15 julho, 2006

Ojos de Brujo, Macaco e Amparanoia - Som Mestiço em Dose Tripla


Do caldeirão em ebulição permanente que é o «movimento» do Som Mestiço de Barcelona e de outras zonas da Catalunha e de Espanha, saíram nos meses mais recentes novos álbuns de três dos seus grupos mais emblemáticos: os Ojos de Brujo, Macaco e Amparanoia. Aqui se recupera a crítica publicada originalmente no BLITZ a «Techarí», dos Ojos de Brujo (e uma entrevista com Xavi, percussionista da banda - na foto), e se dá conta, em notas breves, dos novos álbuns de Macaco, «Ingravitto», e Amparanoia, «La Vida Te Da».

OJOS DE BRUJO
«TECHARÍ»
PIAS/Edel

A mais excitante banda catalã de fusão do flamenco com muitas outras músicas. E cada vez mais.

A fusão de músicas tradicionais com outras linguagens musicais - digamos, «modernas» - pode redundar para a foleirada absoluta (os Deep Forest são um bom, de tão mau, exemplo) ou para exemplos maiores de arte musical – e aqui entram facilmente propostas tão díspares como os Hedningarna ou DJ Dolores, os Gaiteiros de Lisboa ou Lhasa, Manu Chao ou os Asian Dub Foundation. E são grupos e artistas como estes que nos levam a questionar o que é, na realidade, a música tradicional, agora: uma entidade sagrada que não se pode alterar ou uma entidade em permanente mutação e que, desde sempre, incorporou elementos estranhos àquilo que veio, mercê de uma «verdade» histórica, etnográfica ou antropológica qualquer, a chamar-se «tradição».

Os Ojos de Brujo são, hoje, um dos exemplos maiores – o mais diversificado mas ao mesmo tempo o mais coerente e rico de cores - de como é possível modernizar o flamenco, a rumba catalã, as bulerias, as soleás, sem perder o duende (o espírito, a alma, a possessão) do flamenco e mantendo um alambique de sangue quente a borbulhar em permanência. E se já Bari, o seu segundo álbum, mostrava a banda de Marina e sus muchachos a misturar, muito bem, géneros musicais de raiz andaluza e catalã com hip hop, funk, ritmos latino-americanos, etc, etc, o novo álbum Techarí leva o conceito ainda mais longe e incorporam cada vez mais músicas nas suas canções. Aqui, uma buleria pode conviver facilmente com o funk; o banghra anglo-indiano pode namorar com o tango; o hip-hop, o drum’n’bass e as electrónicas podem aparecer onde menos se espera (isto se não se conhecer o grupo); e - sem hierarquias - o jazz latino, a música cubana e mexicana, o reggae, o thrash metal e a música árabe também podem entrar ali como faca em manteiga e como se sempre tivessem feito parte do flamenco. E, sempre, sempre, com o flamenco e seus derivados a servirem de base aos delírios fusionistas ou -- como no segundo tema do álbum, «Sultanas de Merkaillo», no sexto, «Tanguillos Marineros», no nono, «Bailaores» ou no 14º, «Nana» (em que o flamenco rima com música do norte de África) - a serem tratados com paixão e respeito e nestes quatro exemplos mais próximos de uma raiz, de uma verdade primordial, qualquer (relembre-se: o flamenco é uma música híbrida inventada há cerca de quinhentos anos por ciganos, muçulmanos e judeus, todos fugidos à Inquisição espanhola).

Junte-se a isto letras intervenientes e convidados de luxo como Nitin Sawhney, Faada Freddy do grupo rap senegalês Daara J, Prithpal Rajput dos Asian Dub Foundation, o guitarrista Pepe Habichuela ou a cantora Martirio (outra renovadora do flamenco) e estamos novamente (porque «Bari» já era muito bom!) em presença de um dos melhores álbuns dos últimos tempos da chamada, palavrão!, world music. (9/10)

MACACO
«INGRAVITTO»
EMI

«Com os pés na terra e as mãos no ar»: a isto chama Macaco (e a sua banda homónima) «Ingravitto». Ou é só uma outra maneira de dizer «Raices y Antenas» (pois!). E isso faz todo o sentido: o novo álbum de Macaco é como se fosse o disco 3 do duplo «Entre Raices y Antenas», que estava dividido numa primeira rodela, «Raices», e uma outra, «Antenas», se bem que nem sempre fosse completamente perceptível essa separação. Aqui, no novo álbum, as raízes e as antenas, a terra da Terra e os satélites do céu misturam-se definitivamente para uma viagem por várias culturas - oiça-se o espantoso «Brazil 3000», com os brasileiros B-Negão e Nação Zumbi, «Como El Agua Cale», com flamenco, jazz, música árabe e ragga em luta permanente, ou o igualmente fortíssimo «Bajo Un Mismo Sol» -, em que este lado bom da globalização é, ao mesmo tempo, um meio (musical e artístico) e um fim (político, de intervenção social, ecológica, humana...). Não por acaso, as letras são cantadas em espanhol, português, inglês, francês... A destoar, só alguma moleza e preguiça pop em alguns temas... (7/10)

AMPARANOIA
«LA VIDA TE DA»
Wrasse Records/Harmonia Mundi

Moleza e preguiça são coisas que não existem em «La Vida Te Da», o novo álbum dos Amparanoia, grupo que ganhou o ano passado o prestigiado prémio da BBC para melhor grupo world music da Europa. Neste quinto álbum, Amparo Sanchez e os seus rapazes abrem o baile com uma rumba poderosíssima, «La Vida Te Da», e seguem depois em viagem por variadíssimos lugares, às vezes numa mesma canção: ska e mariachis, salsa e outros géneros cubanos com fartura e também muito reggae (não falta, num dos bónus, uma lindíssima versão de «Redemption Song», de Bob Marley, mas já antes, em «Me Voy Lejos», há um reaggaezinho delicioso). «La Vida Te Da» é um álbum maduro, adulto, riquíssimo musicalmente e com letras cada vez mais apuradas na junção dos sentimentos pessoais de Amparo e da sua visão, empenhada e activa, do mundo que a rodeia. (9/10)


ENTREVISTA
OJOS DE BRUJO
O FLAMENCO E TUDO O RESTO

Os catalães Ojos de Brujo estão de volta com o seu cocktail, cada vez mais bem apurado, de flamenco com muitas outras músicas lá dentro. «Techarí», o terceiro álbum do grupo, foi o mote para a conversa com Xavi Turull (aka Capitán Cresten), o percussionista que levou para a banda sons de tablas indianas, percussões afro-cubanas e a técnica do cajón aprendida na escola do flamenco.

Numa entrevista recente, alguém dos Ojos de Brujo disse, a propósito de Techarí, que este é um disco mais flamenco que os outros... Concorda?

Não somos nós que o dizemos. Toda a gente o diz. Mas, ao mesmo tempo, creio que é um disco muito mais aberto e variado do que os outros. Neste há mais diferenças entre todas as canções, há muitos estilos diferentes em diferentes canções. O que se passa é que a actual formação dos Ojos de Brujo tem como elementos muita gente que trouxe o flamenco de experiências anteriores. No primeiro disco, por exemplo, só o Ramon, a Marina e eu é que tínhamos essa base. Agora, todos nós temos essa raiz flamenca... A nossa música não está mais flamenca, mas quando é flamenco é mais flamenco.

Como é entendido o flamenco em Barcelona? Como uma coisa externa, da Andaluzia, ou como uma coisa de todas as regiões de Espanha, mesmo as mais independentistas como a Catalunha?

Há zonas de Barcelona, as mais catalãs, em que o flamenco em geral não se sente tanto. Mas sente-se muito um «palo» flamenco (NR: os «palos» são os sub-géneros em que se divide o flamenco, como as bulerias ou as soleás, cada um deles com características próprias embora sendo todos eles flamenco), que é a rumba catalã, que nasceu na Catalunha. É um «palo» mais de festa e não tão profundo como outros «palos» do flamenco.

Nasce na Catalunha mas tem influências latino-americanas, ao que julgo...

Sim, o flamenco, quando sai de Espanha viaja para a América Latina, e quando volta, regressa pelo porto de Barcelona. A rumba catalã tem parentescos com a salsa cubana.

Há três ou quatro anos vi um concerto dos Ojos de Brujo em Sevilha – na Womex e na Feira do Flamenco. E a reacção dos andaluzes ao vosso concerto foi extraordinária. O público aficcionado do flamenco aceita bem os desvios à sua música?

Não. E é por isso que é surpreendente que os nossos melhores públicos, e os mais entusiastas, estejam na Andaluzia e também em Madrid, zonas de forte influência do flamenco mais tradicional. Mas acho que há uma razão para isso: nós nunca pretendemos fazer flamenco puro. Não somos um grupo de flamenco, somos um grupo de experimentação musical, que temos o flamenco como raiz, mas passado pelos filtros de músicas de todo o mundo, desde a música indiana ao rock, funk, punk, hip-hop...

Os Ojos de Brujo sempre misturaram o flamenco com funk, hip-hop, música árabe, indiana, etc... Mas em «Techarí» ainda metem mais coisas como o jazz latino ou o drum’n’bass. Como é que integram estas músicas quando compõem?

Cada canção é um mundo diferente. Não temos uma fórmula concreta... Cada canção vem de uma maneira diferente. Podem vir de um ritmo, por exemplo. O «Silencio», que é o tema do álbum com drum’n’bass, nasceu quando o Max (NR: o outro percussionista dos Ojos de Brujo) começou a fazer um ritmo de drum’n’bass no cajón (NR: o caixote de madeira que é o principal instrumento de percussão no flamenco). E foi divertido ver que se podia fazer drum’n’bass com um cajón! Então, o baixista começou a tocar por cima, a Marina começou a cantar... As canções são um trabalho colectivo, de grupo; não há um director musical. É um trabalho muito lento mas muito democrático, e é isso que nos dá essa riqueza.

Essa riqueza de que fala, essa variedade, é consequência de habitarem em Barcelona – uma cidade cosmopolita e aberta - ou é consequência dos vossos percursos musicais anteriores?

É a consequência de termos encontrado as pessoas que encontrámos. Todos nós tivemos experiências anteriores, importantes, de fusão do flamenco com outras músicas. Há, em Barcelona, quem se dedique ao flamenco puro, mas nós não. Um estava experimentado misturar o flamenco com heavy-metal, outro com punk, outro com funk, eu com música indiana, latino-americana e árabe, a Marina com teatro e electrónica, o Paco e Ramon com hip-hop... E essa foi a magia: termo-nos encontrado uns aos outros.

Neste álbum também «encontraram» outras pessoas, exteriores à banda. E convidaram músicos e/ou cantores como Nitin Sawhney, Faada Freddy (do grupo rap senegalês Daara J), Prithpal Rajput (aka Cyber, dos Asian Dub Foundation) ou Martirio. Convidaram-nos porque faziam sentido nas canções ou porque são artistas que admiram?

A participação de todos eles é fruto das nossas viagens e de encontros que, emocionalmente, nos marcaram e significaram muito para nós. Por exemplo, conhecemos os Asian Dub Foundation num festival na Bélgica e foi mágico. Nasceu uma grande amizade e, infelizmente, só pôde participar o percussionista porque eles estão sempre muito ocupados. No caso de Nitin Sawhney, há muito tempo que temos uma admiração mútua e ele colaborou connosco à borla. Foi uma troca: nós participamos no disco dele e ele no nosso. Com os Daara J encontrámo-nos nos prémios da BBC, em Edimburgo, e foi mágico: apanhámos uma bebedeira todos juntos nas ruas de Edimburgo, enquanto tocávamos na rua. Os músicos cubanos que participam, eu já os conhecia de antes (NR: nas suas viagens pelo mundo, Xavi passou algum tempo em Cuba antes de voltar à Catalunha) e reencontrei-os, o ano passado, em Cuba, e ter ido lá foi muito importante para todos nós.

Há poemas de canções dos Ojos de Brujo com uma forte componente de intervenção política e social. É importante intervir através da vossa arte?

A nossa vida é assim. Sempre fomos assim. Se pudermos contribuir para que as coisas mudem para melhor, fazêmo-lo. E essa intenção manifesta-se nas nossas letras. Vem da nossa experiência diária. A Marina (NR: cantora e letrista do grupo) tem um dom natural para escrever. Faz uma poesia muito bonita e não muito directa e crua. E ela transmite, muitas vezes, essa vivência nossa do dia-a-dia. E isso reflecte-se também noutras coisas: não aceitamos patrocínios de empresas multinacionais que prejudicam as pessoas, não pensam no nosso planeta e só têm o lucro dos ricos como meta. E também temos uma estrutura independente, Diguela, para editar os nossos discos...

1 comentário:

Gerente disse...

Foi por acaso que aqui vim ter... Um blog fantástico sobre um tema fantástico.

Bruno Esteves