03 dezembro, 2007

Sons em Trânsito - Tratados de Pastelaria Regional (e Global)


A última - e absolutamente maravilhosa - edição do Festival Sons em Trânsito terminou às tantas da manhã de sábado (já domingo), com uma prova aberta de doçaria regional aveirense e com os bolos a desaparecerem em pouquíssimos minutos. Eu, que tinha ido comprar tabaco à Praça do Peixe depois do fim do concerto do Capossela, já só rapei, digamos, o fundo ao tacho. Mas não me importei porque, na sala ao lado, a Raquel Bulha passava óptima música para dançar enquanto o José Carlos Fernandes desenhava e aguarelava as músicas e os músicos que se ouviam. Um docinho completo. Como de outros doces se pode falar em relação aos concertos todos (todos!) do festival.

Na quarta-feira, o imenso bolo de noiva cigano, com toques de zimbro, de canela e de pinhões da Fanfare Ciocarlia, festa imensa que não durou três dias mas durou o tempo de um concerto fabuloso - com a Fanfare a ser acompanhada pela rainha Esma Redzepova (abençoada voz!), pela princesa Florentina Sandu, pelos pagens Kaloome (a fazer a ponte entre os ciganos do sul e os do norte) e o gato das botas altas Jony Iliev - e um «after-hours» na rua, com os metais da Fanfare a bombarem dança e boa disposição durante muito tempo! Na quinta, com as castanhas assadas lisboetas que são os Deolinda, a queimarem nas mãos de tão novas e quentes que são, acompanhadas por um vinho novo que é um fado virado do avesso, alegre, vivo, simples e cheio de sentido de humor (as aletrias, perdão, as letras por Ana são deliciosas!). E, falando em letras, e aletrias, e aliterações, e frases feitas - as melhores frases feitas da música portuguesa -, Sérgio Godinho deu um concerto extraordinário, em que os inventivos e frescos arranjos de Nuno Rafael se estendem a canções novas (o «Só Neste País», repete-se aqui neste blog, devia ser o hino nacional) e antigas (de «O Charlatão» a «Quatro Quadras Soltas» ou ao delicioso e doce «O Primeiro Gomo da Tangerina», iluminadas por um som novo e actualíssimo.

Já na sexta, o degustar começou em África, com a música dulcíssima, lindíssima, com um travozinho de bom grogue, do compositor, guitarrista e cantor cabo-verdiano Tcheka, uma música sentida e pessoal que não é devedora de muita da música cabo-verdiana que nós conhecemos; antes uma música nova e que há-de, se tudo correr bem, ser importantíssima - só foi pena o concerto ter sido demasiado curto e ter, por isso, «sabido a pouco». Depois, um autêntico ovo mole, um concentrado explosivo e calórico inesperado com a anglo-francesa Jane Birkin: ela não canta quase nada, mas a maneira como interpreta (principalmente, as canções de Serge Gainsbourg, seu grande amor e o principal homenageado neste concerro) são de uma doçura, de uma candura, de uma simplicidade e de uma simpatia que é quase impossível não nos deixarmos encantar por ela. E o rebuçado que foi «O Leãozinho», de Caetano Veloso, desfez-se-nos na boca... E no sábado, a grande surpresa: o canadiano Gonzales (na foto), aqui em registo piano solo, num espectáculo em que a música erudita (ele é um pianista muitíssimo bom, virtuoso e divertidíssimo!) está lá, evidente ou como referência - de Chopin a Satie - mas estão lá também o «Somewhere Over The Rainbow» e... os Queen, os Bee Gees, os Soft Cell! Um cientista de luvas brancas na arte de preparar crepes em que os ingredientes são completamente inesperados. E, para final de festa, e para descongestionar de tanto doce, a cozinha ora pesada ora picante ora exótica ora feita de inúmeras nuances do italiano Vinicio Capossela, um fabuloso mestre-cozinheiro que doseia com sabedoria os momentos mais calmos (há canções de amor, mesmo canções de amor!, que são de uma beleza infinda), o humor («Maraja»), a música épica dos peplums («Al Colosseo») e o terror («Brucia Troia»). E há teatro - Capossela é também um performer (momento mais alto: quando se senta ao piano, abre um guarda-chuva e toda a gente na plateia começa a estalar os dedos imitando o som das gotas) e projecções (com imagens e... legendas em óptimo português) e uma banda competentíssima (onde brilha Vincenzo Vasi num theremin mágico). Saí do Teatro Aveirense e de Aveiro completamente alambazado mas com imensa vontade de repetir as doses todas...

11 comentários:

laura disse...

Caro António, com tamanhas bombas calóricas, cheira-me que terei de fazer uma rigorosa dieta nos próximos tempos, ehehe... Fico cheia de inveja, o SET parece ter sido fantástico!

Já agora, perdoa-me o reparo, tens duas gralhazitas no texto: "explosivoi", ali para os lados da Jane Birkin; e "Tetaro" na frase final... Não sei o que é um "Tetaro", mas cá fica o reparo... ;)))))))))))))))

beijos e ovos moles

António Pires disse...

Laura:

Uuuuups, obrigado pelas correcções (vou já «teratar» disso!!!). E sim, o SET foi um festival fantástico, mesmo!

Beijos e ovos moles :)

Anónimo disse...

Só estive na noite do Gonzales e do Capossela, que adorei, mas comi bolos :P

*Daniela*

António Pires disse...

Daniela:

Pois eu quase que não, com grande pena minha!, mas compensei em ovos moles durante os dias do festival e com este texto hiper-calórico!... O pior - ou melhor! - é que esta semana ainda vou engordar mais um bocadinho com a maravilhosa comida do Contagiarte na quinta-feira e com comida marroquina em Santos, Lisboa, durante o fim-de-semana :)

Volta sempre!

Anónimo disse...

O teu texto é um FESTIVAL, António!

António Pires disse...

LF D':

Muito obrigado!!

E, já agora, não se quer identificar melhor? (ou l é de Luís, f é de Fernandes e d' é de d'Orfeu?... Acertei?!?)

Um grande abraço...

Unknown disse...

António
Belo texto.Parabéns.Descreveste bem, como sempre, o que se passou no festival.O Vasco também está mesmo de parabéns.Foi um belo festival.
Cristina (SAC)

António Pires disse...

Cristina:

Obrigado!!! E o Vasco está mesmo de parabéns - assim como a Márcia, o João André e o Nuno, que compõem o resto da equipa do SET.

Beijos...

lf disse...

lf d' dificilmente seria outro alguém. Abraço!

Anónimo disse...

O pior de tudo ao ler este post não foi perceber que, por não ter assistido a este festival, perdi o Caetano Leãozinho, o Gainsbourg pela Jane que já não canta, as quadras soltas do nosso Sérgio e essas misturas de fragrâncias e aromas gastronómico-musicais de que falas. É que nem dos ovos moles tenho pena. O pior de tudo foi ter perdido a oportunidade de experimentar esse bolo de noiva cigano e o concerto a ele associado. Neste post foi a fatia que mais me atraiu.

Beijos,
:)

António Pires disse...

Luís :)

E eu a pensar que tinha tido uma perspicácia digna de um Sherlock Holmes ao desvendar o mistério! ;)

Um grande abraço...

MGB:

Sim, o concerto da Fanfare foi muitíssimo bom - e muito melhor do que o da Festa do Avante, também porque foi num teatro e um espectáculo como este se dá melhor em ambientes fechados (há casos em que é ao contrário). Mas olha que os outros todos também foram bastante, digamos, suculentos :)

Beijos...