23 agosto, 2006

Tom Zé - Estudando a Personagem


Tom Zé - um dos nomes míticos do tropicalismo - deu vários concertos extraordinários nos últimos meses em Portugal. Concertos-concertos mesmo ou os geniais concertos-palestras como aquele/aquela que apresentou na Casa da Música, Porto (e noutros locais), na abertura do Festival Mestiço. Aqui, recupera-se uma entrevista com Tom Zé publicada originalmente no BLITZ em Junho do ano passado tendo como mote o álbum «Estudando o Pagode – Na Opereta SegregaMulher e Amor».


TOM ZÉ
MEU XARÁ!

Tom Zé é um homem surpreendente. Com fama de louco ou de alguém que tomou um ácido em finais dos anos 60 – um ácido que ainda não foi completamente expulso pelo organismo –, em conversa Tom Zé revela-se um homem inteligentíssimo, muito culto, hiper-simpático e com um discurso absolutamente coerente com a obra que assina. A última, o álbum conceitual «Estudando o Pagode – Na Opereta SegregaMulher e Amor», critica o papel secundário (ou secundarizado) das mulheres na sociedade ao mesmo tempo que fala de religião, de política, de História e... de amor. Os mesmos temas em que repega nesta conversa. Uma conversa em que o compositor e cantor tratou o entrevistador (António José, tal como ele) por «meu xará» (carinhoso termo brasileiro para «homónimo»).

Vou ler-lhe um excerto da «1ª Carta de S.Paulo aos Coríntios» (Cap. 34, vers. 36), que diz assim: «Calem-se as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido falar; mostrem-se submissas, como diz a própria Lei. Se querem aprender alguma coisa, perguntem-no em casa aos seus maridos». Quer comentar?


Estou até arrepiado com isso... Isso só demonstra como o machismo está tão incrustado nas religiões. Essa é uma frase trágica, que parece dita por um coro grego falando uma coisa absurda. Parece saída das obras do Ésquilo, que era o mais religioso dos autores trágicos gregos. Que coisa terrível! Que estigma!

Tenho aqui outra frase que lhe peço para comentar, esta do «Alcorão», que tem um capítulo, o 4, só dedicado às mulheres. Esta diz assim: «Se receardes não poder tratar os órfãos com equidade, desposai tantas mulheres quantas quiserdes: duas ou três ou quatro. Contudo, se não puderdes manter igualdade entre elas, então desposai uma só ou limitai-vos às cativas que por direito possuis»...

Houve um tempo em que havia uma convivência harmoniosa entre o homem e a mulher, mas já há muitos séculos que isso acabou. E todas as grandes religiões segregam a mulher. Essa frase do «Alcorão» parece indicar que todas as mulheres são escravas do homem, já que podem ser escolhidas por ele. Mas quero fazer uma ressalva a este comentário ao «Alcorão»: eu não conheço bem esse livro e, por isso, os meus comentários podem ser falíveis. Já em relação à «Bíblia», eu posso comentar porque nasci católico.

E para além de ter nascido católico, já disse em várias entrevistas, a propósito de Estudando o Pagode, que nasceu mulher...

Sim... quando nasci não o sabia, mas eu nasci mulher. E a ideia para este álbum vem desde que eu nasci (risos). A gente é educado como homem, mas toda a minha maneira de ver - a igualdade, o respeito mútuo - é mais da mulher do que do homem. Também tenho traços machistas e prepotentes, mas a coisa mais profunda da minha personalidade é a tentativa de ter uma convivência harmoniosa com as mulheres, uma característica que é delas. Sou casado há 35 anos e tive que modificar muitos conceitos e muitos procedimentos para dar alguma tranquilidade moral à minha mulher. Aprendi muito com ela, principalmente nos últimos anos. E quando comecei a preparar um novo disco, em 2000, aconteceram vários casos de segregação da mulher, de homossexuais e lésbicas, e também a invasão do Iraque pelo Bush, que é também uma prepotência machista americana. Há bocado falou do «Alcorão» e é impressionante como tanta gente – artistas, desportistas... – se converteram nos últimos anos ao islamismo, talvez porque o Ocidente, nomeadamente os Estados Unidos, já não tem uma religião. O vosso grande poeta Fernando Pessoa, numa carta a Sá de Miranda escreveu que «não estou a dizer nada no meu juízo próprio porque acabei de traduzir um livro da Blavatsky [Nota: Helena Blavatsky, escritora e pensadora esotérica/teosófica] e estou num estado de transe». O que prova, mais uma vez, que a religião está afastada da civilização ocidental. O catolicismo está enfraquecido por uma igreja arbitrária e prepotente. E o disco fala da mulher de um ponto de vista religioso...

Não é por acaso, portanto, que o seu novo disco começa com uma oração, a «Avé Maria», adaptada. Uma oração que é dedicada a uma mulher, Maria, não por ser uma mulher mas por ter sido a mãe de Jesus Cristo, filho de Deus...

Correcto. Mas faço também isso porque – segundo muitos mitos religiosos e esotéricos - só a mulher pode levar o homem ao Divino. A mulher é a intermediária para a salvação...


Mas, ao mesmo tempo, é também – segundo alguns relatos religiosos, nomeadamente no livro do «Génesis», da Bíblia – quem leva o homem ao pecado...

E é aí que começa a segregação! Mas também se pode dizer que foi a mulher que nos levou à Ciência. Já pensou se o mundo fosse como estava programado sendo o Éden [NR: o Paraíso]? Nada sairia do lugar... Andei a ler as coisas de Fernando Pessoa sobre esoterismo, mas é difícil ler uma pessoa como ele e juntar todas as ideias. Mas há uma ideia dele fácil de explicar: a de que o Deus de Abraão, que hoje reina sobre quase todo o planeta Terra (Nota: Tom Zé refere-se às três grandes religiões que descendem deste tronco comum: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo), é um grande poema inventado por um homem. Quando Abraão foge de Ur, na Babilónia, foge de deuses como Baal ou a lua, e chama ao seu deus O Altíssimo. E este Deus já derrotou todos os outros deuses. O Deus de Irará [Nota: cidade do interior do estado da Bahia], a minha terra, é o mesmo Deus de Roma. É o Deus de Abraão... O Deus do «Alcorão» é o mesmo. O Deus dos protestantes – de Lutero e de Calvino – é o mesmo. E aqui há uma nuance: as mulheres são mais admitidas nas religiões protestantes. Os pastores protestantes têm direito ao casamento...

À medida que o disco avança há uma evolução do «papel» da mulher. Passa de mulher segregada, submissa, escravizada, a um patamar de igualdade... Acha que essa igualdade existe na actualidade ou, de facto, não existe e foi por isso que fez este disco?

Para lhe responder, vou-lhe falar de um conceito filosófico de uma pessoa do PT [Nota: Partido dos Trabalhadores] brasileiro, que já morreu, o Professor Paulo Freire: ele era brilhante, intelectualmente, e ele tem um conceito chamado «hospedar o opressor», que significa «de tanto conhecer o método do opressor, de tanto ver o opressor agir, de tanto conhecer a técnica intrínseca do procedimento do opressor, no momento em que o oprimido – neste caso a mulher -, aparece como protagonista, age igual ao opressor, porque é a única técnica que os oprimidos conhecem». Respondi à sua pergunta indo lá adiante, como se fosse uma jogada de xadrez um pouco estranha, mas dá para entender a ideia. O próprio PT neste momento está agindo quase como o opressor. Eu defendi Lula [Nota: Lula da Silva, líder do PT e presidente do Brasil] até há pouco tempo, quando ele usou métodos para suspender uma investigação de uma corrupção terrível. O PT está hospedando o opressor... Isto para dizer que a mulher precisa de ter cuidado para, na hora em que tiver oportunidade de ter o comando, não hospedar o opressor.

Porque é que escolheu um género musical tão maltratado e tão desconsiderado como o pagode para charneira sonora deste disco?

O Brasil é um país de pobres e de ricos. Os excluídos, aqui, estão numa situação dolorosa, parecendo que nem são mais gente humana. E são submetidos a uma cultura de massas degradante, terrível. Não têm escola e não podem fazer uma música melhor do que a que fazem. E aqui no Brasil não se pode confundir pobreza com burrice, porque foi das classes pobres que saíram as melhores manifestações populares de música do nosso país. Escolhi o pagode porque quis dizer que eles estão submetidos a uma escravidão intelectual, a uma segregação do «know how» básico que é a alfabetização. E um pouco também para dizer que se pode pegar em qualquer género do mais simples e engrandecê-lo, desde que você aumente as opções de conhecimento estético, de variação, de criação, de uso dos instrumentos... Por exemplo, neste disco fiz uma orquestrinha de folhas de ficus – a folha do ficus pode ser tocada dobrando-se-lhe a ponta e soprando por ela. É um instrumento de crianças, muito irritante, e nunca ninguém tinha pensado em usar esse sonzinho. Mas com a tecnologia de hoje usei as folhas de ficus e fiz uma escala de duas oitavas com elas. O disco todo é acompanhado por esse instrumento infantil! O resultado final foge da escala diatónica ocidental, é mais glissada, e remete para os cristãos cantando nas catacumbas, antes da Igreja ter estabelecido o cantochão na Idade Média. Quis, com isso, criar uma espécie de um mundo primal. Também usei pentes com papel de celofane e outros instrumentos infantis.

A utilização do pagode não está em contradição com as letras do seu disco?... Não conheço muito pagode, mas do pagode que chega a Portugal – a Turma do Pagode e outros grupos --, as letras...

...Segregam a mulher. São letras machistíssimas, horrorosas. Mas veja: o pagode é segregado, ele próprio segrega a mulher... E esse foi um dos motivos para escolher o pagode. E aí fica um caldeirão bastante interessante. Tenho o sonho, a esperança, que este seja um disco-escola para os pagodeiros ou, então, para as crianças que crescem no meio do pagode. E pode haver alguma que pensa, ouvindo este disco, «eh pá, ele brinca com uma porção de coisas. Eu também posso brincar». Tenho essa esperança.

Mas no meio do pagode aparecem outras referências... Por exemplo, cita os Beatles, o Vinícius de Moraes e faz um trocadilho com as «Mulheres de Atenas», de Chico Buarque, no libretto, com «Mulheres de Apenas»...

Correcto. A minha canção dedicada aos Beatles é aquilo a que eu chamo «plágio-arrastão-combinação». E há mesmo esse trocadilho com as «Mulheres de Atenas», numa referência ao Chico Buarque e também ao Artur Bual. Por outro lado, a República de Ipanema, da qual Vinícius de Moraes foi um dos grandes reis, era terrivelmente machista. Vinícius, com aquele encanto, e ele era um encanto de conquistador, enganou as mulheres do Brasil e talvez de Portugal durante muito tempo com aquele negócio do «(amor) que seja infinito enquanto dure»! Que filho de puta! Que bandidão! É o mesmo que dizer «o meu amor é eterno, minha filha; para a semana dou-lhe um pontapé»...

Não é estranho que um homem que escreveu uma coisa fabulosa, de esquerda, chamada «O Operário em Construção», tenha, por outro lado, essa postura machista?

Acabei de falar em «hospedar o opressor»...

OK, está explicado...

Eu não acho que o meu disco seja feminista. É um disco masculinista, porque estou dizendo ao homem «veja o que temos perdido por tratarmos mal as mulheres». Pode-se «comprar» a mulher com o casamento, a sedução, até o dinheiro... Mas não se pode comprar a sua intimidade, o seu segredo mais secreto. E quando isso acontece, o homem é como um mendigo. É por isso que eu, nas fotos do disco e nos concertos, e a banda em palco nos vestimos de mendigos. Quando a mulher não tem confiança no homem como é que mostra a sua intimidade profunda, o gozo [NR: o orgasmo], para o seu secular inimigo em potencial? Conheci muitas mulheres – não sou um conquistador, mas fui solteiro até aos 32 anos - que não gozavam e eu até pensava que era um amante pouco hábil. Mas recentemente saiu um estudo do Departamento de Sexologia da USP [Nota: Universidade de S.Paulo], que revela que 70 por cento das moças consultadas, entre os 15 e os 25 anos, se queixaram que, durante o acto sexual, não são devidamente excitadas – os machos não ligam para isso –, que sofrem dores na altura da penetração e que o cara levanta e deixa ela lá sem gozar. Para além disso, não têm coragem de dizer que não gozaram porque fica parecendo que são prostitutas. E isso acontece em 2005!

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