28 setembro, 2006
Susheela Raman - Da Jóia da Coroa
Entre a Índia e o Ocidente, a cantora Susheela Raman tem construído uma carreira coerente e frutuosa. Há alguns meses editou o arriscado álbum «Music For Crocodiles», onde esse instável equilíbrio (estético e até emocional) entre as suas raízes e músicas mais cosmopolitas está bem patente. Esta entrevista - publicada originalmente em Novembro de 2003, aquando da sua vinda ao Sons em Trânsito, em Aveiro - ajuda a explicar os seus caminhos musicais...
SUSHEELA RAMAN
OS BRAÇOS DE KALI
Uma das grandes revelações da chamada world music nos últimos anos, Susheela Raman avança corajosamente pela pop, pelos blues, pela música clássica e pela música popular indiana, por África e Tuva e Espanha e por aí fora... Como se a deusa Kali, nas suas muitas mãos, segurasse diferentes tipos de música em cada uma.
Susheela Raman tem 30 anos. Nasceu em Londres, filha de pais indianos, e emigrou para a Austrália ainda criança. Em 1995 vai para a Índia estudar canto e música clássica indiana com Shruti Sadolikar. Regressa a Inglaterra em 1997, onde conhece Sam Mills, músico e produtor que fez parte dos 23 Skidoo (banda que, no início dos anos 80, foi percursora na fusão de ritmos de dança ocidentais com músicas étnicas) e que tinha acabado de gravar um álbum com o cantor indiano Paban das Baul. O clique entre Susheela e Sam é imediato: companheiros na vida e na criação musical, os dois atiram-se à grande aventura: fundir com bom-gosto, elegância e inventividade a música clássica do sul da Índia com a pop, os blues, o reggae, o jazz, a música do Mali e de outras partes do mundo, e sempre com a voz de Susheela a brilhar por cima. O resultado, «Salt Rain», editado em 2001, é assombroso e valeu-lhe o prémio BBC-Radio 3 na categoria World Music-Revelação e uma nomeação para o Mercury Prize. Dois anos depois, surge «Love Trap», um passo à frente e a descoberta de outras músicas: a música popular indiana (e não só a clássica de compositores oitocentistas como Tyagaraja e Dikshitar), o flamenco, o afro-beat nas peles de Tony Allen (que foi baterista de Fela Kuti) ou o «throat-singing» característico de Tuva levado por dois dos Yat-Kha. Dia 29, em Aveiro, vamos poder ouvi-la em concerto.
Como é que descobriu a música clássica indiana? Na infância?
Sim, era muito nova. A minha mãe tinha um grande interesse nesse género de música e pôs-me em contacto com ele. Gostava muito, mas esse interesse esbateu-se quando tinha quinze anos...
Porquê? Preferia ouvir outro tipo de música na adolescência?
Sim. Comecei a ouvir muito rock, pop; Beatles, Rolling Stones... E comecei a interessar-me por vozes femininas da pop como Annie Lennox (dos Eurythmics) e por cantoras soul como Aretha Franklin.
Também ouvia grupos de origem indiana radicados em Inglaterra como os Asian Dub Foundation ou os Fun-da-Mental?
Nem por isso. Vivi na Austrália muitos anos e só quando voltei a Inglaterra é que conheci o trabalho desses grupos.
E agora, o que é que ouve?
Muita coisa. Gosto muito da cantora peruana Susana Baca e da música de Tuva. Gosto de blues. E também gosto dos Radiohead e de PJ Harvey. Tenho gostos muito variados.
Na início da sua carreira pública cantou com o grupo de etno-house Joi. Isso foi importante?
Na verdade, não. Nos Joi, era apenas uma cantora contratada e não fazia parte do grupo. Limitei-me a pôr a voz em coisas deles.
Quando conheceu Sam Mills, a sua alma-gémea na música, percebeu logo que ele viria a ser importante para si?
Sim, fiquei logo apaixonada. Foi amor à primeira-vista, pelo menos da minha parte (risos).
Mas eu estava a falar de música...
Sim, mas isso só veio depois. Conheci-o num gabinete de «publishers» e ele disse-me aquela frase clássica «Não nos conhecemos de algum lado?». Mas fiquei logo apaixonada. Depois passámos um ano sem trabalhar em música; viajámos pela Índia...
Havia coisas mais importantes para fazer...
Sim (risos).
Há diferenças na maneira de trabalhar quando abordam as canções originais e quando fazem versões de canções indianas ou outras versões (como «Song To The Siren» ou «Save Me»)?
Sim. Numa canção como «Maya», por exemplo, a letra e a melodia são minhas e depois o Sam faz as harmonias e arranjos. Essa é uma maneira de trabalhar. Também podemos pegar numa melodia do Sam e eu trabalho-a depois para a minha voz. Com as canções clássicas indianas, pegamos nas letras e nas músicas originais e o Sam faz as harmonias. O «Song To The Siren» surgiu num outro projecto e fiquei apaixonadíssima por esta canção do Tim Buckley. Adoro-a. E ela vai ficando cada vez mais intensa à medida que a vou cantando, uma e outra vez, ao vivo. Esta canção tem o mesmo grau de espiritualidade que muitas canções indianas.
No seu primeiro álbum, «Salt Rain», canta algumas canções clássicas do sul da Índia. No segundo, «Love Trap», também interpreta canções populares e do norte da Índia. Quais são as diferenças mais significativas entre umas e outras?
Há diferenças de línguas e de construção musical. Mas depende... Por exemplo, «Sakhi Maro» é uma canção devocional, religiosa; não é clássica. Mas há muitas semelhanças entre as canções devocionais em toda a Índia. Já «Ye Meera Divanapan Hai» é uma canção retirada de um filme indiano. As grandes diferenças estão nas músicas clássicas do sul e do norte, mas não canto música clássica do norte...
Mas sente algumas diferenças siginificativas entre o primeiro e o segundo álbum?
Sim. O segundo tem mais ritmo, mais percussões, mais «groove». E é mais denso - no sentido que tem mais elementos musicais -, mais intenso, mais elaborado, com mais energia. Há pessoas que gostam do muito do primeiro mas já não gostam do segundo álbum; que preferiam que não tivesse mudado. Mas não podemos ficar a fazer o mesmo disco para sempre... O próximo álbum também vai ser diferente deste.
Numa entrevista, disse que se via mais como uma cantora pop do que como uma cantora de world music... Mas os músicos com que trabalha e que convida para os seus discos vêm quase todos de diferentes partes do mundo...
Isso é tudo muito relativo. Conhece o Johnny Halliday?
Sim, o rocker francês.
Pois, o outro dia entrei numa loja em Londres e ele estava na secção de world music (risos). Onde é que vocês, em Portugal, metem a Mariza? Ela, para vocês, é world music?
Não; é fado.
É isso que eu quero dizer. Muitas vezes, a designação world music não faz sentido. Muitas das pessoas que trabalham e gravam comigo vêm de géneros musicais diferentes. E muitos vivem em Londres e em Paris. A ideia não é reunir pessoas da world music, mas pessoas de diferentes culturas. Nunca disse: vamos fazer um disco de world music... (risos)
A Susheela canta em inglês mas também em diferentes línguas indianas (hindi, tamil, sânscrito...). Fala alguma delas no seu dia-a-dia ou tem que as aprender para cantar nessas línguas?
Eu falava tamil com os meus pais quando era criança e já cantava nalgumas dessas línguas. Infelizmente, neste momento não falo com ninguém em tamil porque os meus pais foram viver para a Índia. O Sam fala bastante bem uma língua da Índia, bengali, mas estou a pensar ensinar-lhe tamil. Apesar de ser difícil: é difícil dizer palavras como «uárrââparââm» (Nota: tentativa, provavelmente mal conseguida, de transcrição fonética...).
Ganhou um prémio da BBC; já fez várias digressões... Como é que está a lidar com o sucesso?
É um sucesso relativo. Mas é verdade que os últimos anos têm sido muito cansativos. Andar de país em país, de concerto em concerto, de aparição na TV em aparição na TV... Tenho que parar e fazer férias durante um mês. Principalmente para pensar. Mas não acho que esteja uma pessoa diferente... Estou, isso sim, cada vez mais confiante em cima de um palco. Estou a ficar uma melhor performer...
Dentro de alguns dias vai actuar pela primeira vez em Portugal. Quem é que a acompanha e como é o seu som ao vivo?
É mais forte, mais físico, tem mais energia. Não vamos duplicar o som do disco - mais a mais, sairia caríssimo levar os músicos todos para cima do palco (risos). Ao vivo sou eu, o Sam, Djanuno Dabo - percussionista da Guiné-Bissau -, e outro percussionista, Aref Durvesh - mas este é capaz de não ir porque está com alguns problemas. Mas eu gosto da luta de percussões africanas e indianas - é dinamite. E também um baixista.
Tem uma canção, «Woman», dedicada à deusa Kali. A Susheela concorda se eu disser que tem muitos braços e um género musical diferente em cada mão?
Sim, porque não?... Essa é uma boa maneira de ver a minha música...
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