11 novembro, 2006

José Mário Branco - As Cantigas São Muitas Armas


Se há alguns, poucos, génios na música portuguesa, José Mário Branco é um deles. Pelos poemas que canta, pela música que faz e sempre fez, pela intenção com que escreve e canta e faz música, pela coragem de nunca, jamais, ter tido medo de dizer e fazer e cantar o que muito bem entende. Aqui recupero duas entrevistas com José Mário Branco publicadas originalmente no BLITZ, uma feita para a secção «52 Personalidades da Música Portuguesa» (de Dezembro de 2004), outra a propósito do seu último álbum, «Resistir É Vencer» (de Maio do mesmo ano). A foto que acompanha este post é de Lia Costa Carvalho - cujo excelente blog pode ser visitado aqui e a quem agradeço a sua cedência.

52 PERSONALIDADES
JOSÉ MÁRIO BRANCO

José Mário Monteiro Guedes Branco nasce a 25 de Maio de 1942 no Porto. A sua relação mais activa com a música começa em meados dos anos 60, em Paris, cidade onde se exilou para fugir à guerra colonial. Elege os álbuns «Fura Fura», de José Afonso, e «Crónicas da Terra Ardente», de Fausto, como marcos incontornáveis das últimas duas décadas (e meia, já que o álbum de José Afonso é anterior a 1984). E o filme «O Padrinho», de Francis Ford Coppola, o livro «Narciso e Goldmundo», de Herman Hesse, e a pintura de Edward Hopper como obras marcantes para a sua vida.

Ao contrário do que costuma ser normal nestas entrevistas, a conversa com José Mário Branco começa de olhos postos no futuro. Neste momento, José Mário Branco está empenhado na organização de uma audiência, dia 20 de Março, em Lisboa, do Tribunal Mundial sobre o Iraque, um tribunal de opinião que - na linha do Tribunal Russell, reunido em Estocolmo em 1967 a propósito da Guerra do Vietname - se propõe julgar os crimes de guerra dos governos americano, inglês (e, neste caso, português) no Iraque, para além de também apontar o dedo a empresas e à comunicação social, que, segundo José Mário Branco, tem «envolvido a guerra no Iraque numa teia de mentiras». E em dois concertos de apoio ao Tribunal - Concerto à Memória de Cem Mil Mortos -, no início de Março, em Lisboa e Porto, para os quais estão confirmados, para já, Sérgio Godinho, Fausto, Pedro Abrunhosa e Camané.

E isto é importante, porque a vida artística de José Mário Branco nunca esteve desligada do seu lado interventivo, político, actuante. «É uma coisa de geração. A resistência dos povos da União Soviética ao nazismo alemão provocou na Europa uma viragem à esquerda. E há toda uma linha de gente da cultura e das artes que se manifestou das mais variadas formas e que nos formou, à minha geração, em que não se pode separar a questão estética da questão ética: um artista é uma pessoa que cria a partir de um determinado conceito estético mas a que está indissoluvelmente ligado também um conceito ético». Atrevo-me a perguntar-lhe se alguma vez faz música apenas para o seu umbigo, por prazer, sem pensar na sua «função». E ele responde: «Esse sentido da função social do artista não é de forma nenhuma incompatível com o grande prazer, nem sequer com a liberdade, de criar. Não funciona como condicionamento da criação artística; funciona como a atmosfera em que ela nasce e cresce. Não existe qualquer contradição entre esses dois termos».

José Mário Branco começa por escrever canções em francês, mas em 1969 começa a compor em português. Nesse mesmo ano edita «Seis Cantigas de Amigo», um EP com poemas de autores medievais portugueses musicados por ele. O EP foi lançado pela editora de Michel Giacometti, Arquivos Sonoros Portugueses. Um ano depois sai o single «Ronda do Soldadinho», em edição de autor e com o disco a ser financiado pelo sistema de pré-venda. Por essa altura, José Mário Branco e Sérgio Godinho - com quem colaborou assiduamente nesses primeiros anos de carreira dos dois - tocavam muitas vezes ao vivo para as comunidades de emigrantes e exilados portugueses e para os públicos autóctones em França, Alemanha, Suiça, Reino Unido e os países do Benelux e da Escandinávia. «Éramos pessoas formadas para resistir contra o fascismo em Portugal e contra a guerra colonial. Eu, o Sérgio, o Tino Flores, o Luís Cília, que vivíamos no estrangeiro, ou cantores que viviam em Portugal e que iam lá fora, como o Zeca Afonso, o Fanhais, o Vitorino... E só em França havia 800 mil portugueses, dos quais dez por cento eram desertores à tropa e à guerra».

Em 1971, a Sassetti edita o primeiro álbum de José Mário Branco, «Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades», que ficaria como um marco importantíssimo da música portuguesa. A propósito do lançamento deste LP, José Mário conta que foi também por causa dele que passou a existir censura prévia aos discos. Antes, os censores deixavam sair os discos e depois retiravam-nos do mercado ou, na rádio, mutilavam-nos, riscando no vinil as faixas que consideravam subversivas ou destruindo completamente os discos: «A Sassetti lançou o meu primeiro álbum e o primeiro EP de Sérgio Godinho, "Romance de Um Dia na Estrada", numa sessão com público no antigo Cinema Roma (agora Fórum Lisboa), com comentários canção a canção do José Duarte e uma entrevista que o Adelino Gomes nos foi fazer a Paris. E tudo isto foi transmitido em directo pela rádio. A Censura foi apanhada de surpresa e foi por causa disso que começou a haver censura prévia aos conteúdos, em que as editoras discográficas enviavam os poemas das canções a editar». Só depois os censores davam ou não o seu aval à publicação das canções. Ainda antes da revolução de 1974, José Mário faz arranjos e/ou produz discos de José Afonso («Cantigas do Maio» e «Venham Mais Cinco») e de José Jorge Letria, e edita o seu segundo LP («Margem de Certa Maneira», 1972).

Imediatamente a seguir à revolução regressa a Portugal, onde funda no dia 1 de Maio de 1974 o GAC - Grupo de Acção Cultural «Vozes na Luta», com quem protagoniza um espantoso trabalho de reformulação da música tradicional portuguesa - embora a maioria dos temas fossem originais de José Mário (e depois também de João Lóio), a base musical estava muito próxima da música tradicional enquanto os poemas eram retratos interventivos da situação política e social no nosso país. No GAC, José Mário colabora em dois álbuns, «A Cantiga é Uma Arma» (1975) e «Pois Canté!!» (1976). «Empenhei-me politicamente [o GAC estava ligado à UDP] e artisticamente nesse grupo de agit-prop que, numa primeira fase, foi um aglomerado de individualidades mas que depois se tornou num coisa mais colectiva e participativa com a entrada de dezenas de pessoas mais jovens que vieram do Coro da Juventude Musical Portuguesa. O GAC chegou a ter mais de 60 elementos. Encarou a música em estreita relação com a nossa música tradicional rural e com as lutas sociais que estavam a acontecer».

Depois da sua experiência no GAC, José Mário regressa a uma paixão antiga, que já lhe vinha dos tempos em que fazia teatro em Paris: entra para a Comuna, onde faz canções para a peça «A Mãe», de Brecht (que daria origem ao disco homónimo). Mas ao fim de algum tempo, sai da Comuna juntamente com Manuela de Freitas (sua mulher), com quem fundaria o Teatro do Mundo, grupo que existiria durante oito anos, apesar de nunca ter tido uma «sala própria». E no final dos anos 70 faz música para filmes («Confederação», «O Ladrão do Pão», «Gente do Norte»). E é com o Teatro do Mundo que produz, no Teatro Aberto, os espectáculos que dariam origem ao álbum «Ser Solidário» e ao máxi-single «FMI» (ambos editados em 1982). E apesar do álbum ser espantoso (incluindo um inesperado êxito de rádio, «Qual é a Tua, ó Meu?», e as primeiras incursões de José Mário pelo fado), é «FMI» que fica na memória da maioria das pessoas, principalmente de quem teve a sorte de assisitir à sua apresentação ao vivo nesses espectáculos. «O "FMI" é muito mais teatro do que outra coisa qualquer. É um monólogo cadenciado, ritmado... Há quem diga que foi o primeiro rap português. Vem na tradição do teatro alemão, de Bertolt Brecht e Helene Weigel. Não fazia o "FMI" todas as noites. Só fazia quando estava naquele estado e quando o próprio público também estava naquele estado». E apesar da sua relação com o teatro já vir detrás, José Mário reconhece que é por essa altura que começa a incluir uma maior carga de «interpretação» nos seus concertos, «essa visão do teatro como acto de presença, de verdade, de despojamento face ao público, que não tem nada a ver com exibicionismo; é o reverso do exibicionismo».

Em 1984, ano de nascimento do BLITZ, José Mário estava a trabalhar activamente na UPAV, União Portuguesa de Artistas de Variedades, cooperativa a que também pertenciam artistas tão variados quanto Rodrigo, Duo Ouro Negro, Carlos do Carmo, Alexandra, Paulo de Carvalho, Amélia Muge ou Maria Guinot. E «foi um acto de resistência frentista, amplo e recuado de um grupo de artistas em defesa da indústria da música portuguesa e numa época em que a quota de mercado da música portuguesa baixa de 65 por cento para 8 por cento. E que também tem a ver com uma época horrível, os anos 80 - com o Reagan, a Thatcher, o Cavaco, o neo-liberalismo, o pós-modernismo... essa "noite" de que falo no meu disco "A Noite" (1985)». A UPAV edita, até ao seu final, em princípio dos anos 90, muitos discos destes e de outros artistas, incluindo dois de José Mário («A Noite» e «Correspondências», este de 1991).

Na última década e meia, José Mário editou o álbum «Ao Vivo» em 1997, o «best of» «Canções Escolhidas» (1999) e, já este ano, o disco de originais «Resistir É Vencer» - fortemente marcado e influenciado, diz, pela sua viagem a Timor-Leste. Fez música para cinema e para teatro (alguns dos temas do novo álbum foram «repescados» da banda-sonora da peça «Gulliver»), produziu discos de vários artistas (Camané, Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge, Canto Nono), esteve durante três anos envolvido no projecto «Maio Maduro Maio», em que, juntamente com Amélia Muge e João Afonso, homenageava José Afonso. Mas há uma outra razão para ter editado tão pouco em nome próprio: «O facto de ter feito poucos discos próprios nos últimos anos tem a ver com um aspecto que está presente na minha obra desde o princípio, que é uma profunda ligação da questão do som com a questão do teatro, isto é, da presença. Ao gravar estamos a mediatizar e ao mediatizar estamos a criar uma barreira entre a nossa emoção e a eventual emoção do público. E tento sempre que, nos discos, soe "ao vivo"».

No futuro próximo, e para além da sua actividade política, José Mário vai apresentar recitais a solo em que inclui temas do novo álbum (excepto os que exigem a presença de coros e de grandes massas orquestrais) e está a preparar um espectáculo especial em que apresentará temas instrumentais e canções que compôs para cinema (desde os temas dos filmes dos anos 70 até temas para filmes mais recentes como «Agosto», de Jorge Silva Melo, ou «O Rio do Ouro», de Paulo Rocha).


JOSÉ MÁRIO BRANCO
UM AMOR GIGANTE

O que ele andou para aqui chegar... 13 anos depois de «Correspondências» chega uma nova carta há muito aguardada. O envelope é vermelho e o selo ainda está colado à esquerda. Parece coisa do passado, mas não é. Porque «resistir» é já «vencer» e ainda há um amor gigante na sua vida: a música (e todas as palavras que ele quer lá dentro).

A primeira pergunta é inevitável: porquê uma espera tão grande por um novo álbum de originais [o novo «Resistir É Vencer»] de José Mário Branco?...

Nunca estive parado. Estou sempre a fazer coisas de que gosto imenso e que não se traduzem necessariamente em discos: música para teatro, música para cinema; canções feitas para outros cantarem, para além de produções e direcções de álbuns de artistas com que me identifico e me apaixonam mesmo. E isso alia-se a outro factor e que tem sido uma constante ao longo destes 30 anos: os discos, quando saem, têm que ser frutos amadurecidos que têm o seu tempo de gestação próprio. Não são discos de canções, apesar de terem canções: são discos que obedecem a um conceito-base, como um romance com vários capítulos...

No novo disco ouvem-se muitas canções recuperadas de peças de teatro - como «Gulliver» (oito) e «A Morte do Palhaço» (uma). Como é que estas e as outras canções, mais recentes, «encaixaram» nesse conceito que procurava?

Quando faço um disco quero saber em que estado é que eu estou: como é que me sinto, como é que está o mundo, como é que estão as pessoas, a vida. Tenho sempre uma «pastinha» de canções para fazer e uma auto-encomenda de temas que têm que ver com a actualidade: tenho que fazer uma canção sobre «isto». Um exemplo disso, no novo álbum, é a «Canção dos Despedidos», que foi provocada por notícias de telejornais: ver aquelas mulheres do norte, de 50 e tal anos, despedidas das fábricas de têxteis e calçado, a perguntar «e agora o que é que faço?». E isto porque uns senhores quaisquer que ninguém sabe quem são decidiram que, se mudassem a fábrica para Marrocos, poupavam cinco tostões. E isto porque a função social das empresas foi deitada ao lixo...

Essa letra poderia fazer parte do reportório de uma banda punk... e lembrou-me as manifestações anti-globalização um pouco por todo o mundo...

Essas manifestações anti-globalização, em Seattle, em Génova (...), são espontâneas, desorganizadas, e assistiu-se a algum desvario... e depois pagam, como se diz, os justos pelos pecadores, porque estavam lá centenas de milhar de pessoas a manifestar-se pacificamente. E isso exprime uma revolta, e chamo-lhe revolta porque é um sentimento de indignação perante uma situação sem, forçosamente, ter uma solução. E não perdem legitimidade por isso. Essa canção pode, efectivamente, lembrar determinadas formas de protesto - prefiro a palavra «protesto» à palavra «intervenção», no sentido da «canção de protesto» dos anos 60, com o Bob Dylan, o Woody Guthrie, o Pete Seeger...

O álbum chama-se «Resistir É Vencer», uma frase inspirada na resistência timorense. Como é que se consegue, ainda, resistir noutros lados? Em Portugal? Na Europa? No Mundo?

É preciso ver que esse lema não significa «se tu resistires tu vais vencer» mas sim «resistir é já uma vitória». E resistir a quê? Resistir ao inimigo, aos imensos «muros de Berlim» que ainda aí continuam, aos obstáculos que nos aparecem no caminho, mas também resistir aos muros e obstáculos que estão dentro de nós. É uma referência à nossa luta contra os nossos próprios limites. E isso é muito palpável em qualquer criação artística, nomeadamente na música: o compositor é aquele que ouve a música antes dos outros; é a luta contra o silêncio, é organizar os sons desorganizados que estão dentro da nossa cabeça e depois transmiti-los aos outros. Porque é que ainda canto estas canções?... Vivo bem, tenho uma boa casa, tenho um carro à porta, o frigorífico cheio de comida, de que é que me queixo?... Queixo-me porque percebi que ser de esquerda é não conseguir viver bem com a dor dos outros. É não conseguir ser feliz. Porque acordo, olho para o espelho e o que vejo é uma pessoa dorida com a dor...

É como que uma passagem definitiva do «ser solitário» para o «ser solidário» de que falava no seu disco de início dos anos 80...

Sim, a minha zanga com o mundo é agora muito mais concreta, mais palpável: as notícias dos despedimentos, as notícias das guerras...

Na sua canção «Poder» tem um pequeniníssimo momento em que a banda toca o hino dos Estados Unidos. Aquilo não está ali por acaso...

É claro que não. A letra dessa canção é sarcástica, caricatural, fala do Poder e de um «herói», mas de um herói arquetípico, de pessoas que assim se exibem no nosso mundo, sejam o George W. Bush ou o Bin Laden, que está do outro lado ou do mesmo lado, sejam os heróis fabricados de Hollywood ou o Nun'Álvares Pereira... Mas essa canção fala do Poder também por causa das desilusões que nós tivemos sempre que a Esquerda chegou ao Poder, da perversão da Esquerda quando Poder. Eu que venho de uma juventude iluminada por valores de solidariedade, amor, generosidade, radicalidade - que foram ensinados na origem pela história de Cristo, mais do que por Marx -, e essa radicalidade confronta-se com uma questão: como é que coisas tão belas na sua origem dão origem às maiores perversões? Como é que foi possível uma coisa tão espantosa como a revolução soviética transformar-se, em cinco anos, num pesadelo? Ou como é que a igreja católica dá origem à Inquisição?...

Na canção «Onofre» defende, digamos assim, que uma das formas de resistência que nós ainda possuímos é desligar o botão da televisão (pôr o «on» em «off», trocadilho de «Onofre»). Mas já referiu, nesta conversa, que escreveu a «Canção dos Despedidos» depois de ter visto uma notícia na televisão...

Essa canção exprime aquilo a que chamaria a «tentação esquizóide». Entender a resistência como um fechamento pessoal sobre si próprio, zangar-me com o mundo e, então, correr a cortina e isolar-me do mundo. O isolamento da vida real, que às vezes é tão feia e tão agressiva - e a mediocridade é a coisa mais agressiva que existe. É um isolamento de ouriço-cacheiro, de deixar os picos de fora para evitar mais agressões... E chama a atenção para a responsabilidade dos meios de comunicação, sobretudo das televisões, que são os mais poderosos de todos e têm um poder que não é democrático. É o segundo maior poder do mundo, depois do militar, porque condiciona as consciências. E está entregue a mãos privadas... Na sua origem não está nenhum voto expresso, democrático, das pessoas. Não temos possibilidade de escolha... Mas essa canção diz: «lembra-te que não és obrigado a comer merda se a puserem à tua frente».

A inclusão da canção «Onofre» evitou, de alguma maneira, a inclusão neste álbum da canção «Menina dos Meus Olhos», que também fala da televisão?

A «Menina dos Meus Olhos» é mais demonstrativa, mais explicativa, mais sarcástica. A «Onofre» é mais zangada, mais directa... É curioso que a música do «Onofre» é das mais antigas que eu fiz, ainda em França, há 30 anos, e fui recuperá-la agora, com outra letra.

Quem são os anões de que fala a canção «O Papão do Anão»?

Atenção que os anões da canção não são pessoas baixas mas sim «anões da alma». E de uma coisa que já se viu muito em Portugal, nomeadamente durante o cavaquismo, que é: progredir, vencer por cima dos cadáveres dos outros. E daquela tendência que há nas pessoas pequenas de alma que é: já que não conseguimos ser grandes, então vamos ser todos pequenos, vamos ser todos anões.

Neste álbum colaboraram outros dois nomes maiores da música portuguesa: Fausto e Sérgio Godinho. Revê-se nessa «irmandade»?... E em que pé é que está a ideia de fazer um espectáculo conjunto dos três?

Para já é só ainda um projecto. Cada um de nós tem a sua carreira, os seus espectáculos, os seus compromissos... Mas é daquelas coisas que, como se costuma dizer, não gostaria de morrer sem que esse espectáculo conjunto acontecesse. Mas um espectáculo em que fizéssemos músicas originais, não seria um espectáculo do género: «olha ali aqueles três velhinhos a olhar para o passado». Mas há uma questão óbvia de geração e de referência: de uma ou de outra forma somos os três originários da mesma semente que foi o Zeca Afonso... «Pão-Pão» é uma canção bastante à maneira do Sérgio e, no caso do Fausto, é ainda mais evidente: fiz aquela canção a pensar no Fausto, aquela falsa chula, aquele balanço, o estilo... e convidei-o a vir cantar uma parte da letra.

A faixa escondida do álbum - um pequeno poema de Sophia de Mello Breyner Andresen - faz-me pensar, talvez pela maneira como o diz, num mini-mini-mini-«FMI»...

Sim, porque os grandes poetas têm essa capacidade de em poucas palavras dizer tudo. E esse poema da Sophia, que é o primeiro poema do seu primeiro livro, consegue sintetizar uma vida em cinco linhas... Sou muito marcado pelos grandes poetas portugueses, tenho uma relação quotidiana com a Sophia, o Antero de Quental, o Ruy Belo, o Fernando Pessoa, o Camões... E não só portugueses.

Mais do que com os músicos ou compositores?... Neste álbum tem uma canção, «Amor Gigante», em que cita compositores clássicos como Shostakovitch, Prokofiev, Debussy e Ravel. E a música erudita também está muito presente no resto do álbum...

Essa canção foi feita para o «Gulliver», e entra numa parte da peça em que o Gulliver, depois de ter deixado o país dos anões, chega ao país dos gigantes e é ele o anão. Ele apaixona-se por uma menina gigante e há um desfasamento físico entre eles que torna impossível aquele amor. E é como eu me sinto em relação à música: eu sou pequenino e a música é gigante. É por isso que aparecem, na canção, citações desses compositores, de peças para quartetos de cordas, exactamente para ilustrar como sou pequenino junto desses gigantes. Dentro da música erudita, as composições para quartetos de cordas são as minhas preferidas, porque geralmente são as mais perfeitas, mais buriladas... Para a gravação deste álbum, tive a sorte de ter um sobrinho [Luís Morais] a estudar violino em Viena, e foi com um quarteto de cordas de que ele faz parte que gravei parte do álbum.

Nos últimos anos trabalhou (compôs, gravou ou produziu) com Camané, Amélia Muge, Gaiteiros de Lisboa, Canto Nono... Até, recentemente, colaborou com um grupo punk, os Peste & Sida, numa versão de «Década de Salomé», de José Afonso... Há ideias para o que vem a seguir ou vai concentrar-se apenas na transposição para concerto deste novo álbum?

Sim, e todos esses trabalhos me deram muito prazer. Os Peste & Sida, por exemplo, convidaram-me para pôr voz e eu fui lá ao estúdio, com o maior prazer. E o Canto Nono tem feito um trabalho espantoso - e ganhou agora um prémio [o prémio da Contemporary A Capella Society] nos Estados Unidos, em que competiram com grupos profissionais americanos, ingleses, alemães... Também colaborei na gravação de um disco de um coro infantil do Porto, disciplinadíssimo, afinadíssimo, Os Gambozinos, que entram agora no meu disco e nos meus concertos... Mas não, neste momento não tenho projectos paralelos: agora [passados os espectáculos especiais em Lisboa e no Porto] vou trabalhar na transposição para um grupo pequeno das canções deste disco e, depois, nesse espectáculo conjunto com o Sérgio Godinho e o Fausto.

5 comentários:

Lia Costa Carvalho disse...

Preciosa entrevista com o José Mário Branco que, além do seu enorme talento e reconhecido contributo musical, mais que tudo, fala-nos aqui do "Homem" José Mário Branco e da sua trajectória de vida.
Há trechos memoráveis, por exemplo qdo ele nos fala do seu processo criativo e das múltiplas areas de intervenção (teatro, cinema, a sua música e os temas da actualidade como globalização, desemprego, as guerras, tudo com uma propriedade singular).
Um ZÉ, carinhosamente Zé, figura incontornável da cultura deste país.
Obrigado a ti, António, pela partilha.

Magnífica entrevista.
Adorei.

um abraço, António

António Pires disse...

Olá Lia,

Os agradecimentos, múltiplos, são meus... Pela foto, pela colaboração, pela disponibilidade...

Muito, muito, obrigado!

Um abraço

Anónimo disse...

Muito boa entrevista, grande senhor!!
E já agora, parabéns pelo Blog que não conhecia, mas passarei a visitar com regularidade.

Abraço!!

António Pires disse...

Farol 77:

Muito obrigado pelas suas palavras. Volte sempre... Será bem-vindo(a).

Abraço!!

Anónimo disse...

Boa entrevista, gostei! Fica para a História.
O Zé Mário sempre primorou pela ironia nos seus textos, aliados às suas mais que excelentes composições e orquestrações musicais. Grande Músico!
(Tem graça. O meu apelido é Onofre e uso exacta e muitas vezes (bem com alguns dos meus amigos), o termo "On-Off" como palavra quase-homófona ou trocadilho, LOL!)

Parabéns,
Um abraço para si e para o grande Zé Mário

Nuno Onofre