17 março, 2008

Coimbra em Blues - Os Sacerdotes e Os Acólitos


Os blues são uma religião estranha. Uma religião em que se encontram, ou se encontraram, se cruzam, ou se cruzaram, feiticeiros africanos das margens do Niger, xâmanes de voodoo, pastores evangélicos do Mississippi, pregadores lunáticos do fim do mundo e dos vários graus do pecado... e de todo mal que se pode encontrar em casa ou no fundo de uma garrafa. Pactos faustianos, relatos de sessões de sexo contra a parede ou histórias de crimes sangrentos e de traições amorosas fazem parte dos evangelhos do género. Aliás, como de quase todos os outros evangelhos conhecidos.

E, na sexta edição do Coimbra em Blues, no Gil Vicente, houve sacerdotes - e até uma sacerdotiza - de variadíssimas tendências dos blues, uns blues que se podem encontrar em todo o lado: dos Estados Unidos a Portugal, de África a Inglaterra. E para a primeira celebração, a abrir o festival, veio da América o lendário guitarrista Gary Lucas que, juntamente com os Dead Combo - os primeiros acólitos valorosos dos muitos que se seguiriam -, deu um concerto inesperado e fabuloso: com as guitarras de Lucas em primeiro plano (principalmente quando ele se atirava a solos na sua guitarra-dobro National) e a guitarra de Tó Trips e o contrabaixo de Pedro Gonçalves a acompanhar, os blues tomaram uma dimensão diferente e fizeram-se muitas outras músicas, soando por vezes a Carlos Paredes em ácidos, de outras a Morricone em transe índio, de outras ainda a Jeff Buckley sem a voz (e aqui já era mais fácil ter essa sensação: Gary Lucas e os Dead Combo interpretaram dois temas co-compostos por Lucas com Jeff Buckley: «Mojo Pin» e «Grace»). Na segunda noite, a dupla inglesa de cantores e guitarristas Steve Morrison e Billy Jenkins deu outro espectáculo fantástico, com Jenkins a servir de sacerdote - ele é o padre que benze o público no início do espectáculo, ele é o guitar-hero frenético, ele é o cantor da voz profunda e grave e por vezes assustadora - e Morrison de acólito perfeito - ele é o contraponto de suavidade, de calma e lirismo. E os dois, separados ou em uníssono, resultam incrivelmente bem. Uma ligação que, infelizmente, não aconteceu no concerto seguinte, o dos Afrissippi, projecto que junta o cantor e guitarrista (semi-senegalês, semi-mauritano) Guelel Kumba com vários músicos norte-americanos, todos eles em busca das raízes dos blues algures na zona mandinga. Raízes que estão lá - e basta ouvir Ali Farka Touré, os Tinariwen ou Afel Bocoum... - mas que aqui, nos Afrissippi, soam mais a tese do que a música verdadeira. Kumba canta em fulani, a sua música é feita de muitas músicas antigas africanas, as pontes com os blues estão lá, bem nítidas, mas os acólitos puxam sempre aquilo para os blues-mesmo-blues e há ali quase sempre uma certa sensação de artifício e de união mal resolvida. Mas se, nos Afrissippi, o artifício incomoda, o mesmo artifício é incrivelmente bem-vindo no concerto que abre a noite seguinte: o de Ruby Ann (ela que, em Coimbra, liderava os Boppin'Boozers), cantora e compositora portuguesa agora radicada em Paris. Sacerdotiza, patroa, pin-up e excelente entertainer, Ruby Ann e os seus fantásticos músicos serviram um festim de blues, rock'n'roll, rockabilly, country, vaudeville, tudo junto ou separado, e até uma versão de um tema de Patsy Cline. A festa estava lançada. Uma festa que continuaria, em grande, com o cantor e muitíssimo bom guitarrista - ele, que constrói as suas guitarras, seja um «guinjo», mistura de banjo com guitarra eléctrica, ou uma guitarra de lata feita a partir de uma caixa de tabaco - Super Chikan (na foto). Viajando por várias frentes dos blues - das mais clássicas aos seus cruzamentos com o rock (ele raiou os limites do... heavy-metal!) ou do funk (ele raiou os limites do... disco-sound!), e muitas vezes em distorções hendrixianas, Chikan deu um espectáculo memorável, festivo, incrivelmente bem-disposto e onde foi muito bem acolitado por uma teclista incendiária e um inesperado convidado na harmónica: um rapaz francês branquinho que toca aquilo como se tivesse nascido no sul dos Estados Unidos e fosse mais negro que o carvão. Inesquecível!

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