19 agosto, 2006

António Variações - Antes da World Music


Às vezes gosto de imaginar o que teria acontecido a um artista como António Variações no circuito da chamada world music. Se não tivesse morrido (em meados dos anos 80) exactamente na altura em que se começa a assistir ao nascimento desse circuito, através de editoras como a Real World ou a Luaka Bop e de uma rede de festivais e concertos então em fase de desenvolvimento. Um circuito que os Madredeus apanharam - e ainda apanham, bem - quase logo no ínício. Pode estranhar-se: António Variações artista «world»?... Mas por que não? Com a sua fusão de fado, música tradicional portuguesa e várias tendências da pop, Variações não estava - há 25 anos - muito longe de tendências fusionistas que invadem o actual espectro das «músicas do mundo». Estava até muito perto... e, acrescente-se, muito antes deles todos. Aqui fica a recuperação da crítica a «A História de António Variações», colectânea que agrupa muitos temas emblemáticos do cantor e compositor e extractos de maquetas que lhes deram origem, publicada originalmente no BLITZ em Março deste ano.


CORTE DE CABELO

ANTÓNIO VARIAÇÕES
«A HISTÓRIA DE ANTÓNIO VARIAÇÕES – ENTRE BRAGA E NOVA IORQUE»
EMI Music Portugal

Maquetas de António Variações reveladas pela primeira vez em álbum. E o que delas resultou. Ou Variações a revelar a pele escondida por baixo de barbas e cabelos de mil cores.

Quando se ouvem as maquetas das primeiras canções dos Velvet Underground incluídas na caixa «Peel Slowly and See», perguntamo-nos que raio de bicho mordeu os VU para mudarem tanto a sua sonoridade entre as gravações das maquetas (que mostram canções folk, na linha de Bob Dylan) e as gravações do seu primeiro álbum, «The Velvet Underground & Nico». Teria sido a entrada da bateria selvagem daquele pedaço de mulher chamado Moe Tucker? Teria Lou Reed experimentado drogas novas e transformado a sua guitarra e a sua voz em armas de assalto? Teria John Cale percebido que a sua função nos Velvet era destruir criativamente aquilo que Lou Reed fazia? Teriam tido consciência de que a voz de Nico, de tão suave que era, precisava daquela electricidade toda à volta para que aquilo não fosse uma lamechice (mesmo que feita de poemas sado-maso) joanbaeziana pegada?... Não interessa. O que interessa é que os VU mudaram, para bem do rock e de todos nós, e no seu álbum de 1967 lançaram mil sementes ao vento: o glam, o punk, o noise, o rock sónico, o arty...

Talvez não seja completamente comparável, mas a verdade é que as maquetas das canções de António Variações agora reveladas em disco criam o mesmo efeito de surpresa que se tem quando se ouvem os esquissos folk de Lou Reed. Mas com uma diferença, fundamental: nas maquetas (nos extractos das maquetas) de Variações já estão todos os caminhos que a sua música poderia abraçar: a música tradicional do Minho, o fado, o disco-sound, a pop, o experimentalismo... E que abraçou, de facto, misturando tudo isto nas suas canções. Não admira, visto à distância de mais de 25 anos, que os responsáveis da Valentim de Carvalho que contrataram António Rodrigues Ribeiro não soubessem o que fazer com ele em termos artísticos. Variações podia ter sido um bom cantor de fado. Podia ter sido um bom intérprete de folclore. Podia ter sido um cantor romântico. Felizmente, para ele e para nós, aconteceu na altura uma revolução na música portuguesa: o «boom» do rock português, de onde saíram os acólitos perfeitos para as canções de António: no primeiro single por ele editado, com «Povo Que Lavas no Rio» (versão do fado de Amália) e «Estou Além», Variações tem como produtores Nuno Rodrigues (um dos pioneiros, na Banda do Casaco, do cruzamento da música tradicional e da modernidade) e Ricardo Camacho (produtor que iria, depois, contribuir na Sétima Legião para cruzamentos semelhantes). Como no álbum «Anjo da Guarda» teria Tóli e Vítor Rua, ambos dos GNR, a transportar as suas canções para a desejada (e por ele mitificada) Nova Iorque, e no álbum «Dar e Receber» teria Pedro Ayres Magalhães e Carlos Maria Trindade, que nos Heróis do Mar também iam, em partes mais ou menos iguais, às raízes da música portuguesa e ao que de mais novo se fazia na música de inícios dos anos 80. E isto não quer dizer que os outros nomes que são para aqui chamados tenham influenciado decisivamente o rumo da música de Variações: não, a ideia de cruzar «Braga e Nova Iorque» - que ele deu como mote para os seus discos quatro anos antes de ter gravado o primeiro – já aqui está, bem presente, nas maquetas reveladas em «A História de António Variações». Extractos das maquetas originais, gravadas por Variações, neste álbum acompanhadas pelas suas versões finais, de estúdio, extensão lógica e acabada das ideias esboçadas nas maquetas. Assim como já lá estão os seus poemas, geniais, que devem tanto a António Aleixo como ao cancioneiro popular do norte de Portugal e à sua própria revelação, em divã de psicólogo, de uma Culpa que o iria perseguir até ao fim da vida.

O álbum (duplo) abre com o absolutamente inédito em disco «Toma o Comprimido» (o primeiro tema que apresentou publicamente, num programa de TV de Júlio Isidro), canção excelente mas assassinada por uma instrumentação hard-rock de garagem. Mas as curiosidades maiores são mesmo os pedaços de maquetas (que antecedem, no alinhamento do álbum, as versões de estúdio já conhecidas) como «Povo Que Lavas no Rio», «O Corpo É Que Paga», «Linha-Vida» (estas só com voz e caixa-de-ritmos), «Quando Fala Um Português» (com voz, guitarra e caixa-de-ritmos), «Sempre Ausente» e «Voz-Amália-de-Nós» (só voz), «É P’ra Amanhã» (esta com banda e em balanço reggae), «Deolinda de Jesus» (tema que apareceria no segundo álbum; aqui só com voz e guitarra, em jeito baladeiro). No CD-1 também se inclui o tema «Anjinho da Guarda», que saltou da edição em CD do álbum «Anjo da Guarda» (para dar lugar aos dois temas do primeiro single) e uma versão alternativa (com banda e interpretada ao vivo no Rock Rendez Vous – Variações diz «eu sou um anjo bom, mas não sou um anjo protector; eu é que preciso de protecção»).

O CD-2 corresponde ao segundo álbum de Variações, «Dar e Receber», e respectivas maquetas - «Perdi a Memória», «Canção de Engate», «Canção», «Dar e Receber» e «Quem Feio Ama» (ambas com voz e estalos de dedos), «Que Pena Ser Vigarista» (voz e... guitarra portuguesa), «Olhei Para Trás» (voz e guitarra), «Erva Daninha Alastrar» (apenas um intróito gravado ao vivo, com a deliciosa frase: «espero que também sejam ervas daninhas; odeio erva-doce») e «Minha Cara Sem Fronteiras» (maqueta com voz, coros e guitarra do tema que não apareceu no LP mas viria a integrar o CD «Dar e Receber») - e a versões de temas dados a conhecer recentemente pelos Humanos como «Não me Consumas» (com banda), «Muda de Vida» (com guitarra e base rítmica), «Maria Albertina» (só com caixa-de-ritmos) e «Quero É Viver» (com órgão manhoso e caixa-de-ritmos), mas já com as linhas melódicas bem definidas – e em que os Humanos repegariam muito bem. Um documento único. (8/10)

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por resumires aquilo q eu, ao som desse documento histórico(A História De António Variações),penso e sinto..Duvido q seja o único.Apesar de nem ser nascido quando este Mestre morreu, sinto aind aquilo q ele quis passar.E como tu,tb gostaria de ter conhecido um Portugal com António Variações mais uns anos valentes!!
Na sic noticías aquando do lançamento do disco dos Humanos falou-se num filme q contaria a vida de António Variações, espero q esse projecto vá avante, pk gostaria de descobrir o q se passou para ele dps de amsterdão ter adoptado aquele estilo absolutamente inovador e espectacular, se souberes a razão diz qq coisa...bem fika e continua a escrever cenas sobre ele.pode ser q ao conhecer a sua vida me ajude a mim tb a inovar!!:D