08 janeiro, 2012

Colectânea de Textos no jornal "i" - XXV


O Humor (e a Música!) de Raul Solnado

Se Herman José e os Gato Fedorento foram os grandes nomes do humor feito em Portugal nas últimas três décadas, antes deles os reis do humor foram os grandes actores da época clássica do nosso cinema (António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho) e, já mais na televisão e no teatro e não tanto no cinema, Raul Solnado (aqui em cima, numa foto fabulosa de Eduardo Gageiro). Com uma imaginação delirante, um sentido de humor finíssimo e um timing perfeito em muitas das suas criações, Raul Solnado foi, ainda por cima, um exemplo de coragem quando, só para dar dois exemplos óbvios, fintava a censura e falava da Guerra Colonial de forma implícita em rábulas como "A Guerra de 1908" e "É do Inimigo?" - não por acaso, o seu programa "Zip-Zip" (com Carlos Cruz e Fialho Gouveia) levou à televisão, anos depois, cantores de intervenção como José Jorge Letria, Manuel Freire ou Francisco Fanhais. Agora, e em boa hora, a Valentim de Carvalho/iPlay editou uma caixa com três CDs protagonizados por Raul Solnado, "Façam o Favor de Ser Felizes". Nela encontramos rábulas históricas, sketches do "Zip-Zip", números de Revistas e algumas canções raras de Solnado. Ele que podia ser o fadista gingão de "Fado Maravilhas", o cantor de flamenco com um inesperado "duende" latino-americano a interpretar "El Meson del Gitano", o heterónimo contestatário com o improvável nome Ludgero Clodoaldo, em "Senhor, Estou Farto", ou as personagens que encarnou no Teatro de Revista em "Flausinas", "Chamei-lhe Mamã, Chamei-lhe Papá" e os clássicos absolutos "Timpanas" e "Os Tripeiros".



Anaquim (Aos Molhos)

É bom quando um novo projecto de música portuguesa consegue dividir a crítica. Isso aconteceu no passado com a Banda do Casaco (havia os que viam nela um conceito completamente revolucionário; os outros diziam que era a direita a gozar com a tradição portuguesa), os Heróis do Mar (e, mais uma vez, as questões políticas e estéticas, mais dos que as musicais, fizeram-se ouvir) ou os Madredeus (enquanto alguns os endeusavam, outros chamavam-lhes "o Mateus Rosé da música portuguesa" ou "fado de câmara"). Não estou aqui a tomar partido por uma ou outra facção; estou apenas a constatar o facto de que alguns dos maiores nomes da música portuguesa dos últimos quarenta anos - vistos "a posteriori" - começaram por dividir as opiniões e por não ser nada consensuais. E isto vem a propósito de um novo grupo, os Anaquim, que estão igualmente a ser vistos de maneiras completamente opostas pela crítica e que eu, passe a minha modesta opinião, acredito que poderão vir a ser um caso muito sério de qualidade e longevidade da nossa música. E por uma razão simples: nunca algum grupo nacional soou tão português tendo no seu som, perfeitamente incorporados, tantos géneros externos: bluegrass, rockabilly e rock'n'roll, rembetika grega e klezmer judeu, rancheras mexicanas e baladas valsadas, jazz manouche e cabaret berlinense. E se, no fim, tudo isto acaba a soar mais a Sérgio Godinho (até pela qualidade das letras) do que a qualquer outra coisa, essa é mesmo a prova final.



O Segredo do Stockholm Lisboa Project

Em Portugal são cada vez menos raras as ligações, trocas e misturas entre músicos portugueses e de outras nacionalidades e em vários géneros musicais, seja na música erudita e no jazz, no rock e nas músicas electrónicas. Mas é nas inúmeras áreas da folk e da world music que essas trocas são cada vez mais visíveis e frutuosas. A questão é que essas trocas tendem, muitas vezes - e nada contra! - a ter como base uma língua comum (o português e as suas línguas irmãs: o galego, os crioulos ou o português do Brasil) ou até músicas primas entre si. Dois exemplos: por um lado o fado com as mornas e os chorinhos, por outro a música alentejana com o flamenco ou a música árabe. Mas o grupo de que falo hoje surpreende por fazer uma junção muito menos habitual: o Stockholm Lisboa Project junta músicos portugueses - a cantora Liana e o violinista Sérgio Crisóstomo - e suecos - Filip Jers na harmónica e Simon Stalspets na mandola nórdica e harmónica. O resultado é uma música nova que tanto deve ao fado de Lisboa e de Coimbra como às polskas escandinavas, à música do Ribatejo como aos blues. E o sucesso que o grupo anda a fazer internacionalmente com esta "fórmula" inesperada já lhes valeu, pelo seu segundo álbum "Diagonal", o German Record Critics’ Award 2009 e agora uma nomeação para um dos mais importantes galardões mundiais de world music: os prémios atribuídos pela revista "Songlines", para os quais estão também nomeados os Deolinda.



Lusenas: Ponte entre Portugal, Galiza e Irlanda

Se a semana passada falei aqui dos Stockholm Lisboa Project, grupo luso-sueco que junta sonoridades portuguesas e escandinavas e já anda aí pelas bocas do mundo, hoje falo de um grupo quase desconhecido, com objectivos bem mais modestos, mas que também merece um reconhecimento alargado: os Lusenas, uma espécie de super-grupo da folk portuguesa que junta a magnífica cantora e pandeireteira Sara Vidal (desde há alguns anos, e desde a saída de Rosa Cedrón, é ela a lusa vocalista de uma das maiores instituições da música galega, os Luar na Lubre), Luís Peixoto (Dazkarieh) no bouzouki, bandolim e bodhrán, Miguel Quitério (Tanira) nas flautas, gaita galega e uilleann pipe - a gaita-de-foles irlandesa - e Miguel Veras (Realejo e acompanhante de Júlio Pereira nas suas mais recentes aventuras) na guitarra. Ainda sem disco gravado, mas com música disponível no myspace, e com poucos concertos dados (em Portugal e Galiza), os Lusenas são um caso raro de excelente fusão de música tradicional portuguesa com sonoridades externas. Oiçam-se as suas versões de "A Saia da Ciumenta" e "Olha a Triste Viuvinha" e como, aqui, as influências igualmente retiradas da música galega e da música irlandesa fazem todo o sentido. Os Lusenas pensam fazer apenas alguns concertos dispersos em bares, pequenos festivais e pouco mais. Mas seria uma pena se não avançassem, pelo menos, para a gravação de um álbum.

(Textos publicados no jornal "i" durante o mês de Março de 2010)

1 comentário:

Francisco guedes disse...

Otima reportagem sobre o grupo Os Lucenas, aqui no Brasil não conhecemos, só através de pesquisas.....

Maravilhosa a foto da vocalista SARA VIDAL, linda por excelência...

Parabéns

Francisco Guedes
Fortaleza-Ceara