11 janeiro, 2008

Os Ganhões de Castro Verde, Ronda dos Quatro Caminhos e Cramol - A Tradição (E Só Alguns Desvios)


Os leitores habituais deste blog sabem que não sou um fanático da «tradição», pelo contrário: também gosto de desvios, caminhos paralelos, fusões, avanços para o futuro, misturas... Mas é tão bom, tão bom!, mergulhar de vez em quando num caldo de tradição (quase) absoluta. E os álbuns mais recentes dos alentejanos Os Ganhões de Castro Verde (na foto), da Ronda dos Quatro Caminhos e das Cramol levam-nos de volta à tradição, mesmo quando há lugar para alguns «desvios».


OS GANHÕES DE CASTRO VERDE
«TERRA»
(Ed. de Autor/Megamúsica)

«Terra - Os Ganhões de Castro Verde - Antologia 1972-2006» é um documento imprescindível para quem quer conhecer o que de mais profundo, verdadeiro e único tem o cante alentejano, polifonias mágicas que se espalham pela planície marcando os ciclos da natureza, do trabalho, do convívio dos «ganhões», de um sonho bonito chamado Revolução de Abril, aqui cantado por este grupo de homens com uma luz de esperança imensa. Não por acaso, a antologia - que agrupa gravações do grupo dispersas por vários LPs e CDs ao longo das últimas três décadas e ainda dois inéditos - começa com canções dedicadas a Catarina Eufémia e à revolução, para além de uma versão de «Grândola, Vila Morena», de José Afonso, antes de avançar para originais e inúmeros tradicionais alentejanos. O álbum, duplo, contém um luxuoso livreto com textos que contextualizam a história d'Os Ganhões, do próprio cante alentejano e do Alentejo. De um deles, do escritor José Luís Peixoto, cito aqui: «O cante é a voz dessa terra infinita (o Alentejo). Os homens descem pelas ruas quando voltam do campo ao fim da tarde. Nos olhares, trazem o pó queimado pelo sol. Nessa hora, pouco antes do sol-pôr, nasce uma aragem nos rostos dos homens. Essa aragem fresca passa pelas pedras das ruas, pela cal das casas onde houve vida e morte, pelos sorrisos, pelas crianças que brincam na rua. O cante é essa aragem». (9/10)


RONDA DOS QUATRO CAMINHOS»
«SULITÂNIA»
Ocarina

Os últimos anos de produção artística da Ronda dos Quatro Caminhos têm sido uma surpresa, boa!... De um grupo urbano de música popular, a Ronda tem vindo gradualmente a transformar-se numa verdadeira instituição - no bom sentido da palavra - que congrega em si, ou à sua volta, muitos outros músicos e grupos, tanto estrangeiros (cf. no álbum «Terra de Abrigo») como portugueses e... de diversas áreas, da música tradicional à música erudita. E essa «fórmula» está ainda mais refinada no novo álbum, «Sulitânia» (o trocadilho é um achado!), em que a Ronda pega em temas tradicionais alentejanos e da Beira Baixa (principalmente de Monsanto, zona em que os adufes são tão «árabes» quanto as músicas do sul de Portugal) e os embala numa produção de extremo bom gosto em que estão bem presentes a música popular urbana, a música de raiz tradicional e os elementos «clássicos». Com colaborações das Adufeiras de Monsanto, do grupo alentejano Coral Guadiana de Mértola, do coro clássico Eborae Musica, do Quarteto Opus 4 e dos Cantares de Évora, «Sulitânia» é um bom exemplo de como se pode «estilizar» a tradição sem que a tradição se perca. Nunca. (8/10)


CRAMOL
«VOZES DE NÓS»
(Ocarina)

Lembro-me como se fosse hoje de uma das mais belas (e aterradoras!) experiências sónicas que já tive: há muitos anos, as Cramol editaram o seu primeiro álbum (e este «Vozes de Nós» é só o segundo num percurso de muitos, muitos anos...) e fui entrevistá-las ao local em que ensaiavam: a Biblioteca Operária Oeirense, em Oeiras. Antes da entrevista, a Margarida Antunes da Silva convidou-me a assistir a parte do ensaio do grupo e eu concordei. De repente, tinha vinte mulheres a cantar canções das Beiras, do Minho, do Alentejo..., todas à minha volta, sem amplificação alguma que não as suas cordas vocais. Juro: é mais forte, mais violento, que assistir a um concerto dos Sonic Youth ou dos Caveira na fila da frente!... Não é bem a mesma coisa, mas ao ouvir agora «Vozes de Nós» tive quase a mesma sensação: a de que estas mulheres (mesmo sendo mulheres da cidade) transportam em si um saber tão antigo, tão arrepiante, tão... nosso, nas suas vozes que cantam canções de um país inteiro. Vozes que nos 46 temas (46 temas!) deste álbum nos vão entrando pela pele como uma memória boa e verdadeira. (8/10)

14 comentários:

Edward Soja disse...

Três discos essenciais para a música portuguesa. E o primeiro pela simples razão (só essa bastava) de que discos dos Ganhões só em vinil...

Quanto aos Cramol... ainda não o vi à venda, mas ando na mira dele.

laura disse...

Estes três banhos de tradição deixaram-me muito curiosa. Para além da Ronda dos Quatro Caminhos, que já conheço e gosto, fiquei a pensar na aragem alentejana que tão bem descreve o José Luís Peixoto... Sendo da Beira, fiquei a pensar nessa aragem de vozes alentejanas. Porque, afinal, "aragem" também tem a ver com o revolver da terra. Entretanto, se me permites, tens uma pequena gralha no último texto, das Cramol. Falta um "a" em "fil da frente". :))) Ou estavas a referir-te à Feira Internacional de Lisboa? :)))

António Pires disse...

Eduardo:

Sim, apesar das diferenças, são os três essenciais mesmo!!! E acho que já estão todos à venda... Procura bem ou, então, se não os encontrares, dir-te-ei onde (ou a quem) deves dirigir-te.

Um abraço...

Laura:

Duplamente bem visto :) Sim, «aragem» tem um duplo sentido lindíssimo!! De «ar» e de «arar» (a terra), o que também faz todo o sentido!!!... E obrigado por teres detectado mais uma gralha, que já está corrigida!!!

Beijos...

Anónimo disse...

Deve Ser Interessante

Anónimo disse...

Lovely Pictures!! Happy New year

António Pires disse...

Caro Anónimo (ou Cara Anónima):

São, todos eles, bastante interessantes! E não se quer identificar?... Prefiro sempre saber quem me visita (visita que agradeço) e quem se dá ao trabalho de deixar um comentário (que eu também agradeço).

Mimi Mee:

Thank you! And a Happy New Year to you too :)

Anónimo disse...

«Três discos essenciais (...)E o primeiro pela simples razão (...) de que discos dos Ganhões só em vinil...»

Quanto aos Ganhões de Castro Verde, existe, pelo menos, uma gravação em CD. O disco chama-se «modas», é de 1994 e foi produzido por Beppe Greppi e Maurizio Martinotti (este, salvo erro, dos La Ciapa Rusa). Foi distribuído pela Etnia. Sei disto, porque tenho o disco em casa.

Anónimo disse...

Interessantes vozes de nós, estas à solta na aragem das palavras Antoninas a avivar memórias do que já andava quase esquecido na camada mais funda da pele. Ganhões foi a palavra que me obrigou a parar. Digamos que por causa de uma certa característica de extracção rural. O meu voto vai para a Ronda dos Quatro Caminhos que, tudo leva a crer, promete cantos de espanto e outros embalos.
:)

Beijos.

António Pires disse...

Rui G:

O Eduardo estava, por certo, a referir-se aos dois primeiros trabalhos d'Os Ganhões, que só existem em LP e nunca foram reeditados em CD. Mas o Rui tem razão: Os Ganhões editaram vários CDs antes desta colectânea - «Modas» (1994), «É Tão Grande o Alentejo» (1997) e «O Círculo Que Leva a Lua» (2003). Os LPs foram «Castro Verde É Nossa Terra» (1975) e «Os Ganhões de Castro Verde» (1980).

Obrigado e um abraço

António Pires disse...

MGB:

Belas palavras, as tuas. Obrigado :)))

Beijos.

Rini Luyks disse...

Cramol (trocadilho de Clamor, penso...) conheço através do (ainda?) director musical Luís Pedro Faro, nos tempos que fiz parte de um outro projecto emblemático dele: o Coro da Universidade Téchica de Lisboa, infelizmente desaparecido, mas com um currículo fora de vulgar para um grupo de cantores amadores. Lembro-me como fomos cantar em catedrais e capelas de Bruxelas durante a Europália 1991, repertório de música coral medieval e renascentista, belas recordações (desculpa-me este aparte, António, mas o maestro merece esta pequena homenagem ...).

António Pires disse...

Rini:

Sim, Cramol é um anagrama de Clamor. Mas não sei se o Luís Pedro Faro ainda está ligado ao grupo. Sei que o esteve durante muitos anos, mas neste novo álbum, gravado na primeira metade de 2007 o nome que aparece como produtor e director musical é o de Eduardo Paes Mamede, com assistência de produção de Domingos Morais. Mas fica aqui a tua homenagem, mais que justa! Já agora - e fazendo a «agulha» para um assunto completamente diferente -, onde é que eu compro o disco da tua Kumpa'nia Al-gazarra???

Um abraço

Rini Luyks disse...

Pois, António, o meu anúncio no blogue "Anacruses" foi um pouco rápido e entusiasmado... o CD acaba de sair da fábrica, há contactos com a FNAC, mas a distribuição está a ser tratada pela produtora Marta Almada (prod.algazarra@gmail.com).
Ando agora desligado da banda por causa de trabalho de teatro (reposição do musical "A Fábrica de Nada", Artistas Unidos, estreia no dia 16 em Almada, depois alguma digressão e carreira de um mês na Malaposta em Fevereiro/Março).

António Pires disse...

Rini:

OK, vou ficar à espera... E que corra tudo bem nas tuas actividades teatrais (também já ouvi dizer muito bem do «Drákula» :)

Um abraço...

Um abraço