22 julho, 2006

Orchestra Baobab - Pioneiros


Podem não durar centenas de anos, como o embondeiro (baobab), mas a banda senegalesa que foi buscar a sua designação a esta árvore sagrada leva já quase 40 anos de existência (mesmo que com um hiato de 15 anos pelo meio). Aqui fica uma entrevista com Rudy Gomes, vocalista desta lendária banda, publicada originalmente no BLITZ em Abril de 2003.

ORCHESTRA BAOBAB
NAÇÕES UNIDAS

Ainda com a memória quente do fantástico concerto da Orchestra Baobab em Aveiro, apanho a cassete onde estão as palavras de Rudy Gomis - um dos fundadores e vocalista principal do mítico agrupamento senegalês -, meto-a no gravador e começo a transcrever uma das entrevistas mais estranhas da minha vida. Gomis entende bem português - o seu nome é uma corruptela de Gomes e ele é originário da Guiné-Bissau - mas fala mal a nossa língua e a entrevista segue depois, num emaranhado de português, castelhano e francês, com uma ajuda do manager espanhol do grupo, Saul. No fundo, uma festa de línguas semelhante aos concertos da Orchestra, onde - para além dos variadíssimos estilos musicais abordados - àquelas línguas se juntam o inglês e vários dialectos senegaleses.

Qual era, no princípio - quando tocavam na discoteca Baobab, em Dakar, início dos anos 70 - a vossa ideia de música? Queriam fazer uma música que vos divertisse e divertisse os clientes da discoteca?

Naquela época fazíamos o que nos apetecia, sem pensarmos muito em agradar aos outros. Tocávamos por amor à camisola, sem pensar no dinheiro que poderíamos ganhar e sem uma estratégia estabelecida. E ainda agora somos assim: quando tocamos pensamos apenas na música que fazemos.

Era importante, na altura, ter um presidente no Senegal - Léopold Sédar Senghor - que também era escritor, poeta, um amante das artes?

O presidente Senghor encorajou os artistas senegaleses a praticar a sua arte. Ele, como escritor, valozrizava muito mais este ofício das artes do que outros políticos. Sempre que havia um acto presidencial oficial, e esse acto incluía música, ele convidava-nos a participar.

Na vossa música encontram-se as músicas tradicionais senegalesas mas também a música cubana e a música americana (jazz, blues, soul...). Quais eram as músicas que influenciavam - e ainda influenciam - o vosso som?...

Isso tudo e também a influência de músicas do Congo, Nigéria e Zaire. E tivemos, muito, a influência da música cubana, para além de, por vezes, um solo de guitarra ou um solo de saxofone poderem recordar influências do jazz americano.

Para esta mistura foi importante que os músicos viessem de tribos senegalesas diferentes e até de países diferentes (Togo, Mali, Guiné-Bissau, Marrocos...)?

Sim. Todos nós trouxemos sons e maneiras de fazer música diferentes: há oito nacionalidades diferentes no grupo. E não há dúvida que isso se reflecte bastante na nossa música. Mas o mais importante é que todos nós estávamos no Senegal, ouvíamos muita música em conjunto, e, apesar das origens diferentes, estávamos todos a trabalhar para o mesmo resultado.

Qual era o peso da música tradicional - o griot, a música mandinga ou o wolof (canto sagrado) -, por exemplo, na vossa música? Era mesmo importante ou era apenas mais um elemento musical a juntar aos outros?

Nós fazemos música original nossa - e eu, mais dois outros companheiros, Charlie Ndiaye e Barthelemy Attisso, somos os compositores principais. Quando fazemos um tema somos um pouco como os cozinheiros: vamos fazer uma comida com ingredientes diferentes e muito especiais para que o resultado seja bom. E, para isso, as bases tradicionais são muito importantes: nós queremos mostrar que a música é daqui (Senegal) e não de outro lado qualquer. Mesmo quando fazemos música de base cubana, a nossa música é sempre personalizada. Nós não pegamos na música pura de outros países, nem na música pura do nosso. A nossa música é como uma bola nos pés do Romário: ele pega na bola e faz dela o que quer; nós pegamos em várias músicas e fazemos com elas a nossa própria música.

A vossa canção «Soldadi» é cantada em português ou em crioulo de origem portuguesa. O que significa «soldadi»? É a palavra portuguesa «saudade»?

A minha primeira língua foi o crioulo português. Mas com o passar dos anos deixei de ter contacto directo com a língua, isto apesar de ser professor de línguas e falar nove idiomas diferentes. E sim, «soldadi» - que foi uma canção escrita por mim - é baseada na palavra «saudade».

São muito conhecidos dois discos vossos - «Pirates Choice», editado em LP nos anos 80 e reeditado em CD depois em 2001, e o recente «Specialist In All Styles» - mas vocês têm muitos mais álbuns (cerca de 20), dois deles também lançados nos Estados Unidos e, pelo menos um, «N'Wolof», reeditado na Holanda. Mas os outros, ao que julgo, só foram lançados no Senegal e países vizinhos, nos anos 70 e 80... Há alguma ideia de reeditar em CD alguns desses discos que não estão disponíveis na Europa e Estados Unidos?

Não há nenhum projecto nesse sentido. A opção é mais lançar discos onde se possam misturar coisas novas e coisas mais antigas, recuperadas desses discos e reinterpretá-los de um modo mais actual. Foi um pouco isso que fizemos no «Specialist In All Styles» e é isso que iremos fazer mais vezes.

O que é que levou ao fim do grupo, em 1987, e motivou a vossa ausência dos palcos durante quinze anos? Foram apenas questões políticas e o clima de instabilidade e de guerra que se vivia no Senegal ou os gostos musicais também mudaram? É sabido que o mbalax, introduzido por Youssou N'Dour, estava a ocupar o espaço da Orchestra Baobab e a substituí-lo nos gostos das pessoas...

Para dizer a verdade, o principal motivo foi mesmo o aparecimento do mbalax. Era uma música nova, de que as pessoas gostavam e que arrasou tudo o que estava para trás. Depois, estávamos juntos há mais de quinze anos, alguns de nós estávamos cansados e não conseguimos resistir ao choque de termos passado de moda.

Acha que artistas senegaleses como Youssou N'Dour, Cheikh Lô ou Baaba Maal vos devem muito daquilo que foi, depois, a música deles?

Assim como nós temos influências de quem ouvimos e respeitamos, também eles foram influenciados por nós. Eles são muito mais novos do que nós e escutaram muito a nossa música. Nos países em vias de desenvolvimento é muito importante construir coisas sobre as próprias raízes, ao mesmo tempo que as pessoas desses países são muito curiosas em relação ao que se passa no exterior, nos países mais desenvolvidos. E esses artistas que referiste - grandes artistas - souberam muito bem misturar influências do seu próprio país com influências exteriores.

Como é que surgiu a oportunidade de voltarem a reunir-se, há dois anos? Foi, de certeza, um reencontro emocionante...

Sim, foi um momento de grande felicidade. Já não nos encontrávamos, como grupo, há quinze anos. Ficámos felizes, mas ao mesmo tempo sentimo-nos tristes pelo tempo perdido. Nunca pensámos que seria possível reencontrar-nos. Quando ouvíamos canções nossas na rádio, havia uma grande nostalgia mas não nos passava pela cabeça que um dia pudéssemos voltar a reunir-nos. Isso só foi possível devido à insistência da editora inglesa, a World Circuit, e foi algo de muito emocionante e de muito bom.

Como é que vêem o súbito sucesso mundial que vos atingiu com a reedição de «Pirates Choice» e a edição de «Specialist In All Styles»?

Nos nossos primeiros quinze anos de carreira, já tínhamos um público bastante alargado no Senegal e em países à volta. Mas não havia um interesse especial, nos países ocidentais, pela nossa música. Nos últimos anos, o interesse pela «world music» fez com que as pessoas descobrissem coisas com muita qualidade que estavam escondidas ou desaparecidas. E havia um lugar para nós nesse circuito. O público existia, o público desejavao nosso regresso e tínhamos que voltar. Para além disso, mesmo depois da separação - e com alguns a viverem longe uns dos outros -, houve sempre uma grande amizade a unir-nos. Somos como uma família que se conhece há trinta anos. E a música é a nossa grande paixão, por isso foi fácil voltarmos a juntar-nos. O outro dia, estava a falar com o Barthelemy Attisso, e estávamos a conversar sobre o que iremos fazer a seguir. Eu sou professor e ele é advogado, mas depois dessa conversa chegámos à conclusão que vamos continuar a fazer música, que não vamos voltar para os nossos empregos.

Isso tem tudo a ver com a minha última pergunta: o embondeiro, ou «baobab», é uma árvore que dura centenas de anos. E a Orchestra Baobab vai continuar até quando?

Até que Deus queira. Por nós seria eternamente, mas sabemos que isso é impossível e teremos que nos conformar com a vontade de Deus.

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