02 janeiro, 2007
Dossier Guitarra Portuguesa - 5º Fascículo
Um dos trabalhos que mais prazer me deu fazer durante os meus muitos anos de BLITZ foi este dossier sobre a Guitarra Portuguesa, em finais de 2004. Ao longo destas semanas, e espaçadamente (para não cansar e porque há outras coisas para falar), aqui vão ficar entrevistas com guitarristas da nova geração e um construtor de guitarras que com ele transporta o saber de gerações, uma possível História da Guitarra Portuguesa, uma discografia básica, etc... Fiz este trabalho com muito amor. Leiam-no também assim, por favor.
ECOS DISTANTES
De onde vem a guitarra que viria a chamar-se portuguesa?... Da cítara? Da cítola medieval (na foto)? Da guitarra inglesa? Da guitarra mourisca?... As origens de um dos mais antigos cordofones nacionais em tentativa de explicação.
E mais perguntas... Há uma guitarra portuguesa? Não, há pelo menos três (as de Lisboa, Coimbra e Porto, cada uma com as suas características próprias). E o instrumento é de origem portuguesa? Também não, embora tenha sido aqui que tenha tomado a(s) forma(s) que actualmente lhe(s) conhecemos no último século e meio. E é só tocada em Portugal? Agora sim, mas no século XIX era ainda popular, com outros nomes, em vários países. E mais perguntas e respostas, recolhidas em vários sítios de internet (principalmente no imprescindível at-tambur.com) e livros consultados, e aqui apresentadas em jeito de «digest» para principiantes...
Segundo José Lúcio (construtor de cordofones e investigador), em Portugal «a palavra guitarra deve ser unicamente aplicada à guitarra portuguesa (Porto, Lisboa e Coimbra) e a palavra viola a um outro instrumento, com uma caixa acústica em forma de oito.... Em vez de "Guitarra Clássica" devia ser Viola Dedilhada, para não confundir com a Viola de Arco, ou simplesmente Violão. A palavra Violão é de grande utilidade para distinguir o instrumento de 6 cordas, das violas de arame portuguesas (Amarantina, Braguesa, Toeira, Beiroa, Campaniça, Arame da Madeira, da Terra, S.Miguel, Açores, e de 15 e 18 cordas da Terceira, Açores)».
E quais são as principais diferenças entre as guitarras de Lisboa, Coimbra e Porto?... Ainda segundo José Lúcio, «a Guitarra do Porto, com uma caixa acústica de menor dimensão e uma "voluta" terminando em cabeça humana de animal ou flor; a Guitarra de Lisboa, com uma maior caixa de ressonância e uma voluta em caracol; e finalmente a escola de Coimbra, com uma escala maior, afinando um tom abaixo da de Lisboa e voluta em lágrima. A escola do Porto, que fabricava Guitarras mais pequenas, perdeu adeptos e está praticamente extinta, só se fabricando por encomenda».
Actualmente, o uso de instrumentos semelhantes à guitarra portuguesa caiu em desuso noutros países, mas no séc. XIX não era assim. Segundo Pedro Caldeira Cabral (músico, compositor e estudioso de instrumentos antigos), «o instrumento a que damos hoje o nome de Guitarra Portuguesa foi conhecido até ao século XIX em toda a Europa sob os nomes de Cítara (Portugal e Espanha), Cetra (Itália e Córsega), Cistre (França), Cittern (Ilhas Britânicas), Cister e Zittern (Alemanha e Países Baixos)».
A guitarra portuguesa poderá ter origem árabe?... Parece que não. Segundo Ernesto Veiga de Oliveira (musicólogo já falecido), «tal orientação funda-se em geral, sem crítica, na razão meramente verbal de uma suposta equiparação do nosso instrumento actual à velha "guitarra mourisca" ou "sarracenica", e no facto da sua associação ao fado, a que essas mesmas orientações atribuem também, por via de regra, origens árabes... A "guitarra mourisca" está na origem de uma linhagem instrumental completamente diferente - as mandolas e mandolinas -, e que a associação da actual guitarra ao fado é um fenómeno muito recente».
Qual é então a origem remota da guitarra portuguesa?... Diz Manuel Portugal (guitarrista) que «etimologicamente, a designação de Guitarra advém do vocábulo grego Kythara, que mais tarde os latinos converteram em Cithara. Conta uma lenda que este nome provém de Cyterón, o nome de uma montanha situada algures entre a Beócia e a Ática. Mas há quem, discordando desta opinião, defenda que deriva sim de Cythara, o antigo nome da ilha grega Cerigo, a qual era considerada como o paraíso da poesia e do amor, e na qual existia um templo dedicado a Vénus».
Pedro Caldeira Cabral defende que a guitarra portuguesa tem como origem directa «a Cítara europeia do Renascimento, por sua vez filiada na Cítola Medieval, a actual Guitarra Portuguesa sofreu importantes modificações técnicas no último século (nas dimensões, no sistema mecânico de afinação, etc.), tendo no entanto conservado a afinação peculiar das cítaras, igual número de cordas e a técnica de dedilho própria deste género de instrumentos. Em Portugal, o seu uso está documentado desde o século XIII (Cítola), nas mãos de trovadores e menestréis, e no século XVI (Cítara), estando de início confinado aos círculos da côrte, terá posteriormente sido alargado a outros níveis populares e por isso encontramos referências à utilização da Cítara no teatro e também nas tabernas e barbearias, sobretudo nos séculos XVII/XVIII».
E onde é que entra a guitarra inglesa (na foto)?... Segundo Manuel Portugal, a guitarra inglesa foi «introduzida [em Portugal] no século XVIII, no Porto, difundindo-se depois rapidamente a norte de Coimbra. Isto poderá explicar as diferenças de construção, de estrutura e de afinação entre a guitarra de Coimbra, com origem no Porto, e a de Lisboa», acrescentando que «a conclusão que se tira deste estudo é que a evolução da Guitarra se pode formular a partir de uma teoria baseada nas coincidências existentes entre estes dois instrumentos - o Cistro e a Guitarra Inglesa - dando-se a adopção de elementos de um e de outro e mantendo-se a sua prática ligada, desde o início, à musica de tradição oral. Tal facto não terá também sido alheio à deslocação da Corte para Coimbra, sendo bastante provável que estes dois antepassados da guitarra tenham continuado a ser cultivados entre nós, mesmo depois da época trovadoresca».
E como surge a associação da guitarra portuguesa ao fado?... Segundo a explicação simples, mas sugestiva, do guitarrista José Pracana, «de facto o "acasalamento" da guitarra com a viola, é perfeito. A guitarra é um instrumento que se adapta com facilidade aos "requebros" e à ternura das canções galantes e "sentidas" e adaptando a sua "afinação natural" para a "afinação do fado" passa a ser preferida ao seu rival, o bandolim». O casamento acontece ainda no século XIX, mas é no século XX que tem o seu desenvolvimento mais íntimo e quase exclusivo (há gravações de fado do início do século XX em que os fadistas eram acompanhados a piano).
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