17 novembro, 2006

Katia Guerreiro e Mafalda Arnauth - O Mar...


Mafalda Arnauth (na foto em cima) e Katia Guerreiro (na foto em baixo) são duas das fadistas da, digamos, nova geração que melhor têm sabido gerir uma carreira que começou, nas duas (e em quase todas as outras fadistas da, digamos outra vez, nova geração), sob o signo de Amália Rodrigues mas que, gradualmente, estão a dar provas convincentes de que podem e sabem libertar-se desse «espectro» e também abraçar novos géneros, abordar instrumentações alternativas, cantar outros poetas e dar novas roupagens ao fado. Em Novembro do ano passado saíram os últimos álbuns das duas cantoras, altura em que esta entrevista com Katia Guerreiro foi publicada no BLITZ, assim como uma crítica conjunta aos álbuns da duas: «Tudo ou Nada», de Katia Guerreiro, e «Diário», de Mafalda Arnauth. Ambos com o mar, aqui tão perto, como mote e inspiração.


KATIA GUERREIRO
AO SERVIÇO DA POESIA

Depois de «Fado Maior» e «Nas Mãos do Fado», Katia Guerreiro dá-nos agora o seu álbum mais pessoal, «Tudo ou Nada». Aqui, o leque de poetas que canta é alargado e a fadista co-compõe algumas canções (apesar de não pretender ser compositora). Katia, na primeira pessoa.


No seu site oficial aparece logo a abrir uma frase que diz «fado puro e simples». Acha que essas duas palavras são as melhores para definir o seu trabalho? E isso tem alguma coisa a ver com o facto de, por exemplo, não usar os chamados «floreados» na voz?

E também porque sou uma pessoa simples, já não tão pura quanto gostava porque a vida obriga-nos a perder alguma dessa pureza. Mas a minha simplicidade acaba por se reflectir na minha interpretação e naquilo que canto. E tenho como bandeira a minha simplicidade interpretativa, não fazer floreados nem andar à procura de coisas para impressionar. O que pode impressionar é a palavra, e a palavra tem que ser dita de forma simples e sentida.

Como se fosse mais uma intérprete – das palavras dos outros – do que uma cantora?

Sim, sem dúvida. Estou ao serviço da palavra... e da música.

É por isso que, depois no primeiro álbum, ter interpretado essencialmente fados clássicos, no segundo ter ido à procura de alguns poetas, nomeadamente António Lobo Antunes e, no novo, interpretar Lobo Antunes, Sophia de Mello Breyner, Maria Luísa Baptista...

São poetas que me fazem sentir coisas, que me fazem sentir, muito intimamente, coisas que são normais cada um de nós sentirmos, mas que só eles sabem dizer. E a minha interpretação vai ao encontro das suas palavras. Com verdade, tristeza, alegria, cor, saudade, amor, paixão... Canto tudo isso, que é o que nós somos. Os poetas que eu canto são também os poetas que leio, que leio muito. Este álbum é dedicado a Sophia de Mello Breyner. Ela é uma poetisa que me revela em palavras aquilo que sou capaz de sentir, de ser. Tenho uma enorme saudade do ar que ela nos fazia respirar. Era uma mulher muito especial... Com o Lobo Antunes há uma empatia enorme entre nós. Gosto imenso do António: é um homem de uma sensibiliudade imensa que se revela, essencialmente, nestes poemas. Não tanto nos seus romances. A poesia é um acto de confissão: a si próprio [ao poeta] e ao mundo, num momento de grande intimidade. Quando canto, com público à minha frente, também estou a revelar-me ao mundo. Sou a portadora de todas estas palavras...

Podemos falar de alguns «objectos estranhos» do seu álbum? Por exemplo, há um tema com piano, tocado pelo Bernardo Sassetti...

A ideia inicial era convidar o Bernardo para compor e tocar no disco. Mas ele andava muito ocupado com o seu próprio álbum e não teve tempo para compor. Mas veio tocar neste tema, «Minha Senhora das Dores», que é um momento de grande intimismo, de grande privacidade, e uma guitarra, uma viola e um contrabaixo seriam excessivos. Este tema é um canto à minha mãe, pedindo-lhe desculpa e mostrando a minha gratidão. O Bernardo gravou comigo e nem ensaiámos, quase que saiu à primeira. Segui a minha intuição de que iria resultar e resultou.

Canta também um tema inédito de Dulce Pontes, «Dulce Caravela». É uma homenagem mútua, uma troca de flores entre colegas?

É muito uma troca de flores entre colegas. E que acontece porque entendo o que ela faz. Como ela se entrega daquela forma quando canta, toca, compõe. No meu álbum anterior, «Nas Mãos do Fado», eu interpretava um tema dela, «O Que For Há-de Ser», e esse foi o meu primeiro contacto com a Dulce. Houve uma empatia imediata e agora quis muito ter um tema dela porque ela tem uma forma de compor muito própria. Ela compôs este tema para mim e deu-me toda a liberdade interpretativa. Durante muito tempo o tema chamou-se «Dulce», mas acabei por lhe chamar «Dulce Caravela», que faz todo o sentido e é uma homenagem que eu lhe presto.

Se calhar o mais estranho de todos: também canta um tema de música ligeira, a «Menina do Alto da Serra». Acha que conseguiu transformá-lo num fado ou ele já tinha, à partida, algo de fadista?

Uma vez, num programa de televisão, o maestro Victorino d’Almeida disse que «tudo pode ser fado, mas o fado não pode ser tudo». E ele demonstrou, na prática, que uma melodia de fado tocada com uma intenção clássica será sempre um fado, mas qualquer peça clássica pode ser tocada como fado e passar a ser um fado. E tocou uma peça de Mozart ou de Bach de uma forma fadista, e passou a ser um fado. E tocou uma melodia de um fado, dando-lhe uma faceta clássica, que continuou a ser um fado. Quando eu canto a «Menina do Alto da Serra», sentindo-a como um fado, passou a ser um fado.

Também canta um tema do Vinicius de Moraes, «Saudades do Brasil em Portugal», que ele compôs para a Amália. É um poema extraordinário, quase pessoano...

E também é um fado. Ouvi-o cantado pela Amália e toda ela era fado. Ela transformava tudo em fado. Depois ouvi-o cantado por um brasileiro, o Zé Renato, acompanhado por guitarra portuguesa, e não deixou de ser fado. E ouvi a interpretação do próprio Vinicius. Mas quando o interpreto, a minha referência é a interpretação da Amália.

Neste novo álbum, a Katia tem dois ou três temas co-compostos por si e pelos seus músicos. A composição é, cada vez mais, um caminho necessário para si?

Não, não. De todo. Isto aconteceu espontaneamente. Não tenho qualquer pretensão de ser compositora. Nunca aconteceu e, desta vez, só acontece porque os músicos já tinham arrancado com uma melodia e, depois, a minha interpretação leva para uns caminhos ligeiramente diferentes. Não tenho nenhuma pretensão de assinar coisas – no álbum anterior tinha um poema meu e neste não aparece nenhum. E o meu nome só está na capa porque sou eu que canto. Aliás, é uma injustiça que o nome dos meus músicos – cuja presença é de tal forma forte e que são muito importantes nisto tudo – não apareça também na capa. Às vezes receio que surja um anúncio que diz «Banda de Katia Guerreiro procura vocalista» (risos)... Nós somos um bloco unido, e eles têm a liberdade de criar e de puxar por mim.

A Katia é médica de profissão. É, agora, ao fim de cinco ou seis anos de carreira musical, mais uma médica que canta fado ou uma fadista que, por acaso, tem a medicina como profissão?

Sou uma médica que se cruzou com o fado e se apaixonou pelo fado. E tenho feito um tremendo esforço para manter estas duas grandes paixões na minha vida. Têm sido cinco anos de grande luta interior, e finalmente estou a colher os frutos de todos os sacrifícios que tenho feito. Cada vez mais, as pessoas acreditam que vou continuar a ser médica e vou continuar a ser fadista. Não me vejo sem a medicina nem sem o fado. A medicina é a minha ligação àquilo que a vida é na realidade.


OS DISCOS...




KATIA GUERREIRO
«TUDO OU NADA»
Som Livre
(7/10)







MAFALDA ARNAUTH
«DIÁRIO»
Universal Music Portugal
(7/10)




Há um desejo de cosmopolitismo cada vez maior nos fadistas portugueses. E isso é bom. Descoberta, talvez, de que o fado é uma «música do mundo» (semi-piada), de que o fado pode ter muitas outras músicas a conviver consigo, ou por afinidades estilísticas ou sentimentais ou de gosto pessoal – e nós sabemos lá de onde veio o fado ou de onde vieram os fados (do norte de África?, do Brasil?, da zona mandinga da África Ocidental?, de outras zonas da Europa?, etc, etc...) -, podendo imaginar-se que o fado influenciou, ou foi influenciado – num jogo de espelhos com espelhos com espelhos... -, o tango, a milonga, o flamenco, a música árabe, a morna, o choro, a música napolitana.

Ou então, os fadistas de agora só redescobriram o que Amália fez com canções de variadíssimas proveniências – italianas, espanholas, francesas... – transformando-as em fado, fado mesmo, ou o que Carlos Paredes fez com o «Summertime», de Gershwin, subvertendo-o genialmente na «Canção Verdes Anos», ou aquilo que Carlos do Carmo pensava fazer no projecto que nunca se concretizou «Um Homem no Mundo» (e no qual repegou, em parte, no recente «Nove Fados e Uma Canção de Amor» (álbum de 2002 onde há um fado africano, «Fado Mulato», e um fado-tango, «Dois Portos»). Juntemos a isto as ousadias de Paulo Bragança em «Amai» (das quais a versão de «Sorrow’s Child», de Nick Cave, não será a menor), a intencionalidade de Rão Kyao no seu cruzamento do fado e da música do norte de África, as aventuras de Mísia, Anamar ou Cristina Branco nas fugas, deliberadas, em direcção – não todas mas cada uma por si - a tangos, boleros, mornas, rumbas e milongas, ou a canções em francês e inglês (principalmente nos últimos álbuns destas três cantoras, respectivamente, «Drama Box», «Transfado» e «Ulisses»). Como se houvesse uma certeza absoluta: que o fado não nos pertence só a nós e que nós não pertencemos só ao fado.

«Tudo ou Nada», novo álbum de Katia Guerreiro, e «Diário», novo álbum de Mafalda Arnauth, são dois discos também com um pé bem assente no fado – no caso de Katia como receptáculo e intérprete fiel das palavras e da música dos outros, no caso de Mafalda como autora de muitas das letras e compositora de muitas das músicas - e com o outro a tactear caminhos, novos em ambos os casos, em busca de cosmopolitismo. Há muito fado – se quisermos, há sempre fado – em ambos os discos. E é sempre bom. Mas também há uma busca de outras vias, digamos trans-musicais, digamos marítimas. Mafalda canta Vinicius de Moraes («O que Tinha Que Ser...», com um saxofone stangetziano), Katia também («Saudades do Brasil em Portugal», que o brasileiro compôs para Amália). Mafalda canta uma milonga («Milonga do Chiado»), «La Bohéme» de Charles Aznavour, o espantoso «Rasgo de Luz», do basco Fran Lasuen (que foi dos Oskorri) e, no final, os seus músicos tocam Paredes e Gardel e Bach e Armandinho. Katia canta acompanhada ao piano (pelos dedos mágicos do pianista de jazz Bernardo Sassetti) «Minha Senhora das Dores». E oiça-se como Katia Guerreiro canta «Dulce Caravela», inédito de Dulce Pontes, ou como Mafalda Arnauth canta «Por Onde Me Levar o Vento», e saberemos também que o fado vai, um dia, voltar ao mar, «para enfim seguir viagem».

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