africana. Senegalês de origem nobre, falante de várias línguas do seu país e dos países limítrofes (mandinga, bambara, wolof, foula...), irmão e primo-direito de 63 rapazes e raparigas, estudante de economeia e gestão em Paris, Sylla tinha a cabeça bem aberta - quando começa a trabalhar, durante os anos 70, no estúdio Golden Baobab, com a Orchestra Baobab ou a Étoile de Dakar (de Youssou N'Dour). A partir daí, produz, edita dezenas de artistas africanos e inventa, no princípio dos anos 80, o super-grupo Africando. A sua Syllart Productions - aqui representada numa caixa com 5 discos - agrupa muitos dos maiores artistas do Senegal, Mali, Congo, vai às raízes da música africana e atira-se ao futuro, em fusões com muitas outras músicas (o último CD inclui reggae, funk, hip-hop africanos...). Um documento incontornável da música africana. (9/10)

SUSHEELA RAMAN
«MUSIC FOR CROCODILES»
Narada/EMI

Cantora de origem indiana grava pela primeira vez com indianos... para fazer um disco ocidental.

Ao terceiro álbum, a cantora inglesa de origem indiana Susheela Raman dá o primeiro semi-passo em falso da sua carreira. Não que o álbum seja mau – não é! – mas porque é um álbum nitidamente desequilibrado. Tem uma primeira parte cantada em inglês, com ambientes entre Sade e Dido e com tablas e sitar a apimentarem o conjunto. É boa pop com caril mas pouco mais. As coisas melhoram bastante a meio do álbum (curiosamente com um tema jazzy-exotica-fumegante em inglês, «Meanwhile», a cheirar a Cassandra Wilson) antes de se atirar, e bem, a canções tradicionais do sul da Índia (e até a uma bonita balada em francês), sabiamente transpostas para a modernidade. A fechar, «Leela» é novamente cantado em inglês mas é uma chave perfeita para um álbum imperfeito. (6/10)

DJ MARLBORO
«FAVELA FUNK»
Different World/Musicactiva

O baile funk (também conhecido como funk carioca) nasceu nas favelas do Rio de Janeiro, ainda nos anos 70, então com sound-systems ao jeito jamaicano que debitavam soul, funk e disco-sound em festas comunitárias. Nos últimos anos, no entanto, o estilo conhecido como baile funk deve quase tudo aos ritmos e electrónicas sacados ao Miami Bass, mas com letras «rappadas» em português e um calor que só poderia sair do Brasil. E é um movimento imparável nesse país – à semelhança do que acontece com o reggaeton em Porto Rico, o kuduro em Angola ou o kwaito na África do Sul -, onde desceu da favela para as zonas de classe média do Rio de Janeiro, alastrou a outros pontos do Brasil («o nosso som é de raiz, saiu lá da favela e se espalhou pelo país», diz MC Gallo, em «Funk das Favelas»), e é dançado em festas frequentadas por milhares de pessoas, negras e brancas, ricas e pobres, nos bairros-de-lata ou nas discotecas cariocas ou paulistas da moda. E de que é feito o baile funk? Tal como «Favela Funk», colectânea escolhida por DJ Marlboro (um dos pioneiros e DJs mais respeitados do movimento) elucida bastante bem, é feito de electro, hip-hop, tecno, house, samba, música do nordeste do Brasil, dancehall jamaicano, disco-sound, ritmos africanos e samples variados. Aqui vale tudo, a começar por letras de consciencialização política e social («eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci») e a acabar em letras de forte carga erótica («a minha bochecha está ardendo», diz a Vanessinha do Picatchu, «se eu descer mais um pouquinho você vai ficar querendo...», responde o Krrasco... e não, não é das bochechas mais óbvias que eles falam) ou em descrições das festas ou da forma de dançar o género («bate o pé... bate o bumbum...»). A colectânea integra nomes (as designações são divertidíssimas) como Cidinho e Doca, Força do Rap, Os Tchutchukos, Bonde do Tigrão, Os Krrascos & Vanessinha do Picatchu, Ganga Jump ou Jah Mai. Para ouvir (e, claro, dançar) sem preconceitos de espécie nenhuma... (7/10)

21 agosto, 2006

Rachid Taha - A Música e a Luta


Uma frase dita por Ali Farka Touré citada no post anterior - «mais importante do que a música é a mensagem que ela carrega» - fez-me recuperar uma entrevista antiga (Junho de 2000) com Rachid Taha, o cantor argelino que, depois disso, editou os álbuns «Made In Medina» (ainda nesse ano), «Live» (ao vivo, 2001) e o espantoso «Tékitoi» (2004), disco em que colaboraram Steve Hillage e Brian Eno (álbum marcadamente político que incluía uma versão de «Rock The Casbah», dos Clash, rebaptizada «Rock el Casbah»). Já era tempo de ele voltar aos concertos no nosso país...


RACHID TAHA
VISTO DE RESIDÊNCIA

Quase a atingir os quarenta anos e com vinte de carreira musical, Rachid Taha - que actua no festival Cosmopolis, dia 1, no Tivoli - é uma espécie de apátrida em termos geográficos e musicais. Numa pequena entrevista ao BLITZ - ele que nasceu argelino mas vive em França desde criança e que, na sua música, mistura os cantos melismáticos do norte de África e o festivo rai com o rock, o tecno, o jazz, a house... - Taha diz que «o meu país é a minha música... e a minha música é o meu país».

Durante os anos 80, Rachid Taha pertenceu aos Carte de Séjour, grupo rock - com elementos étnicos incorporados - que incluía nas letras bastantes temas ligados à questão da imigração em França, um pouco à semelhança do que acontecia com os Mano Negra ou Les Négresses Vertes. No início dos anos 90, Rachid Taha encetou uma carreira a solo em que a direcção musical virou para a música de dança, mas onde as questões sociais e as influências da música do norte de África continuaram sempre presentes. O momento mais mediático que o rodeou foi o álbum assinado com outros dois nomes importantes do rai radicados em França, Khaled e Faudel, «1, 2, 3, Soleils». Pergunto-lhe se este disco, editado em 1998 e que já vendeu centenas de milhar de cópias, é uma espécie de frente comum magrebina, à imagem do que acontece em Londres com o «movimento» indiano/paquistanês de que fazem parte os Asian Dub Foundation, Transglobal Underground, Talvin Singh e Nitin Sahwney, entre outros. Taha diz que não: «Não acho que haja comparações. Há vinte anos que faço música com consciência da comunidade a que pertenço. "1, 2, 3, Soleils" é uma continuação lógica desse trabalho e dessa consciência. A comunidade indiana em Londres está atrasada em relação à comunidade argelina em França. Há muitas formas de reagir à política de imigração, quer em França quer noutros países, e a música é uma delas».

Em Rachid Taha, a música está muitas vezes ao serviço da mensagem, mesmo que isso não seja óbvio num primeiro momento: «A música, a cultura em geral, são armas poderosas. Prefiro fazer música do que pegar numa metralhadora. Esse disco com Khaled e Faudel é uma tentativa de, de uma forma moderna, transmitir mensagens que julgamos importantes. E isto é que é, de facto, ser moderno. Muitas vezes, na música de dança e na música electrónica o som é moderno mas o espírito é retrógrado». Para Taha, a situação dos imigrantes argelinos, marroquinos ou tunisinos em França não é muito diferente agora do que era há vinte anos. Diz ele: «Pessoalmente, estou-me nas tintas para pessoas como Le Pen. O perigo não vem dele. Ele é de extrema-direita, é fascista, mas nós sabemos que o é. O problema está nas pessoas que se situam num espectro político mais normal mas que são intrinsecamente racistas. As leis mais perigosas são as que saem do interior do sistema democrático e que afectam imediatamente os imigrantes a níveis básicos como o trabalho, a procura de casa, a educação, até o direito ao divertimento - os magrebinos e os negros não têm acesso a muitas discotecas, por exemplo».

No início dos anos 80, os Heaven 17, a propósito da canção «(We Don't Need) This Fascist Groove Thang», defendiam que se deve pensar - e tomar uma consciência política e social - enquanto se dança. Rachid Taha está de acordo: «É isso mesmo. Tenho uma frase que diz "je dance donc je pense". Posso dizer que essa é a base do meu trabalho». Confrontado com outra afirmação, esta de Talvin Singh, sobre a raiz comum da música do norte de África, da Índia e de muita da moderna música de dança que se faz hoje no Ocidente - as bases rítmicas contínuas, a busca de transe, a repetição de motivos melódicos -, Taha diz que «esta conversa está a ficar muito estranha... (risos). Isso que estás a dizer que o Talvin Singh disse, já eu o afirmo há muitos anos. O outro dia também estava a ler uma entrevista com o Carlos Santana e ele dizia coisas que eu já digo há muito tempo. Se calhar, a explicação é simples: os músicos que estão num país que não é o seu começam, em qualquer parte do mundo, a pensar de maneira semelhante e a pôr questões que outros músicos não põem».

O último disco de originais de Rachid Taha foi «Diwan», em que o músico está mais próximo do rai do que em outros álbuns a solo. O próximo («Made In Medina») sai em Setembro e, diz Rachid, foi gravado em Londres, Marrocos e Nova Orleães. Ele explica: «Há muita gente que fala em música trance. Eu prefiro, à ideia de transe, a ideia de música "xamânica"; música que enfeitiça. E, neste álbum, faço uma viagem que une vários pontos em que essa música se toca. África é a matéria-prima. Inglaterra é a indústria. Os Estados Unidos são a matéria-prima e a indústria». Quanto ao concerto em Lisboa, Rachid disse que «é preciso esperar». Mas há, pelo menos, uma certeza: «Danço logo penso logo danço logo penso...».

20 agosto, 2006

Ali Farka Touré - Por fim, «Savane»


Depois de neste blog ter recuperado vários textos dedicados a Ali Farka Touré, chega hoje a crítica a «Savane», o álbum editado há poucas semanas e gravado pouco antes da sua morte... Aqui fica o texto, com respeito, amor e admiração eternas.


ALI FARKA TOURÉ
«SAVANE»
World Circuit/Megamúsica

Um dia (um mês, um ano) destes, hão-de surgir dezenas de gravações de Ali Farka Touré. Gravações ao vivo, maquetas, «outtakes» de estúdio, etc, etc. A indústria discográfica costuma fazer render bem os seus mortos - no rock, no jazz, na clássica, na world... - e reembalar de diferentes formas, muitas vezes, as mesmas canções em alinhamentos diferentes, em caixas diferentes, em versões (só muito ligeiramente) diferentes... Mas não é esse o caso de «Savane», verdadeiro testamento musical de Ali Farka Touré, último álbum gravado pelo genial guitarrista, cantor e compositor maliano já numa fase em que ele sabia perfeitamente qual a doença que o consumia e da qual viria a morrer em Março deste ano. Um testamento escrito a muito sangue, sim, mas só a algum suor (parece sempre tão simples de fazer, sem esforço nem dor, a música de Ali Farka) e nenhumas lágrimas.

No pequeno filme que serve de material de promoção a «Savane», vê-se Ali Farka no estúdio, em concertos, a viajar nas margens do Rio Niger, em Niafunké... E ouve-se a sua voz a falar, com amor, com paixão inteira e eterna, por esta terra que ajudou a desenvolver. E da sua música - que fala de trabalho, de agricultura, de saúde, da família, de paz, de política (diz ele que «mais importante do que a música é a mensagem que ela carrega»). E deste álbum, «Savane», que lhe deu tanto prazer gravar. E da homenagem que faz, no disco, a Anassi Coulibaly, a quem ele agradece o facto de ter podido profissionalizar-se como músico. E nunca, nunca, da doença de que sofria ou da iminência da morte. Um sorriso, um cigarro, um chapéu, outro sorriso, a voz mais suave do mundo quando diz a palavra «Niafunké» e uma música que nunca morrerá.

O tema-título do álbum, «Savane» (cantado em francês), tem nele, bem fundo, blues, música mandinga, fado, música árabe, gnawa, música peruana, mariachis, música indiana e mil outras sugestões de músicas de todo o mundo... É quase um compêndio completo de world music e é justo que apareça no álbum derradeiro de Ali Farka Touré, ele que foi um dos maiores embaixadores das músicas do mundo. E o resto do álbum é uma maravilha completa, com as guitarras dengosas, circulares, baloiços das estrelas, de Ali a conduzirem a sua voz (e as vozes dos maravilhosos coros que se ouvem de vez em quando), as cordas dos n'gonis e da njarka que o acompanham, a voz de Afel Bocoum (que duela com ele num tema e faz coros em mais dois), as percussões de Fain Dueñas (Radio Tarifa) e de outros músicos, o saxofone de Pee Wee Ellis e a harmónica visceralmente delta-blues de Little George Sueref.

Para além do tema-título, também «Ewly», «Soko Yhinka» (a homenagem a Anassi Coulibaly), «Soya», «Machengoidi» (que lança pontes óbvias com a música dos tuaregues e o gnawa vizinho do norte), a blues, bluesíssima «Ledi Coumbe» (Robert Johnson a encontrar encruzilhadas no deserto), a belíssima e com a njarka em alta velocidade «Hanana», a litania hipnótica-repetitiva «Gambari Didi», «Banga» (e uma flauta que dança), a cadência lenta e encantatória de «N'jarou» (o dueto entre Ali Farka e Afel Bocoum) e a maravilhosa «Penda Yoro» (com a harmónica de Little George Sueref a encontrar as correntes escondidadas no Atlântico entre o o Mississippi e o rio Niger), se contam entre os momentos mais brilhantes de «Savane». (9/10)

19 agosto, 2006

António Variações - Antes da World Music


Às vezes gosto de imaginar o que teria acontecido a um artista como António Variações no circuito da chamada world music. Se não tivesse morrido (em meados dos anos 80) exactamente na altura em que se começa a assistir ao nascimento desse circuito, através de editoras como a Real World ou a Luaka Bop e de uma rede de festivais e concertos então em fase de desenvolvimento. Um circuito que os Madredeus apanharam - e ainda apanham, bem - quase logo no ínício. Pode estranhar-se: António Variações artista «world»?... Mas por que não? Com a sua fusão de fado, música tradicional portuguesa e várias tendências da pop, Variações não estava - há 25 anos - muito longe de tendências fusionistas que invadem o actual espectro das «músicas do mundo». Estava até muito perto... e, acrescente-se, muito antes deles todos. Aqui fica a recuperação da crítica a «A História de António Variações», colectânea que agrupa muitos temas emblemáticos do cantor e compositor e extractos de maquetas que lhes deram origem, publicada originalmente no BLITZ em Março deste ano.


CORTE DE CABELO

ANTÓNIO VARIAÇÕES
«A HISTÓRIA DE ANTÓNIO VARIAÇÕES – ENTRE BRAGA E NOVA IORQUE»
EMI Music Portugal

Maquetas de António Variações reveladas pela primeira vez em álbum. E o que delas resultou. Ou Variações a revelar a pele escondida por baixo de barbas e cabelos de mil cores.

Quando se ouvem as maquetas das primeiras canções dos Velvet Underground incluídas na caixa «Peel Slowly and See», perguntamo-nos que raio de bicho mordeu os VU para mudarem tanto a sua sonoridade entre as gravações das maquetas (que mostram canções folk, na linha de Bob Dylan) e as gravações do seu primeiro álbum, «The Velvet Underground & Nico». Teria sido a entrada da bateria selvagem daquele pedaço de mulher chamado Moe Tucker? Teria Lou Reed experimentado drogas novas e transformado a sua guitarra e a sua voz em armas de assalto? Teria John Cale percebido que a sua função nos Velvet era destruir criativamente aquilo que Lou Reed fazia? Teriam tido consciência de que a voz de Nico, de tão suave que era, precisava daquela electricidade toda à volta para que aquilo não fosse uma lamechice (mesmo que feita de poemas sado-maso) joanbaeziana pegada?... Não interessa. O que interessa é que os VU mudaram, para bem do rock e de todos nós, e no seu álbum de 1967 lançaram mil sementes ao vento: o glam, o punk, o noise, o rock sónico, o arty...

Talvez não seja completamente comparável, mas a verdade é que as maquetas das canções de António Variações agora reveladas em disco criam o mesmo efeito de surpresa que se tem quando se ouvem os esquissos folk de Lou Reed. Mas com uma diferença, fundamental: nas maquetas (nos extractos das maquetas) de Variações já estão todos os caminhos que a sua música poderia abraçar: a música tradicional do Minho, o fado, o disco-sound, a pop, o experimentalismo... E que abraçou, de facto, misturando tudo isto nas suas canções. Não admira, visto à distância de mais de 25 anos, que os responsáveis da Valentim de Carvalho que contrataram António Rodrigues Ribeiro não soubessem o que fazer com ele em termos artísticos. Variações podia ter sido um bom cantor de fado. Podia ter sido um bom intérprete de folclore. Podia ter sido um cantor romântico. Felizmente, para ele e para nós, aconteceu na altura uma revolução na música portuguesa: o «boom» do rock português, de onde saíram os acólitos perfeitos para as canções de António: no primeiro single por ele editado, com «Povo Que Lavas no Rio» (versão do fado de Amália) e «Estou Além», Variações tem como produtores Nuno Rodrigues (um dos pioneiros, na Banda do Casaco, do cruzamento da música tradicional e da modernidade) e Ricardo Camacho (produtor que iria, depois, contribuir na Sétima Legião para cruzamentos semelhantes). Como no álbum «Anjo da Guarda» teria Tóli e Vítor Rua, ambos dos GNR, a transportar as suas canções para a desejada (e por ele mitificada) Nova Iorque, e no álbum «Dar e Receber» teria Pedro Ayres Magalhães e Carlos Maria Trindade, que nos Heróis do Mar também iam, em partes mais ou menos iguais, às raízes da música portuguesa e ao que de mais novo se fazia na música de inícios dos anos 80. E isto não quer dizer que os outros nomes que são para aqui chamados tenham influenciado decisivamente o rumo da música de Variações: não, a ideia de cruzar «Braga e Nova Iorque» - que ele deu como mote para os seus discos quatro anos antes de ter gravado o primeiro – já aqui está, bem presente, nas maquetas reveladas em «A História de António Variações». Extractos das maquetas originais, gravadas por Variações, neste álbum acompanhadas pelas suas versões finais, de estúdio, extensão lógica e acabada das ideias esboçadas nas maquetas. Assim como já lá estão os seus poemas, geniais, que devem tanto a António Aleixo como ao cancioneiro popular do norte de Portugal e à sua própria revelação, em divã de psicólogo, de uma Culpa que o iria perseguir até ao fim da vida.

O álbum (duplo) abre com o absolutamente inédito em disco «Toma o Comprimido» (o primeiro tema que apresentou publicamente, num programa de TV de Júlio Isidro), canção excelente mas assassinada por uma instrumentação hard-rock de garagem. Mas as curiosidades maiores são mesmo os pedaços de maquetas (que antecedem, no alinhamento do álbum, as versões de estúdio já conhecidas) como «Povo Que Lavas no Rio», «O Corpo É Que Paga», «Linha-Vida» (estas só com voz e caixa-de-ritmos), «Quando Fala Um Português» (com voz, guitarra e caixa-de-ritmos), «Sempre Ausente» e «Voz-Amália-de-Nós» (só voz), «É P’ra Amanhã» (esta com banda e em balanço reggae), «Deolinda de Jesus» (tema que apareceria no segundo álbum; aqui só com voz e guitarra, em jeito baladeiro). No CD-1 também se inclui o tema «Anjinho da Guarda», que saltou da edição em CD do álbum «Anjo da Guarda» (para dar lugar aos dois temas do primeiro single) e uma versão alternativa (com banda e interpretada ao vivo no Rock Rendez Vous – Variações diz «eu sou um anjo bom, mas não sou um anjo protector; eu é que preciso de protecção»).

O CD-2 corresponde ao segundo álbum de Variações, «Dar e Receber», e respectivas maquetas - «Perdi a Memória», «Canção de Engate», «Canção», «Dar e Receber» e «Quem Feio Ama» (ambas com voz e estalos de dedos), «Que Pena Ser Vigarista» (voz e... guitarra portuguesa), «Olhei Para Trás» (voz e guitarra), «Erva Daninha Alastrar» (apenas um intróito gravado ao vivo, com a deliciosa frase: «espero que também sejam ervas daninhas; odeio erva-doce») e «Minha Cara Sem Fronteiras» (maqueta com voz, coros e guitarra do tema que não apareceu no LP mas viria a integrar o CD «Dar e Receber») - e a versões de temas dados a conhecer recentemente pelos Humanos como «Não me Consumas» (com banda), «Muda de Vida» (com guitarra e base rítmica), «Maria Albertina» (só com caixa-de-ritmos) e «Quero É Viver» (com órgão manhoso e caixa-de-ritmos), mas já com as linhas melódicas bem definidas – e em que os Humanos repegariam muito bem. Um documento único. (8/10)

18 agosto, 2006

June Tabor - N. Sra. da Folk


Comprei há muitos meses a caixa de quatro CDs «Always», de June Tabor, mas só agora tive tempo de a ouvir de seguida e na íntegra, com calma, paixão e disponibilidade mental. E é maravilhoso «assistir», assim, ao longo de mais de 60 canções, ao percurso da maior cantora folk das ilhas britânicas, a solo ou em múltiplas colaborações (com Martin Simpson, com Richard Thompson, com Maddy Prior nas Silly Sisters, com a Oysterband, com os Filarfolket...). Em sua honra, aqui fica a recuperação de uma entrevista publicada no BLITZ em Novembro do ano passado, a propósito da edição do seu álbum «At The Wood's Heart» e da sua vinda ao SET de Aveiro.


JUNE TABOR
O AMOR É UNIVERSAL

Mais do que uma cantora folk, June Tabor é uma cantora de todas as músicas, de canções de todos os tempos e lugares. E dos sentimentos, como o Amor, em «At The Wood's Heart», o seu novo álbum. Esta semana, June Tabor estará em Aveiro. Antes, falou ao BLITZ.

Em discos recentes cantou sobre rosas (em «Rosa Mundi») e sobre cavalos (em «An Echo of Hooves»). Agora, no seu novo álbum, «At The Wood's Heart», canta principalmente sobre o amor. Para si, o amor é mais como uma rosa ou como um cavalo?

Depende, se alguém estiver apaixonado por um cavalo... (risos). Mas, definitivamente, comparo mais o amor a uma rosa. À sua beleza mas também aos espinhos que nos ferem os dedos. A rosa é beleza e é sofrimento, tal como o amor... E «An Echo of Hooves» não era, na realidade, sobre cavalos. Eram contos e canções tradicionais de Inglaterra, Escócia, e muitas dessas canções falam, por coincidência, de cavalos...

Muitas das canções do seu novo álbum foram compostas há séculos. Acredita que o amor é um sentimento que se altera ao longo do tempo - de geração para geração, de século para século - ou nem por isso?

Não acredito que mude. A maneira como sentimos e escrevemos o amor ao longo do tempo tem sido sempre igual. Há quinhentos anos atrás era igual ao que é hoje: esta sensação de alegria, ansiedade, de sofrimento quando as coisas não correm bem. Pode-se falar do amor de maneiras diferentes, mas o sentimento é sempre o mesmo. E também é igual de país para país, de cultura para cultura, de língua para língua... E de pessoa para pessoa. Quando eu estou apaixonada, acredito que todas as pessoas apaixonadas tenham o mesmo sentimento que eu. É universal.

Na capa e no livreto do disco, há fotos de um jardim, anjos, uma imagem de Buda. Mas o álbum não fala só de paz e harmonia...

Não. Na realidade, essas fotos foram tiradas perto da casa em que o álbum foi gravado e são uma maneira de mostrar o lado bom do amor. E há canções no álbum que falam da alegria e da paz que uma pessoa sente quando o amor dá certo. Como diz a primeira canção, «The Banks of the Sweet Primrose»: não desesperes, por muitas nuvens que haja de manhã, o sol está aí e há-de aparecer...

Porque é que incluiu neste álbum algumas canções mais contemporâneas como um tema de Duke Ellington, «Do Nothing 'Til You Hear From Me», ou um do francês Gabriel Yacoub, «Les Choses les Plus Simples»?

Não dou muita importância a de onde vêm as canções. Não têm que ser canções tradicionais... Se contarem uma boa história, se forem boas, se me disserem algo importante, eu canto-as. Podem ser canções de diferentes estilos, podem ter um ano ou quinhentos anos. E, depois, faço-as minhas - porque também passam a fazer parte de mim e dão-me tanto - e transmito-as à minha maneira às pessoas que me ouvem...

Tive exactamente essa sensação quando ouvi a sua interpretação de «Heart Like a Wheel», de Anna McGarrigle. Parece que aquela canção foi feita a pensar na sua voz...

Essa canção começou, de certa maneira, a fazer parte de mim e eu a fazer parte dessa canção. A Anna McGarrigle escreveu «Heart Like a Wheel» muito tempo antes de nós nos conhecermos, mas é uma canção tão forte, sobre o amor, sobre a dor que o amor provoca no coração, que quando eu a ouvi senti-a como minha. É uma canção muito pessoal da Anna, mas senti que houve ali uma transferência...

Há pouco mais de um ano gravou uma versão - com a Oysterband (para o álbum «The Big Session») -, de «Love Will Tear Us Apart», dos Joy Division. Acha que essa canção também encaixaria bem em «At The Wood's Heart»?

Sim, absolutamente. Se não a tivesse gravado nessas sessões [Nota: que juntaram, para além da Oysterband e Tabor, o duo americano The Handsome Family e Jim Moray, entre outros], de certeza que a incluiria neste álbum. É uma canção extraordinária. Há milhões de canções sobre o amor e só algumas que dizem algo que ainda não tinha sido dito antes. «Love Will Tear Us Apart» é uma delas. E sempre que oiço essa canção descubro uma coisa nova...

Neste álbum tocam alguns músicos fantásticos como Martin Simpson [guitarrista que colaborou com June Tabor em álbuns emblemáticos da cantora nos anos 80, como «A Cut Above», «Abyssinians» e «Aqaba»] ou Andy Cutting [em concertina]. É importante estar sempre rodeada pelos melhores músicos?

Oh sim! E tenho tanta sorte por poder trabalhar com estes músicos tão bons... O que eles fazem é tão ou mais importante do que aquilo que eu faço. O seu contributo, o que eles trazem para a minha música, é fundamental. Eu preciso dos melhores para o meu trabalho e tenho os melhores... Não destaco ninguém - porque eles são todos tão bons - mas a maneira como eles se preocupam comigo, o seu modo de me envolverem instrumentalmente, é algo de maravilhoso.

Numa entrevista recente, Martin Simpson disse: «Com June Tabor aprendi a flexibilidade. Quando se trabalha com uma cantora tão boa quanto June, não se fazem perguntas sobre o que ela vai fazer a seguir. Ela tem uma maneira de cantar "desacompanhada" » [desacompanhada no sentido de livre e difícil de acompanhar instrumentalmente]». Concorda com ele?

Sim (risos). É verdade que tenho esse lado do improviso e do imprevisto. Quando começo a cantar, o instrumentista tem, às vezes, que ir atrás de mim. Mas um bom músico acompanhador, e o Martin é um guitarrista que já me acompanhou muitas vezes, pode adivinhar as mudanças que eu vou fazer. Às vezes não é só ouvir, é olhar: posso fazer um movimento quase imperceptível com o peito e ele e os outros músicos que me acompanham percebem o que vou fazer a seguir. É uma grande arte, da parte deles. E são raros os músicos assim...

Este ano editou uma caixa com quatro CDs, «Always». Acha que é uma boa fotografia - ou um bom filme - da sua carreira?

Oh sim! E é importante porque mostra muitas coisas que não estão nos meus álbuns, principalmente as diferentes interpretações de canções em concerto. Os concertos são uma realidade diferente do meu trabalho porque, ao vivo, as canções mudam. A minha interpretação, os músicos envolvidos... E é uma edição que me deixa muito orgulhosa!

Falou agora mesmo da importância dos concertos: o que é que podemos esperar do seu concerto em Aveiro?

Vou cantar algumas canções do novo álbum mas também canções que gravei anteriormente e algumas que não se encontram em disco nenhum. E vão estar comigo alguns dos músicos que gravaram o álbum: Huw Warren no piano, Andy Cutting na concertina, Mark Emerson em violino e viola d'arco e Tim Harries em contrabaixo. Estamos a preparar um alinhamento especial, com algumas coisas inesperadas, especialmente para Portugal.

No passado teve alguns projectos lendários como a sua antiga colaboração com a Oysterband ou o duo Silly Sisters, com Maddy Prior. Há algumas coisas diferentes que queira fazer no futuro?

Gostava de voltar a cantar com um grupo a capella masculino, Coope, Boyes & Simpson, com quem trabalhei uma vez no passado. São um grupo espantoso, de três vozes masculinas, e resultou muito bem. Gostava de fazer mais coisas com eles porque foi uma experiência especial. E gostava de trabalhar novamente com uma orquestra, num projecto que junta canções, poemas e narrativas do sudoeste de Inglaterra. E mais coisas. Ainda tenho tantas coisas para fazer...

17 agosto, 2006

Folk em Portugal - Fornada Primavera/Verão


Três álbuns de grupos portugueses - Lúmen (na foto), Arrefole e Ginga - com várias coisas a uni-los: a busca activa das raízes da música tradicional portuguesa e algumas pontes lançadas à folk dita «céltica»; a coincidência de dois deles serem editados pela Açor - a activa editora de Emiliano Toste que tantos álbuns desta área tem lançado - e de todos serem distribuídos pela Megamúsica, distribuidora que representa algumas das maiores editoras estrangeiras de world e de folk em Portugal. E algumas a separá-los: o gosto, o tipo de abordagem e a qualidade final dos resultados. Mas, independentemente das diferenças, uma coisa é certa: ainda bem que estes discos existem.

LÚMEN
«FOGO DANÇANTE»
Ed. de Autor/Megamúsica

Deste lote de álbuns, «Fogo Dançante», dos estreantes Lúmen, é claramente o melhor. Nascidos no Porto, das cinzas dos Roldana Folk (e, mais remotamente, dos Frei Fado d'El Rei), os Lúmen mostram aqui uma música madura apesar do pouco tempo que têm como banda, com algumas versões de temas tradicionais muito bem conseguidas - como o tema galego «Airiños», o tradicional «A Saia da Carolina» e a francesa adaptada «Variando na Sansonette» -; muitos originais bastante interessantes - com destaque para «Donari-Ára» (com uma bandola a levar a canção para sul, na direcção do fado e dos ouds árabes, e uma gaita a levá-la para a Galiza), a celti-prog-fado «A Noite dos Deuses», o divertidíssimo «Ska Celta», que é o que o título diz mas também tem pozinhos de Balcãs, de klezmer e de música turca, o exercício punk-transmontano muito bem conseguido «Escuta a Redondilha» ou o lindíssimo «Dança dos Vasos» -; um excelente domínio dos instrumentos (a gaita-de-foles soa sempre muito, muitíssimo, bem; o acordeão é óptimo; as percussões excelentes...) e muito bom gosto nos arranjos. Elo mais fraco disto tudo: a voz de Cristina Bacelar, que parece não se sentir à vontade nestes temas. (8/10)

ARREFOLE
«VEÍCULO CLIMATIZADO»
Açor/Megamúsica

Não tão bom quanto o dos Lúmen, mas muito interessante é o álbum dos Arrefole, grupo do Porto, facto que é festejado claramente nos interlúdios dos temas: gravações efectuadas num comboio, nas ruas, num barco (rabelo?) ou no metro da Invicta. Fazendo uso de um naipe de instrumentos alargado e de várias proveniências - percussões árabes, africanas, irlandesas e portuguesas, bouzoukis, gaitas, flautas, bandolins, cavaquinhos... -, os Arrefole viajam por uma música portuguesa imaginária que tem as suas raízes numa Idade Média de influência mourisca, judia e dos povos do Norte: os bretões, os escoceses, os leoneses, os irmãos mirandeses e galegos... Apesar de bastante homogéneo, no álbum destacam-se o medley de tradicionais que deu origem a «Barqueiros», o original «Metro-nomo», o «celtibero» «Gutlics», uma sentida homenagem a Júlio Pereira em... «Júlio Pereira» (cuja influência é notória noutros temas, nomeadamente em «Arrebirachula») ou o quase Pascal Comelade «Caixinha de Música». Com uma assinalável variedade tímbrica de tema para tema, a música dos Arrefole só se vai abaixo quando tem que se adaptar às vozes utilizadas (à semelhança do que acontece com os Lúmen), excepto, curiosamente, num bom tema só com vozes, o tradicional minhoto «A Minha Saia Velhinha». (6/10)


GINGA
«CELEBRATIO»
Açor/Megamúsica

Claramente o álbum mais fraco desta fornada, o disco dos conimbricenses Ginga perde-se - demasiadas vezes - naquilo que o folk-rock tem de pior: barragens de guitarras eléctricas despropositadas (e alguns solos de guitar-hero seventies-FM), longos exercícios de rock sinfónico, teclados prog-lounge, uma bateria quadradinha, quadradinha... Tudo isto aplicado a tradicionais mais ou menos óbvios de várias zonas do país («Farrapeira», «Pingacho», «Róró», «Milho Verde», «Este Linho É Mourisco», «Chegadinho», «Tempo da Mocidade», «As Armas do Meu Adufe»...). Há coisas boas no álbum?... Há, claro que há: a concertina não é nada má, a gaita-de-foles e os cavaquinhos (quando aparecem) soam quase sempre bem, o violino do convidado Manuel Rocha (da Brigada Victor Jara) é uma maravilha, há uma canção ou outra que está em bom nível, como «Borboleta Branca» ou «Agora Vou-me Deitar». Mas os momentos mais fracos são demasiados e há mesmo algumas coisas bastante penosas de ouvir como a voz de Isabel Silvestre a correr atrás da banda em «Laurinda». (4/10)