26 dezembro, 2006

Dossier Guitarra Portuguesa - 4º Fascículo
























Um dos trabalhos que mais prazer me deu fazer durante os meus muitos anos de BLITZ foi este dossier sobre a Guitarra Portuguesa, em finais de 2004. Ao longo destas semanas, e espaçadamente (para não cansar e porque há outras coisas para falar), aqui vão ficar entrevistas com guitarristas da nova geração e um construtor de guitarras que com ele transporta o saber de gerações, uma possível História da Guitarra Portuguesa, uma discografia básica, etc... Fiz este trabalho com muito amor. Leiam-no também assim, por favor.


GUITARRA PORTUGUESA
CORDAS UMBILICAIS

Pode um instrumento musical espelhar - com o seu som, o seu timbre, a sua respiração e movimento e vibração - a alma de um povo? Pode. Ouve-se um didgeridoo na Austrália, um berimbau no Brasil, uma kora no Senegal, uma flauta de Pã nos Andes, um tambor taiko no Japão, e sabemos que aquele instrumento específico está a ser tocado pela alma certa, mesmo que possa ser tocado por «corpos» de toda a gente em todo o mundo.

Pode a guitarra portuguesa espelhar a alma do povo português? Pode. Há guitarra portuguesa de Lisboa e guitarra portuguesa de Coimbra e guitarra portuguesa do Porto e Braga. E há gente a tocá-la em todo o país. E há um género (dois?, se falarmos de Lisboa e de Coimbra separadamente) que lhe está colado como uma segunda pele, o Fado - ou, dizem os mais críticos, em vez de uma pele, um casaco grande e grosso que por vezes lhe abafa o respirar. E há intérpretes e compositores que fizeram da guitarra portuguesa um instrumento maior. João Maria dos Anjos, Antero Alte da Veiga, o clã Paredes - Gonçalo, Artur e Carlos -, Armandinho, Raúl Nery, António Portugal, António Brojo, Fontes Rocha, Augusto Hilário, Pedro Caldeira Cabral, António Chaínho e muitos, muitos outros... E, mais recentemente, há músicos mais novos que se atiram à guitarra sem complexos e com vontade de a levar para o futuro como Ricardo Rocha, Paulo Parreira, Custódio Castelo ou Paulo Soares... E algumas mulheres, como Marta Costa, perderam o medo de tocar este instrumento difícil e extremamente exigente em termos físicos (a posição; a dureza das cordas...). E há gente do rock a virar-se para ela: na invenção e recriação física do instrumento através das «guitarras portuguesas mutantes» de Nuno Rebelo; na paixão com que Luís Varatojo (ex-Peste & Sida e Despe e Siga) trocou a guitarra eléctrica pela guitarra portuguesa e contribuiu para fazer A Naifa; na aventura que é usar guitarra portuguesa no heavy-metal (os Thragedium, cujo líder, Eclipse, também toca guitarra portuguesa). E os ecos do instrumento não ficam por aqui. Mesmo que não estejam lá, fisicamente, estão nos samples de Sam The Kid ou nas guitarras eléctricas dos Dead Combo, de The Legendary Tiger Man e de Gonçalo Pereira (cf. na versão de «Movimentos Perpétuos», de Carlos Paredes, no álbum «Upgrade»).

A guitarra portuguesa, dizem alguns historiadores, evoluiu a partir de uma fusão da cítara com a guitarra inglesa e faz parte de uma imensa família de cordofones. Pelo som, e pelo sentimento, é irmã do oud (o alaúde árabe), é prima do bouzouki grego (que, por uma estranha emigração, foi adoptado também pelos irlandeses) e do bandolim siciliano, e é vizinha da guitarra espanhola - tão vizinha que, geralmente, para cada guitarra portuguesa há uma viola - uma guitarra espanhola - ali mesmo ao pé. Mas as ligações genealógicas dos cordofones podem ir mais além no tempo e longe no espaço: podem ir ao shamisen das gueixas japonesas, à sitar indiana, à balalaika russa, ao ukelele havaiano (neto dos cavaquinhos portugueses), à kora dos griots mandingas, às violas de lata dos blues do Mississippi.

São cordas que prendem a música, as canções, à terra onde nascem, como cordões umbilicais que nunca são cortados, como fios de Ariadne que nos servem de bússola permanente, como uma teia de relações que se prendem - e nos prendem - a um tempo, a um espaço, a uma poesia, a um gosto, a um destino. E à alma dos povos que as dedilham.

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