30 janeiro, 2007

Maria Ana Bobone - O Fado Não Tem Uma Redoma à Volta


Maria Ana Bobone é uma das melhores fadistas emergentes da nova geração. Com uma carreira única onde entram aventuras «desviantes» com Ricardo Rocha e João Paulo Esteves da Silva, Maria Ana editou há um ano o excelente álbum de fado (e de outras coisas à volta) «Nome de Mar». A entrevista e a crítica que publico aqui hoje apareceram originalmente no BLITZ em Janeiro de 2006.


MARIA ANA BOBONE
É FADO (E À SUA VOLTA)

«Nome de Mar», o novo álbum de Maria Ana Bobone, mostra a fadista a assumir a música como carreira. Para levar a sério, mesmo que o fado seja, com ela, o fado e muitas coisas à volta.

Como é que se explica que, tendo já uma carreira tão longa no fado, este álbum («Nome de Mar»), seja o seu primeiro grande lançamento, em nome próprio, numa editora nacional?

Não gosto muito da palavra «carreira». Até costumo dizer que «carreira» só tenho uma, que é uma casa no Minho chamada a Casa da Carreira. Já canto profissionalmente há muitos anos, mas não investi de uma forma absoluta e total nesse campo. Porque achei que era importante tirar um curso, fazer outras coisas... Mas acabei sempre, por força do destino, por viver da música. E só o ano passado percebi claramente que era isto que eu queria fazer. E quero cantar como profissão, se for possível...

Como caracterizaria, então, os discos que ficaram para trás: «Alma Nova» (1993), partilhado com os fadistas Miguel Capucho e Rodrigo da Costa Félix; «Luz Destino» (1995), com o guitarrista Ricardo Rocha e João Paulo Esteves da Silva no cravo; e «Senhora da Lapa» (1999)...

Esses são discos que fazem parte da minha... carreira (risos) e que me honra muito estar neles. No primeiro tinha 19, 20 anos, e era uma debutante mas fi-lo com todo o empenho. Já o «Luz Destino» é um projecto do Ricardo e do João Paulo para o qual eu fui chamada para ser um terceiro instrumento. Não é um disco meu, é mais deles, mas foi o disco em que conheci o Ricardo e que marca a minha vida de uma forma transversal, porque é um disco em que há fado mas não há só fado...

Esse disco é quase um OVNI da história do fado...

Sim, tem fado com guitarra portuguesa e cravo e tem música contemporânea erudita, música dodecafónica, música improvisada do João Paulo... Mas adoro-o, é extraordinário. E fazer parte disso foi um privilégio...

E aí começa uma relação com o Ricardo Rocha que continua depois no «Senhora da Lapa» e agora no «Nome de Mar»...

Sim, e o Ricardo Rocha é muito importante porque com ele comecei a experimentar novos arranjos para o fado... E, neste novo disco, o desenho abstracto é meu, mas os arranjos e a direcção musical são dele e ele dá um cunho inconfundível a este trabalho. Sente-se que é ele que ali está... Foi ele que me permitiu que eu me aventurasse pelos caminhos por onde eu queria ir.

E neste álbum também vai buscar o João Paulo Esteves da Silva...

O João Paulo toca piano num dos temas («Senhora do Monte»), também porque neste álbum quis mostrar muitos dos caminhos da minha música. Isto, apesar de depois soar coerente e articulado. Mas tenho aqui fado, música barroca, música coral...

O que é que lhe deu para ir buscar tanta gente -- principalmente tantas vozes - para colaborarem no disco? No fado há raríssimos duetos e coros muito menos... Geralmente, a ideia é «olhem para a minha voz!»...

Eu não tenho essa postura. A música não é isso. E neste trabalho, com os guitarristas, o conceito é «nada é mais importante que nada», isto é, a minha voz não é mais importante do que os instrumentos deles. O facto de, geralmente, ser o cantor a receber todos os louros é uma coisa que me encanita um bocado. E não tem razão de ser. É também por isso que há um tema instrumental no disco. No dueto com a Filipa Pais é ela que começa a cantar, não sou eu, e não é um acto de generosidade, é porque fica muito melhor assim. Para além de que a Filipa tem das melhores vozes que eu conheço. E os coros aparecem... Este, mais do que um disco de fado, é um disco de música que radica no fado, parte do fado, mas vai para outros lados... No tema com os Tetvocal - que nunca achei que fossem aceitar o convite para participar - pensei num arranjo barroco para um coro, e o Ricardo começou por não ligar muito, mas depois apareceu-me com o arranjo, os Tetvocal aceitaram participar e o resultado foi espectacular... As Vozes Privadas são um grupo amador e participam num tema que não é um fado, o «Natal d'Elvas», que é uma pérola da música tradicional alentejana...

Outra pessoa importante do seu passado que «recuperou» para este disco foi o João Braga, do qual canta três fados, «Meu Nome É Nome de Mar», «Espera» e «O Achado»...

Trabalhei muito tempo com o João Braga e descobri, no reportório dele, coisas muito bonitas. E porque não cantar João Braga? Gosto dos temas e, ainda por cima, é ele o responsável pela minha vinda para o fado. E ele gostou imenso da minha interpretação...

Pode falar um pouco da escolha dos poetas que canta neste disco? Tem aqui poemas de Manuel Alegre, Miguel Torga, Pedro Homem de Mello e, também, Fernando Pessoa (em temas com música de Ricardo Rocha)...

Os do Fernando Pessoa, foi o Ricardo que me apareceu com os temas. Mas as minhas escolhas de poemas, normalmente, têm sempre a ver com uma preocupação estética, cuidada, em que o mais importante é a beleza. Neste disco não há propriamente uma mensagem, uma ideologia, mas quero transmitir... beleza. Se calhar, beleza é menos interessante do que tragédia ou drama... Mas é isso que eu quero transmitir através destes poemas e desta música... O poema «Meu Nome É Nome de Mar» foi um poema que o Manuel Alegre me deu, depois de o ter conhecido na Suécia e de me ter dito que ia fazer um poema para mim. Vou esperar sentada, pensei (risos)... Mas fez, e o poema chegou-me pela mão do João Braga, que o conhece muito bem e que, entretanto, já tinha feito a melodia para o poema... Esse poema dá nome ao disco porque me revejo muito nele. Sou uma pessoa muito sonhadora - o amor impossível; o outro lado da lua... - e esse poema tem que ver muito com essa minha característica. E com a diversidade que se encontra neste disco, uma diversidade que também pode ser uma característica e não um problema...

Porque é que decidiu fechar este álbum com uma canção religiosa, «Avé Maria»?...

Essa música fez parte do meu percurso em várias ocasiões. Cantava muitas vezes essa canção na missa e quando eu cantava essa canção, na missa ou em casamentos, havia pessoas que se sentiam muito tocadas por ela. E houve pessoas que me perguntavam onde é que podiam encontrar uma gravação minha dessa canção do Frei Hermano da Câmara. Para responder a essas pessoas decidi incluir essa canção como tema-extra no álbum. E é uma canção que já faz parte de mim...

Considera-se como fazendo parte da chamada «nova geração do fado» ou acha que, de alguma maneira, está fora dela?

Eu canto fado e vivo do fado. Posso fazer desvios, mas a essência, a raiz, está no fado... É verdade que cada pessoa tem a sua abordagem e a minha é a minha...

Este disco vai ser apresentado ao vivo?

Sim, vai haver um concerto de apresentação - que, curiosamente, é o meu primeiro concerto a solo em Portugal -, dia 4 de Fevereiro, no Auditório Romeu Correia, em Almada. Isto, quando já fiz muitos concertos a solo noutros países. Essa [a aposta no mercado português] é outra das razões porque troquei a AM Records [editora americana mas com sede em Tóquio] pela Farol. Muitas vezes os discos saíam e cá não tinham expressão, eram para guardar a gaveta...


MARIA ANA BOBONE
«NOME DE MAR»
Vachier/Farol

Desde há muito tempo que o fado já não é só fado ou pode ser muitas coisas ancoradas no fado mas dele mais ou menos distantes. «Nome de Mar», o novo álbum de Maria Ana Bobone, leva a cantora para os territórios que tem experimentado ao longo dos anos, a solo ou com os seus cúmplices habituais – Ricardo Rocha que, neste disco, brilha a grande altura na guitarra portuguesa (ouvi-lo num disco é sempre um privilégio!) e é ainda o responsável pelos arranjos e direcção musical, e o pianista João Paulo Esteves da Silva, que aqui a acompanha em «Senhora do Monte» -, desde o fado, sim (e o álbum é, em larga maioria, um álbum de fado), mas também música barroca, música tradicional portuguesa, música religiosa («Avé Maria») ou algo muito dificilmente catalogável (os dois lindíssimos temas com música de Ricardo Rocha sobre poemas de Fernando Pessoa). O mais espantoso, e bonito, é que a voz de Maria Ana Bobone move-se completamente à vontade nestes territórios diversos. E casa na perfeição com as outras vozes que convocou para este disco: no dueto com Filipa Pais e nas colaborações com as Vozes Privadas (no tradicional alentejano «Natal d’Elvas») e os Tetvocal (em «Súplica», fado na voz de Maria Ana, barroco nas vozes dos Tetvocal). Por sua vez, o génio de Ricardo Rocha – se preciso fosse – fica bem marcado na versão da «Canção de Alcipe», onde Maria Ana deixa os músicos brilhar sozinhos. (8/10)

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