31 julho, 2006

FMM Sines 2006 (ou Isto Não É Uma Reportagem)


Flashs dispersos de seis dias no FMM (ou seja, daquilo de que me consigo lembrar, ao jeito «quem diz que se lembra dos anos 60 é porque não os viveu»):

- O set de DJ na segunda-feira correu muito melhor do que seria de esperar, atendendo a que era uma estreia absoluta. É uma sensação estranha, mas muito boa, ver dezenas de freaks a dançar à minha frente, depois de terem levado com uma bela ponta final do concerto dos Vaguement La Jungle... Eu e o Gonçalo acabámos por nos divertir imenso. Só foi pena o catering já estar fechado depois da nossa actuação (actuação?) movida a muitas águas e, no meu caso, cigarros, o que nos impediu de nos vingarmos violentamente depois em licores vários. (em resposta ao «comment» de Manel Calapez, que desapareceu misteriosamente nas profundezas deste blog sabe-se lá porquê, e aos outros que eventualmente também queiram saber...)

- Os licores, no entanto, não perderam pela demora. Um dia depois, a rapaziada do nº 3, 3º esq. - 5 gajos com algum jeito para a cozinha, e mais um, eu, a ver de longe -, decidiu improvisar um chili que tinha quase tantas malaguetas quanto feijão (e uns enchidos, arroz e couves para disfarçar). Estava delicioso, mas a actividade vulcânica da coisa era tal que o fogo, durante o jantar e nas horas que se seguiram, só conseguiu ser apagado à custa de três garrafas de tinto e várias palettes de cerveja. Ficámos a bezerrar por casa e nem fomos a Porto Covo ver os Dazkarieh e o Elisio Parra.

- Uma das vantagens de não se estar em trabalho num festival como o FMM de Sines é a quantidade de coisas que não é preciso levar para o recinto: uma caneta (ou duas, para o caso de uma falhar), o bloco-notas, o gravador das entrevistas e... alguns milhares de neurónios, os neurónios que nos obrigam a identificar ou tentar identificar imediatamente uma versão de um tema mais ou menos conhecido, ir depois confirmar à net o nome de alguns instrumentos estranhos, saber na perfeição o género ou sub-género musical em que os músicos estão a navegar em determinado momento. E esta sensação é muito boa!!!

- O FMM de Sines é conhecido como o melhor festival de world music do país. Mas o FMM também é, para além de um festival de world music, um festival de jazz... Ou da fusão dos dois universos (que já têm, em si, milhões de outros universos). Este ano houve jazz, ok, com muitos outros géneros à mistura, em Jacques Pellen e a sua «Celtic Procession», no trio de Rabih Abou-Khalil com o extraordinário pianista Joachim Kuhn e o baterista Jarrod Cagwin (um dos melhores concertos do festival), nos delirantes Alamaailman Vasarat (onde, ok, o jazz não podia faltar porque eles têm lá tudo, incluindo ainda klezmer, ska, speed-metal, ciganadas balcânicas, progs vários), nos Bad Plus (estava na cavaqueira nos bastidores e só reconheci, à distância, uma versão do tema-título de «Chariots of Fire», de Vangelis, mas o resto estava a soar bem), na música da extraordinária cantora iraquiana Farida (que substituiu Thomas Mapfumo... e encabeça este parágrafo, em foto de Mário Pires - ver o seu site Retorta, aqui nos links ao lado), na música circular de Trilok Gurtu (o músico que, provavelmente, fará desistir qualquer pessoa que o veja de alguma vez tentar tocar tablas, de tão bom que ele é!), e há jazz, mais do que devia, em Ivo Papasov (cujo ensaio-de-som, ouvido na praia ao lado às cinco da tarde foi muito melhor do que o concerto propriamente dito).

- Depois da experiência incendiária do primeiro jantar, a rapaziada do nº3, 3º esq., decidiu mudar de táctica e tentar descobrir um restaurante simpático na vila. E «descobrimos» (palavra que fica sempre bem dizer na terra do Vasco da Gama) o Jorge Russano, Churrasqueira, que tem uma garagem simpática ao lado, onde fomos principescamente tratados e servidos vários dias com espetadas, frangos enormes, bacalhaus assados, entremeadas a pingar uma gordura deliciosa, etc, etc, etc, tudo regado com um piri-piri violentíssimo... Pois.

- Últimos neurónios espremidos de onde pingam muito boas lembranças dos Gaiteiros de Lisboa (sim, deu outra vez para dois ex-BLITZ e um BLITZ voltarem ao mosh durante o «Trângulo Mângulo», como já é tradição), do para mim desconhecido mas muito bom rapper somali K'naan, da maravilha que é ouvir a kora de Toumani Diabaté (e de como foi curioso ouvir, apesar do resultado musical não ter sido especialmente brilhante, uma cantora de tonalidades fadistas e a cantar em português num dos temas finais - ver, sff, texto «O Fado Nasceu no Mali?», mais em baixo neste blog), do senegalês mas com muito gnawa à mistura Nuru Kane, da proposta agora normal mas há alguns anos ousada de misturar os cantos do Sahara com os blues e o psicadelismo de Mariem Hassan, da poesia bruta e lindíssima e da música rude da excelente surpresa que foram os brasileiros Cordel de Fogo Encantado, e do final de festa arrasador no sábado, já o sol tinha nascido, do Bailarico Sofisticado (três rapazes da rapaziada do nº3, 3º esq., estes não com algumas dezenas mas com muitas centenas de freaks a dançar à frente deles...).

- E outras, menos boas: o baterista Tony Allen (sim, eu sei que o afro-beat é muitas vezes assim mesmo, mas aquilo foi muito igual do princípio ao fim... com a ressalva, nota de, ok, reportagem, de que o senhor Allen, velhinho, velhinho - ele que foi baterista de Fela Kuti e que, quando foi despedido pelo patrão, este se viu obrigado a contratar três bateristas para o substituírem - ter andado a tocar saxofone com os donos dos djembés na praia, já passava das sete da manhã - informação que parte da rapaziada resistente do nº 3, 3º esq. passou à rapaziada que já estava a dormir a essa hora, via sms), Seun Kuti (não por ter sido igual do princípio ao fim, não foi, mas porque a sua música é demasiado igual à do pai, Fela Kuti, pecadilho em que não cai, e bem, Femi Kuti), e as... Varttina, cada vez mais uma quase vulgar banda pop e já não tanto os «passarinhos» deliciosos que há doze anos - foi há doze? - encantaram o Intercéltico do Porto.

- Ah!! Ganhei um didgeridoo de prenda, para juntar à minha colecção de instrumentos étnicos... Agora só me faltam umas tablas (ok, é melhor não...).

24 julho, 2006

Zeca Baleiro - Baladas Bem Embaladas


Estou quase de saída para Porto Côvo e Sines. Hoje à noite há estreia absoluta da dupla de DJs 2Mé & Prince Hip (é «private joke» ou já não tão «private» quanto isso)e o resto da semana é para usufruir do resto do festival, mesmo (ver posts relativos ao FMM lá mais em baixo, sff)... E, na semana seguinte, ainda sem certezas, sou capaz de ir ao Andanças (ver post sobre este festival também lá mais em baixo, sff, bis...). Isto quer dizer que este blog vai estar ao abandono durante uma semana (ou duas). Antes disso, deixo aqui a entrevista com o brasileiro Zeca Baleiro, publicada no BLITZ em Julho do ano passado e já referida noutro post lá em baixo (este não é preciso ver: é aquele em que se fala da Ruth Marlene). Do disco com as versões de temas portugueses é que ainda não se sabe nada...

ZECA BALEIRO
VÔ EMBALÁ(DA)

Ao quinto álbum, Zeca Baleiro dá-nos «Baladas do Asfalto & Outros Blues». Um álbum que pode ser visto como uma continuação de «Líricas» (o terceiro) e uma, digamos, pausa na loucura habitual. Baleiro de abalada para a balada bem embalada? Sim e não, como ele explica nesta entrevista.

Zeca Baleiro é um excelente conversador. Inteligente, divertido, sempre com a palavra certa na altura exacta. E defende a sua obra - neste caso, o álbum «Baladas do Asfalto & Outros Blues» - não como advogado em causa própria, mas mais como um pai a defender um filho. Um filho que, ainda por cima, tem uma paternidade mais repartida do que é habitual: foi feito a convite de dois produtores (Walter Costa e Dunga); algumas letras não são de Baleiro... Para o futuro próximo está previsto um álbum com versões de temas de artistas portugueses.

Pode dizer-se que, à semelhança de «Líricas», «Baladas do Asfalto & Outros Blues» é mais um disco de poesia do que de música?

Não; embora esses dois discos sejam primos. A edição de «Líricas» deveu-se à minha necessidade de meter um travão na grande exposição que estava a ter devido ao sucesso do «Vô Imbolá». Andava um pouco saturado. E o «Líricas» foi criticado porque não era o disco que a editora e o público esperavam de mim. Mas o «Líricas» acabou também por ser um êxito. E isso deu-me uma grande segurança no sentido de fazer o que eu quisesse. Como foi o caso deste novo álbum, que tem muito pouco a ver com o anterior [«Pet Shop Mundo Cão»]. E não acho que seja só um disco de poesia: há muita música ali.

O «Líricas» era um álbum muito descarnado musicalmente. Já este novo tem arranjos luxuosos, muitos instrumentos, secção de cordas, etc...

Engana bem!! (risos) Este foi um disco de orçamento médio, mais para o baixo do que para o alto. Tem coros em dois temas e um quarteto de cordas em quatro canções. Acho que é igualmente despojado, como o «Líricas». O que muda é que é um disco de banda, enquanto o outro tinha canções só com piano e voz, violão e voz. Aqui há bateria, baixo, guitarras. Mas a alma é semelhante à do «Líricas». Os blues do título têm que ver com esses sentimentos, essa alma, que percorre todo o disco. Mais do que com o género musical blues.

Temos falado do «Líricas»... E o disco, mais recente, de colaboração com Raimundo Fagner? Teve alguma coisa a ver com a direcção estética de «Baladas...»?

Não. Esse era outro disco simples e despojado, que apareceu como um projecto entre muitos outros que eu tinha e ainda tenho em mente. Quero ainda fazer um disco só de samba, outro de reggae, calipso e carimbó - géneros muito populares no Maranhão [região de onde Zeca é originário] - e ainda um disco só com versões de canções de autores portugueses.

Já se pode saber alguma coisa desse projecto?

Já. Eu falei dele ao Marco Mazola [da editora brasileira MZA] e ao José Serrão [da Som Livre em Portugal] e eles ficaram muito entusiasmados com a ideia. Penso cantar coisas de Sérgio Godinho [com quem Baleiro colaborou no «Irmão do Meio»], Jorge Palma [de quem Baleiro faz uma versão, «Frágil», na faixa-bónus da edição portuguesa de «Baladas...»], Rui Veloso, Zeca Afonso, Fausto, Vitorino, Pedro Abrunhosa e Armando Teixeira, entre outros. Geralmente, os brasileiros que cantam canções portuguesas, cantam fados, que são lindos, mas a minha ideia é diferente. Penso editar o álbum em Portugal e no Brasil.

É curioso porque, enquanto em Portugal há um grande preconceito de alguns artistas em relação a alguns cantores mais populares, no Brasil há uma grande cumplicidade entre a comunidade artística. Em «Baladas...» há uma canção, «Muzak», dedicada a Roberto Carlos...

Sim, o Roberto Carlos é muito respeitado. Mas também há bastante preconceito contra alguns cantores populares. Por exemplo, o Martinho da Vila, que é um génio popular, é menos respeitado do que deveria. Há o «complexo do vira-lata» - querer sempre aspirar a ser europeu e, mais recentemente, a ser norte-americano. Participei num álbum de tributo a Odair José, um grande compositor da música considerada brega - que, para vocês, é o pimba - nos anos 70. Ele foi a vanguarda do brega (risos)... Eu gosto de uma cantora portuguesa que é a Ruth Marlene.

Ruth Marlene?!?

Sim! Porque não? Ela é minha fã; foi ver um concerto meu e estivemos a conversar depois.

Voltando ao novo álbum: como é que surgiu a ideia deste «formato» banda?

Este álbum veio até mim. O Walter Costa - que é um génio da produção e já tinha trabalhado comigo no «Vô Imbolá» - e o Dunga, baixista que tocou com muita gente, fizeram-me um desafio: «você manda-nos umas cassetes com canções; ficamos trabalhando aqui com um grupo, sem compromisso, e se ficar bom, avançamos para o disco...». Foi uma proposta tentadora! (risos) Eu mandei as maquetas, só voz e violão, e eles foram trabalhando sem pressas. Eles produziram o álbum de uma maneira que eu jamais faria: o disco tem um som radiofónico, FM, despudoradamente radiofónico! Nunca vi as minhas canções embaladas assim...

O álbum poderia, então, chamar-se «Vô Embalá»...

Sim, podia! (risos) E eu adorei essa produção. Apesar de poder haver um certo pudor e poder haver reacções como «ah, se vendeu!! quer fazer sucesso!!». É um álbum para ouvir na estrada...

Por outro lado, este álbum está cheio de instrumentos «verdadeiros». Quase não há electrónica...

Sim, quase nada. É um disco muito, como se diz hoje, orgânico. E foi pegar nos instrumentos, ligar o gravador e vamos lá... Há canções gravadas ao primeiro «take»... Se calhar, se fosse eu a produzir, editaria, reeditaria, samplava... Mas a natureza do disco não era essa: tem muito calor.

No novo álbum também há menos presença de géneros brasileiros como o forró, o baião ou o samba e uma presença constante de géneros norte-americanos...

Sim, originalmente norte-americanos mas já adoptados em todo o mundo há muito tempo. Em Espanha temos o Joaquín Sabina, em Portugal temos o Jorge Palma, etc, etc... E eu tenho um amor sincero por esses géneros norte-americanos. As canções que eu mandei para os produtores já tinham essa carga. Os produtores podem é ter acentuado esse lado. E não, não há referências à música brasileira. Mas isso foi propositado. Foi uma questão de foco. Eu estou a fechar o universo dos discos - é por isso que vou fazer um só com variações de samba - porque estou cansado de discos, como o «Vô Imbolá», em que há rap com embolada, samba de roda, baladas. Cansei disso.

Outra diferença: no novo álbum os poemas são mais acessíveis, menos experimentais, com menos jogos de palavras...

É verdade que este disco tem uma poética, uma métrica, mais tradicional, talvez porque as canções se prestam mais a isso. Ficaria um pouco deslocado fazer uma letra muito abstracta em canções com estas características. Mas não foi intencional. E neste disco também há letras de outras pessoas. Do Murilo Mendes, por exemplo, que é um poeta fantástico.

Há uma referência aos Mutantes neste disco. O tropicalismo continua a ser uma fonte de inspiração?

O tropicalismo está muito entranhado em nós, mas não nos cabe ficar repetindo-o. Uma vez disse, provocatoriamente, que o brasileiro já é por natureza tropicalista. Quem inventou o tropicalismo não foram Caetano, Gil, Tom Zé, Mutantes, foi a Chiquinha Gonzaga [maestrina cuja carreira decorreu no final do séc. XIX e início do séc. XX e que juntava música dos salões europeus com música tradicional brasileira]. O pensamento tropicalista já estava nela, assim como já estava no Heitor Villa-Lobos quando este fazia digressões com o Pixinguinha. O tropicalismo está naturalmente enraizado nos brasileiros.

22 julho, 2006

Orchestra Baobab - Pioneiros


Podem não durar centenas de anos, como o embondeiro (baobab), mas a banda senegalesa que foi buscar a sua designação a esta árvore sagrada leva já quase 40 anos de existência (mesmo que com um hiato de 15 anos pelo meio). Aqui fica uma entrevista com Rudy Gomes, vocalista desta lendária banda, publicada originalmente no BLITZ em Abril de 2003.

ORCHESTRA BAOBAB
NAÇÕES UNIDAS

Ainda com a memória quente do fantástico concerto da Orchestra Baobab em Aveiro, apanho a cassete onde estão as palavras de Rudy Gomis - um dos fundadores e vocalista principal do mítico agrupamento senegalês -, meto-a no gravador e começo a transcrever uma das entrevistas mais estranhas da minha vida. Gomis entende bem português - o seu nome é uma corruptela de Gomes e ele é originário da Guiné-Bissau - mas fala mal a nossa língua e a entrevista segue depois, num emaranhado de português, castelhano e francês, com uma ajuda do manager espanhol do grupo, Saul. No fundo, uma festa de línguas semelhante aos concertos da Orchestra, onde - para além dos variadíssimos estilos musicais abordados - àquelas línguas se juntam o inglês e vários dialectos senegaleses.

Qual era, no princípio - quando tocavam na discoteca Baobab, em Dakar, início dos anos 70 - a vossa ideia de música? Queriam fazer uma música que vos divertisse e divertisse os clientes da discoteca?

Naquela época fazíamos o que nos apetecia, sem pensarmos muito em agradar aos outros. Tocávamos por amor à camisola, sem pensar no dinheiro que poderíamos ganhar e sem uma estratégia estabelecida. E ainda agora somos assim: quando tocamos pensamos apenas na música que fazemos.

Era importante, na altura, ter um presidente no Senegal - Léopold Sédar Senghor - que também era escritor, poeta, um amante das artes?

O presidente Senghor encorajou os artistas senegaleses a praticar a sua arte. Ele, como escritor, valozrizava muito mais este ofício das artes do que outros políticos. Sempre que havia um acto presidencial oficial, e esse acto incluía música, ele convidava-nos a participar.

Na vossa música encontram-se as músicas tradicionais senegalesas mas também a música cubana e a música americana (jazz, blues, soul...). Quais eram as músicas que influenciavam - e ainda influenciam - o vosso som?...

Isso tudo e também a influência de músicas do Congo, Nigéria e Zaire. E tivemos, muito, a influência da música cubana, para além de, por vezes, um solo de guitarra ou um solo de saxofone poderem recordar influências do jazz americano.

Para esta mistura foi importante que os músicos viessem de tribos senegalesas diferentes e até de países diferentes (Togo, Mali, Guiné-Bissau, Marrocos...)?

Sim. Todos nós trouxemos sons e maneiras de fazer música diferentes: há oito nacionalidades diferentes no grupo. E não há dúvida que isso se reflecte bastante na nossa música. Mas o mais importante é que todos nós estávamos no Senegal, ouvíamos muita música em conjunto, e, apesar das origens diferentes, estávamos todos a trabalhar para o mesmo resultado.

Qual era o peso da música tradicional - o griot, a música mandinga ou o wolof (canto sagrado) -, por exemplo, na vossa música? Era mesmo importante ou era apenas mais um elemento musical a juntar aos outros?

Nós fazemos música original nossa - e eu, mais dois outros companheiros, Charlie Ndiaye e Barthelemy Attisso, somos os compositores principais. Quando fazemos um tema somos um pouco como os cozinheiros: vamos fazer uma comida com ingredientes diferentes e muito especiais para que o resultado seja bom. E, para isso, as bases tradicionais são muito importantes: nós queremos mostrar que a música é daqui (Senegal) e não de outro lado qualquer. Mesmo quando fazemos música de base cubana, a nossa música é sempre personalizada. Nós não pegamos na música pura de outros países, nem na música pura do nosso. A nossa música é como uma bola nos pés do Romário: ele pega na bola e faz dela o que quer; nós pegamos em várias músicas e fazemos com elas a nossa própria música.

A vossa canção «Soldadi» é cantada em português ou em crioulo de origem portuguesa. O que significa «soldadi»? É a palavra portuguesa «saudade»?

A minha primeira língua foi o crioulo português. Mas com o passar dos anos deixei de ter contacto directo com a língua, isto apesar de ser professor de línguas e falar nove idiomas diferentes. E sim, «soldadi» - que foi uma canção escrita por mim - é baseada na palavra «saudade».

São muito conhecidos dois discos vossos - «Pirates Choice», editado em LP nos anos 80 e reeditado em CD depois em 2001, e o recente «Specialist In All Styles» - mas vocês têm muitos mais álbuns (cerca de 20), dois deles também lançados nos Estados Unidos e, pelo menos um, «N'Wolof», reeditado na Holanda. Mas os outros, ao que julgo, só foram lançados no Senegal e países vizinhos, nos anos 70 e 80... Há alguma ideia de reeditar em CD alguns desses discos que não estão disponíveis na Europa e Estados Unidos?

Não há nenhum projecto nesse sentido. A opção é mais lançar discos onde se possam misturar coisas novas e coisas mais antigas, recuperadas desses discos e reinterpretá-los de um modo mais actual. Foi um pouco isso que fizemos no «Specialist In All Styles» e é isso que iremos fazer mais vezes.

O que é que levou ao fim do grupo, em 1987, e motivou a vossa ausência dos palcos durante quinze anos? Foram apenas questões políticas e o clima de instabilidade e de guerra que se vivia no Senegal ou os gostos musicais também mudaram? É sabido que o mbalax, introduzido por Youssou N'Dour, estava a ocupar o espaço da Orchestra Baobab e a substituí-lo nos gostos das pessoas...

Para dizer a verdade, o principal motivo foi mesmo o aparecimento do mbalax. Era uma música nova, de que as pessoas gostavam e que arrasou tudo o que estava para trás. Depois, estávamos juntos há mais de quinze anos, alguns de nós estávamos cansados e não conseguimos resistir ao choque de termos passado de moda.

Acha que artistas senegaleses como Youssou N'Dour, Cheikh Lô ou Baaba Maal vos devem muito daquilo que foi, depois, a música deles?

Assim como nós temos influências de quem ouvimos e respeitamos, também eles foram influenciados por nós. Eles são muito mais novos do que nós e escutaram muito a nossa música. Nos países em vias de desenvolvimento é muito importante construir coisas sobre as próprias raízes, ao mesmo tempo que as pessoas desses países são muito curiosas em relação ao que se passa no exterior, nos países mais desenvolvidos. E esses artistas que referiste - grandes artistas - souberam muito bem misturar influências do seu próprio país com influências exteriores.

Como é que surgiu a oportunidade de voltarem a reunir-se, há dois anos? Foi, de certeza, um reencontro emocionante...

Sim, foi um momento de grande felicidade. Já não nos encontrávamos, como grupo, há quinze anos. Ficámos felizes, mas ao mesmo tempo sentimo-nos tristes pelo tempo perdido. Nunca pensámos que seria possível reencontrar-nos. Quando ouvíamos canções nossas na rádio, havia uma grande nostalgia mas não nos passava pela cabeça que um dia pudéssemos voltar a reunir-nos. Isso só foi possível devido à insistência da editora inglesa, a World Circuit, e foi algo de muito emocionante e de muito bom.

Como é que vêem o súbito sucesso mundial que vos atingiu com a reedição de «Pirates Choice» e a edição de «Specialist In All Styles»?

Nos nossos primeiros quinze anos de carreira, já tínhamos um público bastante alargado no Senegal e em países à volta. Mas não havia um interesse especial, nos países ocidentais, pela nossa música. Nos últimos anos, o interesse pela «world music» fez com que as pessoas descobrissem coisas com muita qualidade que estavam escondidas ou desaparecidas. E havia um lugar para nós nesse circuito. O público existia, o público desejavao nosso regresso e tínhamos que voltar. Para além disso, mesmo depois da separação - e com alguns a viverem longe uns dos outros -, houve sempre uma grande amizade a unir-nos. Somos como uma família que se conhece há trinta anos. E a música é a nossa grande paixão, por isso foi fácil voltarmos a juntar-nos. O outro dia, estava a falar com o Barthelemy Attisso, e estávamos a conversar sobre o que iremos fazer a seguir. Eu sou professor e ele é advogado, mas depois dessa conversa chegámos à conclusão que vamos continuar a fazer música, que não vamos voltar para os nossos empregos.

Isso tem tudo a ver com a minha última pergunta: o embondeiro, ou «baobab», é uma árvore que dura centenas de anos. E a Orchestra Baobab vai continuar até quando?

Até que Deus queira. Por nós seria eternamente, mas sabemos que isso é impossível e teremos que nos conformar com a vontade de Deus.

Festa do «Avante!» - Em Setembro, Sempre...


A Festa do «Avante!», órgão oficial do Partido Comunista Português, aposta mais uma vez nas músicas de raiz tradicional (e no rock, reggae, jazz, música experimental...). É no início de Setembro - dias 1, 2 e 3 -, na Quinta da Atalaia, Seixal, sede do festival nos últimos anos.

Na programação deste ano, o destaque vai para três homenagens: ao compositor Fernando Lopes Graça (com o Coro Lopes Graça, da Academia dos Amadores de Música, com a Sinfonietta de Lisboa e os pianistas Olga Prats e Miguel Borges Coelho), ao genial compositor de fados Alain Oulman (na voz dos fadistas António Zambujo, Carla Pires e Liana) e ao poeta popular algarvio António Aleixo (com os angolanos Kussondulola - expoentes do reggae em Portugal - a serem acompanhados, nesta homenagem, por Viviane, Prince Wadada e Kilandukilo).

E ainda há concertos de Sérgio Godinho, Gaiteiros de Lisboa (com o violinista Manuel Rocha, da Brigada Victor Jara), A Naifa, Mandrágora, Toque de Caixa, Contra3aixos (projecto que junta três dos mais importantes contrabaixistas de jazz nacionais: Carlos Bica, Carlos Barretto e Zé Eduardo), Telectu (o duo de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua, em comemoração dos 25 anos de carreira, aqui acompanhados por duas luminárias: o guitarrista Fred Frith e o baterista Chris Cutler), Boss AC (com mais um leque luxuoso de convidados: Sam The Kid, Chullage, Melo D e Berg), Cristina Branco, Luísa Basto, Navegante (com a cantora cabo-verdiana Nancy Vieira e o projecto de percussões, liderado por Rui Júnior, O Ó Que Som Tem?), os deliciosos punks Vicious Five, Yellow W Van, Tim (o vocalista dos Xutos, a solo) e os próprios Xutos & Pontapés.

Para completar o ramalhete, o elenco internacional inclui os ska-klezmer-chanson-balcânicos-e-tudo-o-mais Babylon Circus (França), os cabo-verdianos Mayra Andrade e Tito Paris, Djumbai Jazz (Guiné-Bissau), os divertidíssimos escoceses Peatbog Faeries, as deliciosas brasileiras Mawaca, Obrint Pas (Catalunha) e, «last but not the least», o delírio balcânico dos Taraf de Haidouks (Roménia - e na foto que está no cimo deste blog, vénia!).

21 julho, 2006

Música Pimba (E Suas Ligações à Música Tradicional)


Três histórias (e um texto recuperado do BLITZ acerca da chamada música pimba, publicado em Outubro de 2004):

1 - Há muitos anos, em conversa com Ricardo Camacho (produtor e teclista dos Sétima Legião para além de médico e um dos mais respeitados investigadores nacionais e internacionais no estudo da SIDA), ele contou-me que, durante um congresso médico em Istambul, aproveitou para comprar umas cassetes de música turca a que ele achava alguma graça. Só alguns anos depois ele descobriu que aquelas cassetes eram de uma espécie de pimba turco e que a boa música da Turquia era outra.

2 - Há um ano, numa entrevista com Zeca Baleiro, este fantástico cantor e compositor brasileiro disse-me que pensava gravar um álbum só com versões de temas de artistas portugueses respeitados - Sérgio Godinho, Jorge Palma, Rui Veloso, Zeca Afonso, Fausto, Vitorino, Pedro Abrunhosa e Armando Teixeira -, acrescentando depois, surpreendentemente, que também gostava de... Ruth Marlene.

3 - Também o ano passado, em Coimbra, num debate sobre folk e música tradicional, Mário Correia (do Intercéltico de Sendim e da editora e centro Sons da Terra) contou que num encontro de gaitas-de-foles, um gaiteiro veterano tocou um tema do Quim Barreiros enquanto outro, jovem, tocou o «Smells Like Teen Spirit», dos Nirvana, e que aquilo soou muito bem. Perguntei-lhe se essas versões em gaitas-de-foles poderiam ser consideradas música tradicional. O Mário - sabedor destas coisas como há poucos - respondeu: «Se esses temas forem incorporados no reportório de vários gaiteiros, vais ver que daqui por cem anos vão ser considerados música tradicional».

PROLEGÓMENOS PARA UMA ANÁLISE SÉRIA DA TENDÊNCIA MUSICAL POPULARMENTE CONHECIDA COMO PIMBA

O que é a música dita pimba? E será que o pimba existe? E quais as suas origens musicais? E porque é que há teses universitárias sobre o fenómeno?

Nenhum dos artistas que geralmente é encaixado na categoria pimba se reconhece como pertencendo a esta «gaveta». É natural, já que o termo - popularizado por uma reportagem da TVI e inspirado no tema de Emanuel «Pimba, Pimba» - é utilizado pelas elites intelectuais e bem-pensantes como pejorativo, achincalhante e digno de pena. Um pouco à semelhança do «brega» no Brasil ou do termo «redneck» aplicado aos «saloios» do sul dos Estados Unidos. Para as elites, pimba significa «piroso», «foleiro», «xunga» e está um pouco abaixo do kitsch na hierarquia do bom-gosto (o kitsch será uma espécie de mau-gosto com estilo enquanto o pimba não passa de mau-gosto absoluto, o grau zero da baixa-cultura). E os cantores - apesar de numa primeira fase aceitarem em boa parte a designação (houve até uma revista chamada «Pimba») - foram renegando e afastando-se gradualmente do epíteto, preferindo expressões como «música ligeira» ou «música popular». Outra razão, óbvia, para a negação é que no caldeirão pimba se começaram a meter produtos musicais diferentes: desde girls-bands ao Zé Cabra, da tentativa de euro-pop que são os Santamaria aos cantores românticos como Tony Carreira ou Toy. Mas a palavra ficou, colada à música mas também a programas de televisão, a livros (literatura-light=literatura-pimba), à política, etc.

A música dita pimba nasce nas editoras independentes nacionais - Discossete, Vidisco, Espacial, Ovação... -, muitas delas com experiência na música distribuída, via cassetes baratas, em feiras e bombas-de-gasolina, um circuito à parte, marginal, das lojas de discos dos grandes centros urbanos. Um circuito dirigido preferencialmente ao meio rural (e aos emigrantes que no Verão voltam às suas aldeias de origem). E é uma música de produção rápida e barata: em entrevista ao BLITZ, há nove anos, Emanuel (aka Américo Monteiro), dizia que no seu moderno estúdio da Pontinha se produziam quatro álbuns por mês. Um por semana, portanto. E com a proliferação dos estúdios digitais, centenas e centenas de discos de concepção rápida - porque recorrendo bastante a computadores, sintetizadores, programações, caixas-de-ritmos... - foram sendo criados (ou re-criados) nos últimos anos. E escrevo re-criados porque, como também dizia Emanuel nessa entrevista, «há dez ou onze tipos a a fazer canções e depois há dois mil a fazer versões» (das canções de maior sucesso, entenda-se). E potencialmente barata também porque na sua transposição para o formato «ao vivo», os artistas oferecem várias modalidades aos organizadores locais de concertos: por exemplo, «o artista com banda e duas bailarinas», «em playback e com duas bailarinas», «sozinho em playback».

E a música, perguntar-se-á?... As inspirações da música dita pimba vêm de todo o lado: da pop, do euro-disco, do brega brasileiro, da música romântica francesa, brasileira, italiana, do nacional-cançonetismo dos anos 60 e 70 (Tonicha, José Cid, Paulo Alexandre...) e, em muitíssimos casos, da música tradicional portuguesa. E é aqui que entra - para contrapor aos instrumentos electrónicos - o acordeão. O acordeão que, com a emergência dos ranchos folclóricos (SNI/António Ferro/Salazar), arrasou à sua passagem muitos instrumentos (e tocadores) tradicionais mas que se mantém, no dito pimba, como resquício de «instrumento tradicional», tanto em Portugal como nas comunidades emigrantes no estrangeiro. A este propósito, Sophie Chevalier (no texto «Folclore e Tradição Musical dos Portugueses na Região de Paris», incluído no livro «Vozes do Povo», ed. Celta) refere que nos ranchos folclóricos portugueses da capital francesa «é o acordeão o instrumento mais importante... fala-se mesmo em tirania dos acordeões».

O acordeão, aliás, marca uma certa fronteira entre os artistas, estando os que o usam (Quim Barreiros, Emanuel...) mais próximos dos ritmos, melodias e temas tradicionais portugueses. Não deixa de ser curioso que o musicólogo português José Alberto Sardinha tenha dito numa entrevista recente ao jornal Expresso: «Há um fenómeno que merecia um grande estudo que é o caso do Quim Barreiros: um cantor tradicional que herdou toda a tradição da música minhota e que cria de acordo com os parâmetros que lhe foram fornecidos pela tradição. Só que ainda ninguém reparou nisso... Ele tem criações onde, por exemplo, se identifica perfeitamente a estrutura musical do malhão do Norte que ele recriou. Com letras, em parte, fornecidas pela tradição. Aquela do "bacalhau", se se for ao Leite de Vasconcelos, está lá, é uma quadra popular do fim do século XIX!». E Sardinha não está sozinho na sua curiosidade científica sobre o fenómeno. Recentemente, Francisco Marques apresentou uma tese de mestrado na Universidade de Beja subordinada ao tema «O Fenómeno Musical "Pimba" - O caso Emanuel» (tese que será editada em livro brevemente).

O «bacalhau» de que fala Sardinha enquadra-se na corrente brejeira - que sempre existiu na literatura e na tradição portuguesas, de Gil Vicente a Bocage, do contador de anedotas Canty a Herman José - que é uma das marcas principais da música dita pimba. Mas há muitos outros temas recorrentes nas letras: o amor (dos amantes, da mãe, dos filhos), o divórcio, os acidentes na estrada, a dependência de drogas ou, em alguns casos, as saudades da aldeia - uma terra vista como Paraíso Perdido pelos emigrantes e migrantes e à qual hão-de regressar um dia. E põe-se aqui uma questão paralela. Os consumidores do chamado pimba são vistos pelas elites como «campónios», «iletrados» ou «suburbanos», mas são as elites que o têm acarinhado e alimentado ao longo dos últimos anos. Semanas académicas nas universidades (cujas Tunas aderem ao mesmo reportório e espírito), rádios locais e nacionais, programas de televisão, jornais e revistas de referência que não passam um Verão sem fazer uma reportagem sobre os cantores dessa área, têm legitimado o fenómeno.

Por outro lado, a proliferação de cantores e cantoras da mesma área - juntamente com o eventual recurso ao playback nos espectáculos e a generalização da ideia de que os estúdios podem fazer milagres com uma voz, por muito desafinada que seja - contribuem para criar a ilusão de que qualquer pessoa pode vir a ser cantor. E daí até às filas de centenas de pessoas a prestar provas de admissão em programas como «Ídolos» ou «Chuva de Estrelas», vai um pequeno passo.

20 julho, 2006

Djembézada!


A época de festivais de Verão (rock, world, outros...) já não tem data nem locais certos para começar, mas é verdade que a época dos festivais «a sério» - isto é, fora dos grandes centros urbanos, com muita gente no campismo e djembés a rodos - costuma começar com o de Vilar de Mouros (que decorre este fim-de-semana). E como a maior parte da rapaziada que batuca nos djembés durante os festivais (antes dos concertos, entre concertos, durante os concertos, depois dos concertos...) toca, geralmente, muito mal, não era nada má ideia que os candidatos a percussionistas pusessem os ouvidos nestes dois álbuns, editados recentemente. São só dois mas têm das melhores djembézadas que se podem ouvir...

BABATUNDE OLATUNJI
«CIRCLE OF DRUMS»

Chesky/Megamúsica

Babatunde Olatunji (falecido com 75 anos em 2003) é uma lenda. Percussionista nigeriano, editou em 1959 o seminal álbum «Drums of Passion», que deu a conhecer aos Estados Unidos e Europa os ritmos da África ocidental. Radicado em Nova Iorque, influenciou gente como o baterista Mickey Hart (dos Grateful Dead); Bob Dylan cantou acerca dele; John Coltrane gravou na sua fundação, o Olatunji Center for African Music, no Harlem; Martin Luther King e Malcolm X aconselharam-se com ele. Este «novo» álbum, «Circle of Drums», foi gravado em 1993 com a companhia de Muruga Booker (percussionista sérvio que tocou com os Weather Report) e Sikiru Adepoju (percussionista nigeriano, discípulo de Olatunji). E o resultado da junção (ainda com outros intrumentistas e a cantora Shakti) é uma viagem interminável, circular, mágica, que nos suga lá para dentro e não nos deixa sair. Hipnose total. (8/10)

MAMADY KEITA & SEWA KAN
«LIVE @ COULEUR CAFÉ»

Fenix Music/Megamúsica

Quando se fala de música da zona mandinga – do Senegal, do Mali, das Guinés... - fala-se, geralmente, de griots, dos blues que por lá nasceram, de guitarristas maravilhosos como Ali Farka Touré e de instrumentos como a kora, o balafon ou o n’goni. E esquece-se, muitas vezes, um dos instrumentos fundamentais da música feita na África Ocidental: o djembé. Felizmente, há discos como este «Live @ Couleur Café» para repor a justiça. Aqui, o extraordinário percussionista Mamady Keita (da Guiné-Conacri) e a sua banda Sewa Kan servem um festim – gravado ao vivo em Bruxelas, em 2004 – de batucadas riquíssimas de ritmos e timbres, também com a adição de coros femininos e... kora, balafon e n’goni nas mãos de alguns convidados. É festa e dança e calor do princípio ao fim. (7/10)

19 julho, 2006

Ali Farka Touré - À Espera de «Savane» (parte 4)


«Savane», o novo álbum de Ali Farka Touré, é editado esta semana. E fica desde já prometido um texto a propósito assim que o tiver. Enquanto isso não acontece, aqui fica mais um texto (publicado no BLITZ o ano passado) que parte de dois discos de Ali Farka e fala depois de outros artistas africanos...

ÁFRICA EXTRA

Para quem descobriu o guitarrista e cantor Ali Farka Touré através de «Radio Mali» ou de «Talking Timbuktu», é uma alegria ter à sua disposição dois álbuns antigos do génio do Mali como os que estão reunidos no duplo-CD «Red & Green» (World Circuit/Megamúsica), lançados originalmente em 1979 (o da capa vermelha) e em 1988 (o da capa verde) pela editora francesa Sonodis. E é também uma alegria imensa verificar que o talento enorme que ele tem agora era também já uma realidade há 25 anos e há 15 anos. Blues mandingas, descarnados, circulares, puros, praticamente só com voz e guitarra acústica (e uma cabaça a dar a base rítmica) no primeiro álbum; blues mandingas mais elaborados mas mágicos, arrepiantes, hipnóticos, e com a voz e guitarra acústica de Touré a serem ajudadas por um griot (Boubacar Farana) e um tocador de n'goni no segundo. A guitarra eléctrica e a sensação viva de que a electricidade que fornece Chicago vem do outro lado do Atlântico, das margens do rio Niger, só viria depois... (8/10)

Como viriam depois os seguidores de Touré, como Afel Bocoum ou Lobi Traoré, este agora com um «best of», «Mali Blue» (Dixiefrog), que passa por vários álbuns de Traoré e onde tem como convidados vários outros nomes grandes do Mali (a começar pelo próprio Ali Farka Touré). E o ambiente do disco, independentemente do ano de edição original de cada tema (entre 1990 e 1998), passa muito pelas mesmas paisagens fusionistas da música mandinga sub-sahariana com os blues de Touré (e, em algumas canções de Traoré, também com funk e rock psicadélico). Com o sol - abrasador, intenso, de fazer doer os olhos - a nascer, todos os dias, nos dedos e nas cordas vocais destes homens... (7/10)

Alguns milhares de quilómetros mais a sul, o também guitarrista e cantor Shiyani Ngcobo dá-se a conhecer ao Ocidente através do álbum «Introducing Shiyani Ngcobo» (World Music Network/Megamúsica), onde este cantor sul-africano mostra o que é a maskanda, uma dança tradicional zulu onde a guitarra acústica convive com violinos de som rude, uma concertina prima das da Louisiana (cajun, zydeco, etc...), um igogogo (guitarra com caixa de lata) e um baixo eléctrico saltitante. (7/10)

E, uma semana depois do camarada Miguel Cunha ter escrito neste jornal sobre «Africa Shrine» - o álbum ao vivo de Femi Kuti -, agora surge «The Best of Femi Kuti» (Barclay/Universal), mas que não se assustem os fãs do homem - principalmente aqueles angariados depois do seu concerto em Sines - porque não há nenhuma canção repetida nos dois discos. E mais: este «best of» é mais uma prova absoluta de que o nigeriano Femi continua de forma digna e bastante talentosa o som estabelecido por seu pai, o grande Fela Kuti. O afro-beat do pai - a fusão perfeita de ritmos da África Ocidental com o funk, o jazz, a soul - e a intervenção política estão lá, mas estão lá também muitas outras coisas que Femi acrescentou ao caldeirão nos tempos mais recentes: as electrónicas, o reggae, o ragga, o hip-hop - e, não por acaso, há participações em vários destes temas de Mos Def, Jaguar Wright e Common. (8/10)

E agora algo completamente diferente (ou não tanto quanto isso): «African Dreams» (Ellipsis Arts/Megamúsica), uma deliciosa colectânea de canções de embalar que começa com uma versão lindíssima do tema tradicional zulu sul-africano «Lala Mbube» (conhecida no Ocidente desde os anos 60 sob a designação «The Lion Sleeps Tonight») e continua depois com uma colecção riquíssima de «lullabies» dos Camarões (em dose dupla, e com um deles, «A Muna - O Síeya Pe», cantado por Coco Mbassi, que devia ser obrigatório para todos os casais que querem dar aos seus filhos bébés um sono descansado e cheio de sonhos de algodão), Congo, Gâmbia («Kanu Dingo» e «Jango», ambas com uma kora tocada por Muhamadou Salieu Suso que é de uma beleza absoluta, infinita, universal), Uganda, Serra Leoa, Zimbabwe («Vana Maruva» e «Kutira», ambos com uma m'bira, ou kissange, em círculos hipnóticos e capazes de adormecer um ogre em 20 segundos), Madagascar, Nigéria (o hino africano «Sweet Mother», de Prince Nico Mbarga, aqui cantado por Floxie Bee), Etiópia, Congo e Cabo Verde («Eclipse», uma morna de B.Leza com um poema belíssimo cantado por Celina Pereira). (7/10)

18 julho, 2006

A Crise no Médio Oriente... e os Asian Dub Foundation


Tenho um amigo judeu. Tenho outro amigo muçulmano. Ambos portugueses, ambos fotógrafos, ambos com um passado profissional que se cruzou durante alguns anos com o meu. E ambos se converteram às respectivas religiões depois dos 30 anos (quer dizer, o meu amigo judeu já nasceu judeu - a família fugiu da Alemanha, para se refugiar em Portugal, durante a II Guerra Mundial -, mas só aderiu de alma e coração à sua religião, digamos, de sangue, três décadas depois de ter nascido). Gosto muito dos dois. E respeito e admiro as suas opções, tomadas adulta, ponderada e conscientemente...

Hoje, no jornal «Público» vem uma fotografia (de Sebastian Scheiner, da Associated Press) que mostra uma rapariguinha (14 anos? 15 anos?) israelita loira, muito bonita, a escrever mensagens de ódio em bombas que vão ser largadas sobre o Líbano ou a Faixa de Gaza e, eventualmente, matar pessoas (e, eventualmente, matar pessoas inocentes). O mesmo ódio que se sente, do outro lado, nos bombistas suicidas palestinianos que posam para as fotografias vestidos e armados pouco antes de se fazerem explodir (e, eventualmente, matar pessoas inocentes) nos autocarros, nos mercados e nas ruas de Israel. Um ódio que não há meio de acabar...

No interminável conflito israelo-palestiniano (ou, em termos mais alargados, israelo-árabe) há muitas coisas que me chocam e entristecem. Choca-me que os dirigentes de um povo várias vezes perseguido ao longo da História (escravizado pelos faraós, subjugado pelo Império Romano, perseguido pela Inquisição portuguesa e espanhola, vítima de um genocídio infame por parte de Hitler...) sejam agora os carrascos de um outro povo, o palestiniano, matando-o, condenando-o à fome e à sede, impedindo a entrada de medicamentos no seu território... Choca-me que, do lado palestiniano, anos e anos de esforços diplomáticos tenham sido deitados para o lixo por parte das facções mais radicais. Choca-me e entristece-me que sejam algumas elites minoritárias dos dois lados a querer, promover e incentivar a continuação da guerra. Choca-me que a questão palestiniana (por muito justas que sejam as reivindicações dos palestinianos ou exactamente por essa mesma justeza) seja usada, com má fé, por muitos radicais islâmicos para justificar o terrorismo internacional (usando como bandeira os corpos dos palestinianos mortos) e os atentados a Nova Iorque, Londres, Madrid ou Bombaim.

Choca-me e entristece-me que, em nome da defesa «ocidental» contra o terrorismo, os dirigentes de um país chamado Estados Unidos da América se sintam no direito de invadir países (como o Iraque), manter prisões que violam os Direitos Humanos (como Guantanamo) e usar países da Europa para fins ilegais (como o transporte de prisioneiros a cargo da CIA). Choca-me que os militares desse país, a mando dos seus chefes, matem milhares de inocentes, torturem, destruam museus e casas e mesquitas. Choca-me ver os pais desses militares a chorarem a morte dos filhos (desde o início da segunda guerra no Iraque já morreram mais de dois mil soldados norte-americanos nesse país). Choca-me que a maioria desses militares seja oriunda das classes baixas e de comunidades imigrantes nos Estados Unidos. Choca-me que os jornais e as televisões não falem dos milhares de jovens americanos que desertaram do exército, fugindo para o Canadá. Choca-me a proibição de filmar a chegada dos caixões dos militares mortos aos aeroportos de Nova Iorque, Chicago ou Los Angeles (e choca-me não pela «exibição da morte», mas pela justificação oficial da proibição: «a divulgação dessas imagens poderia desmoralizar os outros soldados» e a população norte-americana em geral). Choca-me que um alto responsável pelo governo norte-americano tenha interesses directos na exploração de petróleo no Iraque (ou na reconstrução de infraestruturas ou noutra actividade altamente lucrativa qualquer). Choca-me que a razão principal disto tudo seja o Dinheiro (o dinheiro gerado pela exploração do petróleo, pela venda de armas, pela venda, até, de matéria noticiosa nas grandes cadeias de televisão e nas revistas e jornais).

Choca-me que o presidente Bush se refira à actual situação no Médio Oriente como «aquela merda» (em conversa com Tony Blair, ontem). Choca-me que haja uns iluminados europeus e norte-americanos que se riem com as caricaturas de Maomé e de Alá, sem se aperceber que essas caricaturas são apenas o reflexo de uma eventual, putativa e duvidosa superioridade moral («olhem p'ra nós, tão democráticos e tão livres que até podemos achincalhar os outros e a sua religião») e não o exercício inteligente de um direito, o de criticar. Choca-me e entristece-me a falta de respeito - respeito no sentido antigo, respeito no sentido de respeitar diferenças, opiniões, ideologias, religiões, culturas... - entre todas as partes.

Há uma canção dos Klezmatics - um extraordinário grupo musical de judeus de Nova Iorque (na foto ao lado) - que diz assim: «I ain't afraid... I ain't afraid of your Yahweh, I ain't afraid of your Allah, I ain't afraid of your Jesus, I'm afraid of what you do in the name of your God». Os mesmos Klezmatics que, nos seus concertos, apelam ao fim do conflito israelo-árabe. Assim como em Israel há grupos musicais - os Bustan Abraham (que significa «Jardim de Abraão», porque tanto os árabes como os judeus descendem de Abraão, respectivamente através de Ismael e Isaac, seus filhos), os Sheva ou os Olive Leaves são apenas alguns exemplos - em que se juntam judeus e muçulmanos, em paz. A mesma paz que permitiu a judeus e muçulmanos (e ciganos) fugidos à Inquisição espanhola e portuguesa inventar o flamenco na Andaluzia; a mesma paz que permitiu que a música sefardita (de judeus em fuga por Marrocos, Argélia, Tunísia, Turquia, países muçulmanos em que tiveram abrigo e protecção...) tenha elementos ibéricos, judeus e árabes; a mesma paz que leva o rei de Marrocos, um país muçulmano, a visitar a sinagoga uma vez por ano. A mesma paz cantada pelo argelino e muçulmano Abderraamane Abdelli num concerto no Festival Islâmico de Mértola há três anos. E a mesma paz, ou desejo de paz, que leva o grupo rap israelita Hadag Nahash a cantar «One is the number of countries from the Jordan to the sea. Two is the number that one day there will be». Parece tão fácil e simples, não parece?...

Como complemento útil a este texto, deixo aqui a crítica do álbum «Tank» e a entrevista com os Asian Dub Foundation publicadas há pouco mais de um ano no BLITZ (entrevista, realizada antes dos ataques terroristas em Londres de há um ano, em que Pandit G coloca algumas questões pertinentes acerca do terrorismo, da questão islâmica e da guerra no Iraque).


ASIAN DUB FOUNDATION
«TANK»
Labels/EMI

Apesar das referências típicas dos Asian Dub Foundation - uma fusão de hip-hop, jungle, bhangra indiano, funk, guitarras rock e uma atitude devedora do punk... - continuarem bem presentes no novo álbum do grupo indo-britânico, «Tank», o som dos ADF está agora mais livre e aberto. No álbum há, por vezes, mais melodia nas vozes e há quase sempre um maior predomínio da electrónica - a presença de Ben Watkins (Juno Reactor) como produtor é uma das razões -, embora as guitarras eléctricas ainda por lá andem bem presentes (principalmente em ««Round Up», «Oil» ou «Take Back The Power»). E o jogo de vozes é agora poderosíssimo, com a aquisição de Ghetto Priest (vindo da escola anglo-jamaicana da On-U Sound), que agora se junta a MC.Spex. É ragga vs. hip-hop num ringue de luta livre. Elementos electro, música árabe, um imaginário punk-progressivo («Who Runs This Place»), sitars («Warring Dhol») e até regage/dub em estado quase puro («Tomorrow Begins Today») compõem o ramalhete musical.

E tudo isto servido por letras que estão cada vez mais intervenientes politicamente, com os ADF a apontarem o dedo (o do meio, talvez), ao cinismo do Ocidente (Estados Unidos, Inglaterra...), que lança as sementes da violência e do terrorismo noutros países, para depois ser vítima das tempestades que desencadeia. O tema-título, «Tank», é baseado numa canção infantil, mas com a letra transformada («we want your oil»), e noutras canções há letras como «We're the children of the CIA, we want somewhere new to play, better get right out of the way»; «looking for the Muslim bomb/looking for the Hindu bomb / still on the lookout for the suicide bomb». A luta continua. (8/10)



ENTREVISTA
A GUERRA (TALVEZ SEGUNDO WALT DISNEY)

«Tank», o novo álbum dos Asian Dub Foundation é mais um violento manifesto anti-guerra vindo do grupo euro-afro-indiano. Mas é também um passo em frente na busca de um qualquer bhangra-hip-hop-reggae. E com o terceiro elemento, o reggae, cada vez mais lá em cima. A entrevista com Pandit G, um dos fundadores do grupo.

Os Asian Dub Foundation têm, desde sempre, uma forte consciência social e política nas suas canções. No novo álbum, «Tank», a luta política continua. O que é mais importante nos ADF: a música ou a mensagem? A festa ou a luta?

As duas, na realidade. Mas não sei se o nosso trabalho é político, apenas reflectimos sobre o que nos rodeia e vai acontecendo no mundo: aquilo de que as pessoas falam, aquilo que nós vemos na televisão... Não estamos sozinhos nisto. Há bandas e artistas que não falam destes assuntos, mas há outros que sempre o fizeram. O Bob Marley, por exemplo, falava de temas semelhantes num ambiente de festa. Muitas bandas punk faziam o mesmo...

Falou em ambiente de festa...

Sim, porque isso também é muito importante. Todas as músicas que usamos na nossa música - seja o reggae, o electro, o hip-hop, o bhangra... - são músicas de festa, para dançar. Mas, pelo meio, nós transmitimos uma mensagem. Em Inglaterra há agoras muitas bandas de revivalismo dos anos 80, e essa época foi má em termos musicais, foi vazia, muito virada para a moda, o consumo, o dinheiro. O movimento neo-romântico (Duran Duran, Spandau Ballet, Classix Nouveaux, etc, etc...) foi péssimo. Nós somos afectados pela vida de todos-os-dias, a vida real, e as nossas canções são a nossa visão sobre isso. Não temos grandes manifestos políticos...

Mas então como explica temas como «Tank», «Who Runs The Place», «Oil» ou «The Round Up»?

«Tank» pode ser o tanque de gasolina do seu carro (risos). Mas, falando a sério, é evidente que há questões específicas do nosso tempo que nos afectam directamente como a Guerra no Iraque. A Inglaterra está envolvida nesse conflito e as pessoas não foram consultadas a propósito dessa matéria. E não há maneira de reagir a isso, se não através de canções ou filmes ou manifestações...

Acha que há algum tipo de falta de liberdade, actualmente, no Reino Unido?

Sim, sem dúvida. Vocês, em Portugal, têm bilhetes de identidade. Nós, em Inglaterra, recusámos os bilhetes de identidade a seguir à II Guerra Mundial porque esse tipo de cartão identificativo atentava contra as liberdades individuais das pessoas. Mas agora querem obrigar-nos a ter bilhetes de identidade, alegando que são necessários para controlar o terrorismo, a imigração, etc... Há um controlo cada vez mais massivo e prepotente do estado sobre as pessoas. Há, por exemplo, detenções sem julgamento. O Governo está a transmitir uma mensagem negativa, de medo. Não fala em termos melhores empregos ou melhores casas ou melhor saúde... É mais: «se não votarem em nós, o futuro será terrível!». É assustador.

Mas não era inevitável, devido às ligações com os Estados Unidos, a entrada do Reino Unido na Guerra do Iraque?

Não, porque essa guerra é completamente ilegal. As Nações Unidas não deram o aval à invasão do Iraque... E tudo isto porque nos transmitiram uma mensagem de medo. O medo do terrorismo, aqui, é um medo irracional, o medo de que algo ou alguém de fora poderá vir atacar-nos. No Reino Unido sempre tivemos terrorismo, mas um terrorismo «interno», do IRA. Sabemos bem o que isso é. Mas nunca tivemos um ataque terrorista vindo de fora [Nota: repete-se, esta entrevista foi dada dois meses antes dos atentados em Londres].

Passando à música - e voltaremos depois à «política» a propósito da vossa ópera sobre Khadafi... Neste álbum, vocês trabalharam com o produtor Ben Watkins (dos Juno Reactor e compositor das bandas-sonoras da série «Matrix»). O que é que ele trouxe de novo ao som da banda?

Ele ajudou-nos a voltar às origens e a um som mais verdadeiro, mais simples, onde as melodias pudessem tomar a dianteira. O destaque está nos MCs e nos cantores. A base é o drum'n'bass, o hip-hop e o reggae, mas as vozes é que estão lá em cima. Não há tanto ruído por baixo como em álbuns anteriores... Agora, se ele trouxe algo de novo ao nosso som ainda não sei dizer, porque tenho estado muito embrenhado no trabalho e ainda é tudo muito subjectivo. Se calhar só daqui por cinco anos é que vou poder dizer, quando ouvir o «Tank» outra vez, «oh sim, olha o que nós fizemos aqui!» (risos). Agora a sério, quando estivermos proximamente a preparar estas canções para o formato de concerto é que vamos perceber melhor o que temos no álbum.

Neste álbum também tiveram a colaboração constante do cantor reggae Ghetto Priest, que já tinha trabalhado convosco em 1996...

Acho que tudo isso está ligado. E sim, o Ghetto Priest está ligado à On-U Sound (editora/organização liderada por Adrian Sherwood) e esteve em digressão connosco por essa altura, mostrando o seu próprio trabalho e acabou por colaborar directamente connosco, depois, no tema «Fortress Europe», do álbum «Enemy of the Enemy». A sua voz soava muito bem connosco quando tocávamos com ele ao vivo, daí que a sua presença neste novo álbum seja perfeitamente natural. E ele, apesar de ser um cantor de reggae, adapta-se muito bem a todos os géneros que nós incluímos na nossa música.

Mas há agora mais reggee na vossa música...

Nós crescemos nos anos 80 e aprendemos a gostar do reggae dos anos 70, dos sound-systems... Isso, para nós, sempre foi uma grande influência. E com a presença dele na banda essa tendência acentuou-se. A canção «Tomorrow Begins Today» é a canção mais reggae de raiz que alguma vez fizemos.

Os Asian Dub Foundation estão a trabalhar numa ópera baseada na vida do Coronel Muamar Khadafi (o presidente da Líbia). Porquê uma ópera e porquê acerca de Khadafi?

Já viu o «Disney on Ice»? (risos)

Não; mas sei o que é.

Pois, pensámos fazer um espectáculo com tanques em cima do gelo, mas os tanques são demasiado pesados (risos). E a ópera é capaz de ser um formato mais apropriado para contar essa história. A ideia já tem alguns anos: fomos convidados pelo National Theatre para começar a preparar uma ópera acerca de Khadafi. A ópera só estará pronta no próximo ano e será, provavelmente, cantada em italiano.

A Líbia teve a Itália como potência colonizadora no passado...

Exacto. Essa é uma das razões; a outra é que as grandes óperas clássicas eram cantadas em italiano (risos).

Como é que vocês vêem o Coronel Khadafi? Como um herói? Um ditador? Apenas um homem?

Ditador, ele é de certeza. Mas a verdadeira questão não é essa... Vou dar um exemplo: vimos o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros sentar-se várias vezes com Saddam Hussein à mesma mesa e as declarações dele foram «que pessoa encantadora que é Saddam». Isto, enquanto Saddam bombardeava os curdos. E o Donald Rumsfeld a mesma coisa. O que eu quero dizer é que os ditadores desta zona do Globo tiveram, em alguma altura, o apoio das potências ocidentais: Inglaterra, Estados Unidos, França... As raízes do poder nesses países foram lançadas pelo Ocidente. E, por vezes, eles são amigos, outras vezes são inimigos. Khadafi é uma personagem fortíssima porque, apesar de ter estado isolado durante dezenas de anos, sobreviveu. Mas é claro que é um ditador. E estamos a tentar contar esta história no contexto de uma ópera... Mas ninguém me tira da ideia que o melhor era mesmo apresentarmos isto como um grande espectáculo no gelo: «Khadafi On Ice» e, na continuação, «Fidel Castro on Ice» (mais risos)... Se conhecer alguém que compre a ideia, eu vendo-a...

OK, vou tentar (risos)... Para além da ópera e do novo álbum, vocês ainda estão envolviddos noutros projectos...

Sim. Costumamos fazer a banda-sonora ao vivo de filmes como «O Ódio» (de Mathieu Kassovitz) ou «A Batalha de Alger» (de Gillo Pontecorvo) e também estamos envolvidos no projecto de um CD educativo. Está a acontecer tudo ao mesmo tempo.

Este post é dedicado aos meus amigos Daniel e Carlos e aos muçulmanos e judeus que querem a paz, nomeadamente nos sites:
http://www.isra-pal-peace.ch/Framepage_1.htm
http://www.taayush.org/
http://traubman.igc.org/global.htm
http://zope.gush-shalom.org/home/en
http://www.mideastweb.org/

Iberfolk - A Vez do Sabugal


E mais um festival para a lista, que está a ficar cada vez mais longa e ainda bem... Este é o Iberfolk -Festival de Música Tradicional do Alto-Côa, que decorre no Sabugal (castelo e praia fluvial) de 27 a 30 de Julho e inclui concertos dos Chuchurumel e Diabo a Sete no dia 27, Galandum Galundaina (na foto) e Tradere no dia 28, Grallers de L’Acord, Fol&ar e Parasol no dia 29, Toque de Caixa e Dazkarieh no dia 30. O festival, gratuito, inclui ainda workshops (um deles com as Adufeiras de Monsanto), teatro, um festival paralelo de acordeão e realejo, passeios e gastronomia. Ver o blog http://transcundania.blogspot.com

17 julho, 2006

Acordeões - Entre a Argentina e a Polónia


Recuperação - mais uma - de um texto publicado no BLITZ há alguns meses (Janeiro deste ano). Fala de acordeões, de tango, do passado e do futuro... A propósito de três álbuns (dos Tango Crash, dos Motion Trio - na foto - e uma colectânea de antigo tango... polaco).

TANGO CRASH
«OTRA SANATA»

Galileo/Megamúsica

VÁRIOS
«POLSKIE TANGO»

Oriente Musik/Megamúsica

MOTION TRIO
«PLAY-STATION»

Asphalt Tango/Megamúsica


Argentina-Polónia. Tangos do passado e do futuro. Acordeões a unir tudo.

Já nem há discussão: o acordeão (e as suas variantes, como as concertinas ou o bandoneon) é, na actualidade, um dos instrumentos mais excitantes ao serviço de novas músicas «locais» ou «universais». E, se calhar, já nem é preciso voltar a falar de gente como os Danças Ocultas, Gabriel Gomes, Kepa Junkera, Kimmo Pohjonen ou Chango Spasiuk para se perceber que esta é uma discussão encerrada. E isto para dizer que, nos três discos em análise neste texto, o acordeão é rei e senhor. Mas há outros motivos para ligar três álbuns aparentemente tão diferentes entre si: os argentinos Tango Crash pegam no tango e levam-no para o futuro (numa nave espacial muito mais bem decorada e com uma força locomotora muito mais interessante do que a do Gotan Project), a colectânea «Polskie Tango» mostra tangos do passado, gravados na longínqua... Polónia nos anos 30 (e, acrescenta-se aqui, não há género musical que mais tenha feito pela dignificação do acordeão do que o tango, vd. bandoneon de Astor Piazzolla), e os polacos Motion-Trio pegam nos acordeões e fazem uma viagem paralela à dos Tango Crash, lançando os instrumentos para uma realidade paralela-alternativa-sideral qualquer.

O segundo álbum dos argentinos Tango Crash, «Otra Sanata», mostra o grupo a seguir as pisadas do primeiro, homónimo, mas com desvios valiosos devido à incorporação de novos elementos fixos no grupo. A Daniel Almada (piano) e Martin Iannaccone (violoncelo e voz) – os principais compositores – juntam-se agora um notável bandoneonista, Marcelo Nisimann, um baterista com escola feita no drum’n’bass (o que se nota aqui e ali nos temas deste álbum) e um percussionista. O todo tem agora uma sonoridade naturalmente mais orgânica, mas os tangos e milongas continuam, por vezes, a ser cobertos por um interessante chantilly electrónico (q.b. para dar patine de modernidade sem estragar o sabor original do conjunto). Pitadas de jazz, rock, experimentalismo e música erudita contemporânea fazem o resto. (7/10)

Rewind: uma das milhentas provas de que a música é uma linguagem universal é a colectânea «Polskie Tango», que agrupa tangos e milongas escritos e interpretados por compositores e músicos/cantores polacos no final dos anos 20 e durante a década de 30. Sabe-se lá por que razão, o tango (música nascida na Argentina) tinha uma adesão imensa na distante Polónia dessa altura. E o que começou por ser uma importação e adaptação locais transformou-se numa linguagem própria (com os temas a serem cantados em polaco), com um estilo de tango mais lento, mais triste, mais melancólico, mais «europeu». E é um documento lindíssimo. (7/10)

FFW: 70 anos depois, três polacos tocam acordeão como se este instrumento acústico fosse uma barreira de sintetizadores, comandos de discos voadores ou instrumentos ao serviço de bandas-sonoras de jogos de computador. O seu terceiro álbum, «Play-Station», é de 2001 mas só agora chega ao mercado português. E é uma maravilha de invenção e ritmo e sedução. Aqui há rock, jazz, música minimal-repetitiva, trance, tecno e delírios vários (um dos temas imita o voo de uma mosca; outro mima um jogo de naves espaciais em computador...). Arrasador. (9/10)

16 julho, 2006

Toumani Diabaté - Antes de Sines


Antecipando a vinda de Toumani Diabaté ao Festival de Músicas do Mundo de Sines (dia 27 de Julho), aqui ficam dois textos publicados no BLITZ há alguns meses a propósito de «Boulevard de L’Independance», o álbum gravado com o super-grupo mandinga Symmetric Orchestra: a crítica ao álbum (publicada em Março) e uma entrevista com Diabaté, o «deus da kora», segundo as sábias palavras de Ali Farka Touré (publicada em Novembro).

TOUMANI DIABATÉ’S SYMMETRIC ORCHESTRA
«BOULEVARD DE L’INDEPENDANCE»

World Circuit/Megamúsica

O génio da kora em diálogo com o funk, o jazz, os blues... Brilhante.

Ouvir a kora (harpa mandinga) de Toumani Diabaté é, muitas vezes, ouvir um eco distante de uma guitarra portuguesa, não só pelo espectro tímbrico que é estranhamente comum aos dois instrumentos mas também pelo rol de emoções que facilmente saltam das suas cordas: alegria e tristeza, saudade e paixão, fúria e uma beleza absoluta. E Toumani está para a kora como Carlos Paredes para a guitarra portuguesa, Paco de Lucia para a guitarra de flamenco, Ravi Shankar para a sitar ou Jimi Hendrix para a guitarra eléctrica. Depois do extraordinário «In The Heart of The Moon» (a meias com o recentemente falecido Ali Farka Touré), «Boulevard de L’Independance» traz Toumani com a sua Symmetric Orchestra (onde convivem vozes masculinas e femininas, instrumentos eléctricos, saxofones, balafons e djembés) para um festim luxuoso de música mandinga com funk, soul, blues ou música cubana. Lindo! (8/10)

TOUMANI DIABATÉ
O DEUS DA KORA

Este ano já esteve cá como convidado especial de Ali Farka Touré - que lhe chama «o deus da kora» - e esta semana está de volta para dois concertos integrados no festival Sons em Trânsito [Nota: concertos que aconteceram com a Symmetric Orchestra mas sem a presença de Toumani, impedido de se deslocar a Portugal devido a doença]. Entrevista com o maliano Toumani Diabaté, mestre da harpa mandinga, também a prometer para breve um álbum com a Symmetric Orchestra.

Qual é, actualmente, a sua relação com a kora? Toca todos os dias?

Sim, toco todos os dias, muitas horas por dia. Passo mais horas a tocar kora do que a fazer outra coisa qualquer, incluindo dormir. Aprendi a tocar kora em criança com o meu pai e os mais velhos [nota: Toumani nasceu numa família de griots e o seu grande mestre foi seu pai, Sidiki Diabaté, que - à semelhança de Artur Paredes, pai de Carlos Paredes, com a guitarra portuguesa - autonomizou a kora como instrumento solista e não apenas como acompanhamento de cantores] e toquei kora a vida inteira. Ela faz parte da minha vida. É a minha vida.

Como é que vê o seu instrumento? Como uma mulher, um amigo, uma arma, uma extensão do seu corpo?

É um pouco disso tudo. E é até como um computador...

Um computador?!?

Sim, a kora é um instrumento com centenas, talvez milhares, de anos e ao longo dos séculos foi acumulando as memórias dos povos da zona mandinga de África. E é também um meio de comunicação, de transmissão de histórias. É melhor que um computador...

Acha então que não são necessárias palavras para contar histórias...

Sim, claro. Isso acontece quando se juntam alguns tocadores de kora. Nós falamos uns com os outros só tocando os nossos instrumentos e sabemos o que estamos a dizer. E, no Mali, eu toco a kora em vários sítios e toda a gente percebe qual é a história que estou a contar, sem palavras. A kora tem uma função social, religiosa...

Há alguns anos, gravou um álbum com Taj Mahal, um guitarrista americano de blues. Também acredita que os blues nasceram, há centenas de anos, na zona mandinga de África?

Sim, sem dúvida nenhuma. Nós aqui não lhes chamamos blues, claro, porque é a nossa música. Os africanos que foram levados para os Estados Unidos como escravos esqueceram, ao longo das gerações, os seus povos de origem, as suas línguas originais, mas conservaram a cultura. E os blues nasceram dessa memória...

Este ano, foi editado um álbum de uma parceria sua com Ali Farka Touré, In the Heart of the Moon. Foi importante essa colaboração?

Sim. Foi excelente juntar os dois estilos. O álbum demorou só algumas horas a gravar e foi um momento excelente, quase mágico. Aprendi muito com ele. Nós somos de zonas diferentes do Mali, mas compreendemo-nos e isso é o mais importante. Adoro esse álbum!

Lembra-se do concerto em Lisboa, com Ali Farka Touré, este Verão?

Oh sim! Foi o nosso melhor concerto da digressão! Foi muito bom e a audiência era maravilhosa. Gostei muito...

Está para breve a edição de um álbum seu com a Symmetric Orchestra. Como é que começou este grupo?

Esse grupo já existe há muitos anos. Editámos um álbum em 1991. A ideia da Symmetric Orchestra é «reconstruir» o Império Mandinga, em música e cultura, tal como existiu há centenas de anos, antes da colonização europeia. Na Symmetric Orchestra há músicos e cantores do Mali, Senegal, Guiné-Conakry, Gâmbia, isto é, os países actuais que, antes, estavam reunidos no Império Mandinga.

Já ouvi uma cópia incompleta do álbum e, para além da música mandinga, há muito jazz, blues, música cubana...

Porque está tudo ligado. A música cubana, por exemplo, também tem muitos elementos da nossa música. As raízes são as mesmas...

O que é que preparou para os concertos em Portugal?

Vou apresentar temas deste álbum da Symmetric Orchestra e também outros, de outros discos meus...

15 julho, 2006

Ojos de Brujo, Macaco e Amparanoia - Som Mestiço em Dose Tripla


Do caldeirão em ebulição permanente que é o «movimento» do Som Mestiço de Barcelona e de outras zonas da Catalunha e de Espanha, saíram nos meses mais recentes novos álbuns de três dos seus grupos mais emblemáticos: os Ojos de Brujo, Macaco e Amparanoia. Aqui se recupera a crítica publicada originalmente no BLITZ a «Techarí», dos Ojos de Brujo (e uma entrevista com Xavi, percussionista da banda - na foto), e se dá conta, em notas breves, dos novos álbuns de Macaco, «Ingravitto», e Amparanoia, «La Vida Te Da».

OJOS DE BRUJO
«TECHARÍ»
PIAS/Edel

A mais excitante banda catalã de fusão do flamenco com muitas outras músicas. E cada vez mais.

A fusão de músicas tradicionais com outras linguagens musicais - digamos, «modernas» - pode redundar para a foleirada absoluta (os Deep Forest são um bom, de tão mau, exemplo) ou para exemplos maiores de arte musical – e aqui entram facilmente propostas tão díspares como os Hedningarna ou DJ Dolores, os Gaiteiros de Lisboa ou Lhasa, Manu Chao ou os Asian Dub Foundation. E são grupos e artistas como estes que nos levam a questionar o que é, na realidade, a música tradicional, agora: uma entidade sagrada que não se pode alterar ou uma entidade em permanente mutação e que, desde sempre, incorporou elementos estranhos àquilo que veio, mercê de uma «verdade» histórica, etnográfica ou antropológica qualquer, a chamar-se «tradição».

Os Ojos de Brujo são, hoje, um dos exemplos maiores – o mais diversificado mas ao mesmo tempo o mais coerente e rico de cores - de como é possível modernizar o flamenco, a rumba catalã, as bulerias, as soleás, sem perder o duende (o espírito, a alma, a possessão) do flamenco e mantendo um alambique de sangue quente a borbulhar em permanência. E se já Bari, o seu segundo álbum, mostrava a banda de Marina e sus muchachos a misturar, muito bem, géneros musicais de raiz andaluza e catalã com hip hop, funk, ritmos latino-americanos, etc, etc, o novo álbum Techarí leva o conceito ainda mais longe e incorporam cada vez mais músicas nas suas canções. Aqui, uma buleria pode conviver facilmente com o funk; o banghra anglo-indiano pode namorar com o tango; o hip-hop, o drum’n’bass e as electrónicas podem aparecer onde menos se espera (isto se não se conhecer o grupo); e - sem hierarquias - o jazz latino, a música cubana e mexicana, o reggae, o thrash metal e a música árabe também podem entrar ali como faca em manteiga e como se sempre tivessem feito parte do flamenco. E, sempre, sempre, com o flamenco e seus derivados a servirem de base aos delírios fusionistas ou -- como no segundo tema do álbum, «Sultanas de Merkaillo», no sexto, «Tanguillos Marineros», no nono, «Bailaores» ou no 14º, «Nana» (em que o flamenco rima com música do norte de África) - a serem tratados com paixão e respeito e nestes quatro exemplos mais próximos de uma raiz, de uma verdade primordial, qualquer (relembre-se: o flamenco é uma música híbrida inventada há cerca de quinhentos anos por ciganos, muçulmanos e judeus, todos fugidos à Inquisição espanhola).

Junte-se a isto letras intervenientes e convidados de luxo como Nitin Sawhney, Faada Freddy do grupo rap senegalês Daara J, Prithpal Rajput dos Asian Dub Foundation, o guitarrista Pepe Habichuela ou a cantora Martirio (outra renovadora do flamenco) e estamos novamente (porque «Bari» já era muito bom!) em presença de um dos melhores álbuns dos últimos tempos da chamada, palavrão!, world music. (9/10)

MACACO
«INGRAVITTO»
EMI

«Com os pés na terra e as mãos no ar»: a isto chama Macaco (e a sua banda homónima) «Ingravitto». Ou é só uma outra maneira de dizer «Raices y Antenas» (pois!). E isso faz todo o sentido: o novo álbum de Macaco é como se fosse o disco 3 do duplo «Entre Raices y Antenas», que estava dividido numa primeira rodela, «Raices», e uma outra, «Antenas», se bem que nem sempre fosse completamente perceptível essa separação. Aqui, no novo álbum, as raízes e as antenas, a terra da Terra e os satélites do céu misturam-se definitivamente para uma viagem por várias culturas - oiça-se o espantoso «Brazil 3000», com os brasileiros B-Negão e Nação Zumbi, «Como El Agua Cale», com flamenco, jazz, música árabe e ragga em luta permanente, ou o igualmente fortíssimo «Bajo Un Mismo Sol» -, em que este lado bom da globalização é, ao mesmo tempo, um meio (musical e artístico) e um fim (político, de intervenção social, ecológica, humana...). Não por acaso, as letras são cantadas em espanhol, português, inglês, francês... A destoar, só alguma moleza e preguiça pop em alguns temas... (7/10)

AMPARANOIA
«LA VIDA TE DA»
Wrasse Records/Harmonia Mundi

Moleza e preguiça são coisas que não existem em «La Vida Te Da», o novo álbum dos Amparanoia, grupo que ganhou o ano passado o prestigiado prémio da BBC para melhor grupo world music da Europa. Neste quinto álbum, Amparo Sanchez e os seus rapazes abrem o baile com uma rumba poderosíssima, «La Vida Te Da», e seguem depois em viagem por variadíssimos lugares, às vezes numa mesma canção: ska e mariachis, salsa e outros géneros cubanos com fartura e também muito reggae (não falta, num dos bónus, uma lindíssima versão de «Redemption Song», de Bob Marley, mas já antes, em «Me Voy Lejos», há um reaggaezinho delicioso). «La Vida Te Da» é um álbum maduro, adulto, riquíssimo musicalmente e com letras cada vez mais apuradas na junção dos sentimentos pessoais de Amparo e da sua visão, empenhada e activa, do mundo que a rodeia. (9/10)


ENTREVISTA
OJOS DE BRUJO
O FLAMENCO E TUDO O RESTO

Os catalães Ojos de Brujo estão de volta com o seu cocktail, cada vez mais bem apurado, de flamenco com muitas outras músicas lá dentro. «Techarí», o terceiro álbum do grupo, foi o mote para a conversa com Xavi Turull (aka Capitán Cresten), o percussionista que levou para a banda sons de tablas indianas, percussões afro-cubanas e a técnica do cajón aprendida na escola do flamenco.

Numa entrevista recente, alguém dos Ojos de Brujo disse, a propósito de Techarí, que este é um disco mais flamenco que os outros... Concorda?

Não somos nós que o dizemos. Toda a gente o diz. Mas, ao mesmo tempo, creio que é um disco muito mais aberto e variado do que os outros. Neste há mais diferenças entre todas as canções, há muitos estilos diferentes em diferentes canções. O que se passa é que a actual formação dos Ojos de Brujo tem como elementos muita gente que trouxe o flamenco de experiências anteriores. No primeiro disco, por exemplo, só o Ramon, a Marina e eu é que tínhamos essa base. Agora, todos nós temos essa raiz flamenca... A nossa música não está mais flamenca, mas quando é flamenco é mais flamenco.

Como é entendido o flamenco em Barcelona? Como uma coisa externa, da Andaluzia, ou como uma coisa de todas as regiões de Espanha, mesmo as mais independentistas como a Catalunha?

Há zonas de Barcelona, as mais catalãs, em que o flamenco em geral não se sente tanto. Mas sente-se muito um «palo» flamenco (NR: os «palos» são os sub-géneros em que se divide o flamenco, como as bulerias ou as soleás, cada um deles com características próprias embora sendo todos eles flamenco), que é a rumba catalã, que nasceu na Catalunha. É um «palo» mais de festa e não tão profundo como outros «palos» do flamenco.

Nasce na Catalunha mas tem influências latino-americanas, ao que julgo...

Sim, o flamenco, quando sai de Espanha viaja para a América Latina, e quando volta, regressa pelo porto de Barcelona. A rumba catalã tem parentescos com a salsa cubana.

Há três ou quatro anos vi um concerto dos Ojos de Brujo em Sevilha – na Womex e na Feira do Flamenco. E a reacção dos andaluzes ao vosso concerto foi extraordinária. O público aficcionado do flamenco aceita bem os desvios à sua música?

Não. E é por isso que é surpreendente que os nossos melhores públicos, e os mais entusiastas, estejam na Andaluzia e também em Madrid, zonas de forte influência do flamenco mais tradicional. Mas acho que há uma razão para isso: nós nunca pretendemos fazer flamenco puro. Não somos um grupo de flamenco, somos um grupo de experimentação musical, que temos o flamenco como raiz, mas passado pelos filtros de músicas de todo o mundo, desde a música indiana ao rock, funk, punk, hip-hop...

Os Ojos de Brujo sempre misturaram o flamenco com funk, hip-hop, música árabe, indiana, etc... Mas em «Techarí» ainda metem mais coisas como o jazz latino ou o drum’n’bass. Como é que integram estas músicas quando compõem?

Cada canção é um mundo diferente. Não temos uma fórmula concreta... Cada canção vem de uma maneira diferente. Podem vir de um ritmo, por exemplo. O «Silencio», que é o tema do álbum com drum’n’bass, nasceu quando o Max (NR: o outro percussionista dos Ojos de Brujo) começou a fazer um ritmo de drum’n’bass no cajón (NR: o caixote de madeira que é o principal instrumento de percussão no flamenco). E foi divertido ver que se podia fazer drum’n’bass com um cajón! Então, o baixista começou a tocar por cima, a Marina começou a cantar... As canções são um trabalho colectivo, de grupo; não há um director musical. É um trabalho muito lento mas muito democrático, e é isso que nos dá essa riqueza.

Essa riqueza de que fala, essa variedade, é consequência de habitarem em Barcelona – uma cidade cosmopolita e aberta - ou é consequência dos vossos percursos musicais anteriores?

É a consequência de termos encontrado as pessoas que encontrámos. Todos nós tivemos experiências anteriores, importantes, de fusão do flamenco com outras músicas. Há, em Barcelona, quem se dedique ao flamenco puro, mas nós não. Um estava experimentado misturar o flamenco com heavy-metal, outro com punk, outro com funk, eu com música indiana, latino-americana e árabe, a Marina com teatro e electrónica, o Paco e Ramon com hip-hop... E essa foi a magia: termo-nos encontrado uns aos outros.

Neste álbum também «encontraram» outras pessoas, exteriores à banda. E convidaram músicos e/ou cantores como Nitin Sawhney, Faada Freddy (do grupo rap senegalês Daara J), Prithpal Rajput (aka Cyber, dos Asian Dub Foundation) ou Martirio. Convidaram-nos porque faziam sentido nas canções ou porque são artistas que admiram?

A participação de todos eles é fruto das nossas viagens e de encontros que, emocionalmente, nos marcaram e significaram muito para nós. Por exemplo, conhecemos os Asian Dub Foundation num festival na Bélgica e foi mágico. Nasceu uma grande amizade e, infelizmente, só pôde participar o percussionista porque eles estão sempre muito ocupados. No caso de Nitin Sawhney, há muito tempo que temos uma admiração mútua e ele colaborou connosco à borla. Foi uma troca: nós participamos no disco dele e ele no nosso. Com os Daara J encontrámo-nos nos prémios da BBC, em Edimburgo, e foi mágico: apanhámos uma bebedeira todos juntos nas ruas de Edimburgo, enquanto tocávamos na rua. Os músicos cubanos que participam, eu já os conhecia de antes (NR: nas suas viagens pelo mundo, Xavi passou algum tempo em Cuba antes de voltar à Catalunha) e reencontrei-os, o ano passado, em Cuba, e ter ido lá foi muito importante para todos nós.

Há poemas de canções dos Ojos de Brujo com uma forte componente de intervenção política e social. É importante intervir através da vossa arte?

A nossa vida é assim. Sempre fomos assim. Se pudermos contribuir para que as coisas mudem para melhor, fazêmo-lo. E essa intenção manifesta-se nas nossas letras. Vem da nossa experiência diária. A Marina (NR: cantora e letrista do grupo) tem um dom natural para escrever. Faz uma poesia muito bonita e não muito directa e crua. E ela transmite, muitas vezes, essa vivência nossa do dia-a-dia. E isso reflecte-se também noutras coisas: não aceitamos patrocínios de empresas multinacionais que prejudicam as pessoas, não pensam no nosso planeta e só têm o lucro dos ricos como meta. E também temos uma estrutura independente, Diguela, para editar os nossos discos...

14 julho, 2006

Sons do Atlântico e L Burro i l Gueiteiro (ou Do Algarve a Trás-os-Montes)


A edição deste ano do Festival Sons do Atlântico, em Lagoa, decorre nos dias 11, 12 e 13 de Agosto e tem uma ementa variada e interessantíssima que inclui actuações dos Mu (Portugal) e Mercedes Peón (a grande renovadora da folk da Galiza), no primeiro dia, Orquestrinha do Terror (Portugal) e Mercan Dede (electrónica em diálogo com a música da Turquia - na foto), no segundo, e, para fechar, as algarvias Moçoilas e grande senhora do zydeco Lisa Haley (Estados Unidos). Bancas de artesanato de vários países e restaurantes internacionais encontram-se também no recinto do festival. Ver o site www.algarpalcos.com

No outro extremo do país, a valorosa iniciativa L Burro i l Gueiteiro (de mirandês para português, se tal for preciso: O Burro e O Gaiteiro) decorre este ano de 31 de Julho a 4 de Agosto, partindo de Vimioso, na aldeia de Caçarelhos, e passando por várias aldeias até chegar a Sendim. Os passeios, de burro e a pé, serão animados com música dos Galandum Galundaina (co-promotores da iniciativa e agora a comemorarem dez anos de actividade musical - parabéns!), Toques do Caramulo, Ginga, Pé na Terra, Tear de Llerena e Sebastião Antunes Trio. Segundo a organização, os objectivos desta iniciativa mantêm-se inalteráveis: «defender o património cultural tradicional (das Terras de Miranda), tendo por símbolos o Gaiteiro e o Burro Mirandês». Ver os sites www.aepga.pt e www.galandum.co.pt

13 julho, 2006

Música no Castelo e Sons e Ruralidades - Festivais em Outros Formatos


Um é mais ambicioso, o outro é mais simples e discreto, mas é sempre interessante assistir ao nascimento de novos conceitos de festivais de música e ao alargar de fronteiras entre géneros musicais e até da música com outras actividades...

O 1º Festival Música no Castelo decorre amanhã e depois (dias 14 e 15) no Castelo de Montemor-o-Velho e, segundo refere o comunicado da organização, a Lado B, «o Festival Música no Castelo é descomprometido com um género musical ou com uma classificação musical mais generalista. Não se trata de um festival de world music. Nem de um festival de música urbana». E é por isso que nele cabem actuações, dia 14, dos Tchakare Kanyembe (Portugal/Moçambique), Lenine (Brasil), Antibalas Afrobeat Orchestra (Estados Unidos) e, em after-hours, dos DJs Marcos Cruz e Rui Murka, enquanto no dia 15 actuam os Chirgilchin (de Tuva - na foto), a enormíssima Laurie Anderson (Estados Unidos), e, para acabar a festa, os Micro Audio Waves (Portugal) e o DJ Morpheus (Israel/Bélgica). Ver o site www.musicanocastelo.pt

Outra direcção é tomada pelo Festival Sons e Ruralidades - dias 28, 29 e 30 de Julho, em Vimioso -, festival que pretende «alcançar a fusão entre a Natureza e a Ruralidade através da expressão artística conferida pela Música Tradicional, inserida no contexto etnográfico e ambiental que a vai criando e inovando ao longo dos tempos». O festival inclui concertos dos Dazkarieh, Dites 34, Cibo Mosari e Roncos do Diabo e muitas actividades paralelas: «oficinas de construção de instrumentos musicais direccionadas para crianças, oficinas de danças tradicionais portuguesas, europeias e "lhaços" de pauliteiros; aprendizagem e interpretação de alguns instrumentos musicais tradicionais do Nordeste Transmontano; palestras e tertúlias sobre etnografia e antropologia relacionadas com a música tradicional; e arraiais tradicionais». Ver os sites www.aepga.pt e www.aldeia.org

12 julho, 2006

Híbridos (Recuperados a 2004), Parte 3


Tris, tris, tris, tris.............

WORLD EXTRA

Voz inesquecível da música cabo-verdiana - tanto nos incontornáveis Tubarões como na sua carreira a solo -, Ildo Lobo morreu demasiado cedo. Mas deixou em testamento um último álbum que é, talvez, o melhor da música cabo-verdiana em muitos anos (Cesária Évora e os Ferro Gaita incluídos). «Incondicional» (Harmonia/Lusáfrica) é essencialmente um álbum em que Lobo dá voz a mornas e coladeiras quentes e arranjadas com um bom gosto insuperável. Poucos instrumentos eléctricos; e com piano, cavaquinhos, a cantora Lura brilhando no dueto «Raboita Mundo» e o melhor violino da música cabo-verdiana depois de Travadinha, curiosamente de um músico oriental (Kim Dan Le Oc Mach). Fundamental. (9/10)

Assim como fundamental é o duplo-álbum «Golden Afrique Vol. 1» (Network/Megamúsica), que reúne gravações históricas - dos anos 70, principalmente - de alguns dos pioneiros da moderna música africana, muitas vezes fundindo ritmos tradicionais com a música negra norte-americana (jazz, funk, soul...). Na colectânea há lugar para Amadou Balaké (do Burkina Faso), o ziboté de Ernesto Djédjé, os Ambassadeurs du Motel de que Salif Keita era o cantor, o n'gumbé da orquestra Super Mama Djombo (da Guiné-Bissau), a cantora sul-africana Miriam Makeba, a Etoile de Dakar (que deu a conhecer Youssou N'Dour), a Orchestre Baobab e muitos outros. (8/10)

E ainda por África, outro disco surpreendente: «Congotronics» (Crammed Discs/Megamúsica), do colectivo Konono Nº1 (na foto), de Kinshasa, uma troupe que faz música cuja base são três likembés (outro nome para m'bira, kalimba ou kissange) mas que também usa microfones feitos a partir de componentes de automóveis, megafones, apitos, altifalantes artesanais e percussões estranhíssimas. O resultado é uma música hiper-dançável, repetitiva e de uma estranha modernidade. Uma grande surpresa. (7/10)

Subindo para norte, mas ainda em África, o argelino há muitos anos imigrado em França Khaled dá-nos um novo álbum, «Ya-Rayi» (AZ/Universal), que é uma super-produção luxuosa e luxuriante (até Don Was por lá anda). Aqui, o rai mistura-se com funk, r&b e electrónicas variadas; o som das darabukas e da ney (a flauta tradicional) fundem-se com sintetizadores e secções de metais. Mas também andam por lá as cordas da Orchestre Art TV do Cairo e uma orquestra argelina para manter, por vezes, a música mais próxima das raízes. Às vezes isso é mesmo uma boa ideia. (5/10)

Muito, muito bom é o primeiro álbum com distribuição internacional do acordeonista argentino Chango Spasiuk, «Tarefero de Mis Pagos - Souns From The Red Land» (Piranha/Megamúsica). Pegando na música tradicional da sua região de Misiones, o chamamé (bastante próximo da música caipira do Mato Grosso brasileiro), Chango e os músicos que o acompanham adicionam-lhe muitas vezes outros elementos - polkas e valsas vindas do leste europeu (o apelido Spasiuk deve-se aos avós ucranianos imigrados na Argentina), o seu gosto pelo jazz e, obviamente, por Astor Piazzolla. E o resultado final é sempre brilhante, virtuoso mas vivo, pulsante e quase sempre dançável (as excepções são os temas mais experimentais, que por vezes, fazem lembrar os Madredeus do início, Kepa Junkera ou a Penguin Cafe Orchestra). Deve ser fabuloso ao vivo. (9/10)

Outro grande álbum é «Caminos de Pache» (Dunya Records/Megamúsica), do quarteto vocal masculino Tenores di Bitti, da Sardenha, cujo jogo de vozes cria, sempre, uma música rude, grave e antiga. Imagine-se um coro de cante alentejano a fazer um curso intensivo de «throat-singing» em Tuva e o resultado poderia estar muito próximo daquilo que, a meio caminho, os Tenores di Bitti apresentam. Com trinta anos de carreira e com muitas provas dadas na defesa da música vocal sarda (a escola de Canto a Tenore, por exemplo), o grupo atreve-se neste álbum a, pela primeira vez e só de vez em quando, incluir alguns instrumentos (acordeão e as flautas de cana launeddas) que não as vozes. Mas não destoam. (8/10)

Ainda de Itália, a colectânea «Italia 3 - Atlante de Musica Tradizionale» (Dunya Records/Megamúsica) inclui 19 projectos e dá um bom retrato da variedade de géneros tradicionais do país e, muitas vezes, de cruzamentos com géneros musicais, digamos, modernos. Do espantoso jogo de timbres dos bandolins da Napoli Mandolin Orchestra ao curiosíssimo cruzamento de tarantelas e música cigana dos países de leste dos Acquaragia Drom, da voz quente de Franca Masu à folk com sabor medieval dos Baraban, dos acordeões de Mario Salvi, Riccardo Tesi e Filippo Gambetta ao afro-italo-rock-reggae de Lou Dalfin, da electrónica com laivos de tarantelas e música turca da colaboração dos Mascarimiri com o DJ AlphaBass à folia absoluta dos Tre Martelli e aos irresistíveis ritmos das tammuriatas de La Moresca, esta é a compilação perfeita - apesar de um ou outro tema menos interessante - para quem quer mergulhar na música folk italiana. (7/10)