02 agosto, 2006

A Naifa - Mais Vadio Que Fado


A Naifa é bem capaz de ser o caso mais sério de renovação do fado, feito por quem se está nas tintas para as palavras «renovação» e «fado». Aqui, o mais importante é a música (e a poesia que essa música carrega...). Aqui fica a recuperação de duas entrevistas com o grupo, a propósito de cada um dos seus álbuns. A primeira de Fevereiro de 2004, a segunda de Fevereiro de 2006.


A NAIFA OU O FADO ESTRANGEIRADO

João Aguardela (Sitiados, Megafone) e Luís Varatojo (Peste & Sida, Despe e Siga) encontraram-se na Linha da Frente. Acabado este projecto, os dois viraram-se para o fado. De frente? Não: de lado, por trás, de esguelha, enviesadamente, juntando-lhe elementos musicais estrangeirados e novos poetas portugueses. «Canções Subterrâneas», o primeiro álbum, já aí anda...

A Naifa é um estrangeirismo e é, paradoxalmente, uma palavra tipicamente portuguesa -- «naifa» vem da palavra inglesa «knife» (faca) e no calão nacional quer dizer isso mesmo, com o picante adicional de serem os malandros e os bandidos a usarem-na (quer dizer, uma faca pronta a trinchar um frango assado nunca é uma naifa; uma navalha de ponta-e-mola brandida numa briga de rua em Alfama já é uma naifa). E por isso é tão feliz a utilização desta palavra para dar nome a um projecto que cruza a pop, o rock, as electrónicas (estrangeirismos) com o (tipicamente português, com tudo o que de bom e de mau pode estar contido na palavra «tipicamente») fado. Depois do final da Linha da Frente, Varatojo pegou na guitarra portuguesa - ele que estava mais habituado à guitarra eléctrica - e Aguardela pegou no baixo eléctrico e na maquinaria (sintetizadores, sequenciadores...) para darem forma a um projecto que, não sendo fado, também é fado. Ou não? Ou sim?... Varatojo explica: «Depois da Linha da Frente ficou uma relação de trabalho e de amizade entre nós os dois, e decidimos fazer uma coisa nova, uma música que tivesse a ver connosco e que também tivesse a ver com a música portuguesa. E falou-se do fado... Daí eu ter partido para a guitarra portuguesa e experimentar à volta dessa ideia». Os trabalhos começaram em Janeiro do ano passado, mas o bichinho do fado já existia nos dois, nem que fosse latente: diz Aguardela que «os Peste & Sida tinham uma atitude fadista, um bocado de faca e alguidar (risos)... E nos Sitiados chegou a haver mesmo fados... No Megafone fui à música tradicional portuguesa não urbana, enquanto aqui vou à música tradicional portuguesa que as pessoas reconhecem mais imediatamente, o fado». E isto é música portuguesa?... «É, filtrada pelo que nós ouvimos e pelas nossas experiências ao longo dos anos».

Aos dois juntaram-se o baterista Vasco Vaz (não confundir com o guitarrista dos Mão Morta) e a cantora Maria Antónia, aka Mitó, uma voz absolutamente fadista (mesmo quando se afasta um pouco do género). E, como «colaboradores», Rui Duarte (vocalista dos Ramp, também dos Linha da Frente e, n'A Naifa, a cantar dois poemas reunidos num tema só) e vários poetas contemporâneos como Adília Lopes, José Miguel Silva, José Luís Peixoto, Tiago Gomes e Nuno Moura, entre outros... Mitó, a voz, chega ao grupo já os trabalhos tinham começado e com um background interessante: estudos de violoncelo no Conservatório e experiência de canto em bares, num grupo de música popular portuguesa [Alcateia] e em casas de fado, embora nunca como fadista residente. Diz Mitó: «é mais aquela coisa de fazer uma noitada, um jantar e cantar uns fados... Canto fado, gosto de fado, mas não gosto muito daquele fado tradicional e em que não se sai dali. E gosto muito de fazer experiências, desmontar, desmistificar... Foi o Vasco [baterista d'A Naifa e colega de Mitó nos Alcateia] que fez de ponte entre mim e os outros e gostei da ideia deles [A Naifa]: abanar as raízes e, se calhar, provocar um bocadinho os meus amigos do fado tradicional».

Pegámos na deixa e falamos de várias coisas relacionadas com as eventuais reacções que A Naifa poderá provocar junto dos puristas do fado - pegando na abordagem que os Ojos de Brujo fazem à rumba catalã e ao flamenco; e nos exemplos portugueses de «desconstrução» do fado, nomeadamente Paulo Bragança e Mísia... Mas os músicos d'A Naifa não têm medo das reacções dos puristas: «Não temos receio nenhum...», diz Aguardela, «Não existe uma PIDE, um "esquadrão" do fado que anda aí a perseguir os hereges... E há diferenças entre nós e outros: o Paulo Bragança estava no meio do fado, nós não... Para nós, o fado é uma referência comum a todos e cada um tem a sua forma de o encarar. O fado não é património de ninguém... E no nosso país é raro aparecerem pessoas que reinventam a tradição porque muita gente pensa que aquilo é um património intocável. E não é! Estas coisas só fazem sentido se pegarmos nelas, as transformarmos e as puxarmos para o nosso quotidiano. E este disco ["Canções Subterrâneas", o álbum de estreia do quarteto] também não é um disco de fado ou, pelo menos, desse fado».

Por coincidência, «Canções Subterrâneas» é editado numa altura em que estão a sair o álbum de Liana e a colectânea «Chillfado», projectos que também pegam no fado e o vestem com sonoridades atípicas. Os músicos d'A Naifa não conhecem os outros dois projectos, mas comentam a aceitação que o fado está a ter um pouco por todo o mundo, com artistas como Mariza, Mísia, Mafalda Arnauth, Cristina Branco, etc, etc, e avançam a teoria de que «se calhar, isto é cíclico. O fado está a ser reconhecido em termos internacionais como aconteceu em tempos com a Amália Rodrigues e, depois, com os Madredeus...», diz Aguardela. Madredeus?, pergunto eu. E ele responde: «A ideia dos Madredeus está muito mais próxima daquilo que nós fazemos, em termos abstractos. Os Madredeus, apesar de nunca se dizer que aquilo é fado, têm uma matriz fadista que por vezes nem passa pela música mas com a maneira como eles se apresentam. Os Madredeus fazem música portuguesa, tal como nós fazemos música portuguesa...».

E como é que se sente um guitarrista «eléctrico» com uma guitarra portuguesa (embora por vezes tocada como se de uma guitarra eléctrica se tratasse) nas mãos?... Varatojo diz que «aprendi sozinho a tocar guitarra portuguesa. Não aprendi com um guitarrista de escola porque não sairia isto. Deu bastante gozo pegar naquilo e ver o que dava, com as referências que eu trazia detrás... E dá-me bastante gozo tocá-la e toco-a todos os dias. É um recreio ou uma playstation...». Por sua vez, Aguardela toca baixo eléctrico e trata das electrónicas, «mais como forma de criar ambientes para cada tema. Não estão tão presentes como no Megafone».

Na Linha da Frente, Aguardela e Varatojo musicaram textos de poetas consagrados como Alexandre O’Neil, António Ramos Rosa, Manuel Alegre, Natália Correia ou Fernando Pessoa. Aqui, os dois apostam em novos poetas... «Na Linha da Frente cada um dos intervenientes escolheu o poeta que queria cantar - por exemplo, o Janelo escolheu o António Aleixo -, mas já havia um poeta novo, o Tiago Gomes. E foi isso que nos levou a pensar quem é que estaria agora a escrever e quem estaria a reinventar a língua portuguesa». Outro «resquício» dos Linha da Frente é a presença de Rui Duarte, dos Ramp, «a cantar um quase-fado. Mas não o escolhemos por ser um vocalista de uma banda de metal a cantar, mas por ser nosso amigo e por morar na margem sul, tal como diz um dos poemas - embora ele more no Seixal e não no Barreiro».

O álbum chama-se «Canções Subterrâneas», mas as razões são mais simples do que poderiam parecer. Diz Aguardela que «há muita gente a fazer música, a fazer canções, que não ouves na rádio, que não vês na televisão, mas que continuam a fazer o trabalho delas... E isto passa-se na música e na poesia: o José Luís Peixoto já não é tão "subterrâneo" quanto isso, mas os outros são...».


A NAIFA
NOVOS CANTOS DE FACA E ALGUIDAR

O novo álbum d'A Naifa, «3 Minutos Antes de A Maré Encher», mostra o grupo de Mitó, João Aguardela e Luís Varatojo a desenvolver o seu universo musical próprio e bem definido desde o primeiro álbum, «Canções Subterrâneas». A palavra «fado» ainda é quase tabu, mas não tanto assim...

Ao ouvir o vosso novo álbum, não sinto que haja grandes diferenças entre a música deste disco e a do primeiro álbum. E isto é a observação de um fã que gostou muito do primeiro disco e também gosta muito do segundo...

João Aguardela – Nós definimos logo, ao primeiro disco, uma personalidade muito forte e, de alguma forma, apaixonámo-nos todos pel'A Naifa. E sentimos, depois de dois anos de concertos, que ainda faltava escrever canções dentro desse universo que foi construído no primeiro álbum. Já experimentámos cruzar canções dos dois discos e resulta perfeitamente. Há grupos que fazem uma carreira inteira com uma ideia ou uma canção, como os Ramones. Mas acho que esse não é o nosso caso... E este disco foi diferente do outro em termos de construção. O outro foi mais fragmentado, de momentos, em que cada um de nós trabalhou, às vezes, sozinho... O novo disco foi mais feito em conjunto, por nós três.

Isso sente-se, principalmente, na voz da Mitó, que parece estar muito mais à-vontade neste novo álbum...

Mitó – Quando gravei o primeiro álbum tinha acabado de os conhecer. Havia alguma timidez da minha parte e eles próprios não sabiam até que ponto é que podiam puxar por mim. Neste novo álbum, estamos com dois anos de estrada em conjunto. Acabámos por nos conhecer bastante bem e senti que houve uma boa fusão energética e química entre nós. Desta vez senti-me muito mais à-vontade a cantar estas canções...

Vocês rodaram algumas destas canções ao vivo?

J.A. – Não, mas foram muito rodadas em ensaios.

Porque não incluíram neste disco nenhuma das versões que tocam ao vivo como o «Alfama», dos Mler Ife Dada, ou o «Sete Naves», dos GNR? A «Tourada», de Fernando Tordo, poderia ser um single óbvio...

J.A. – Não sei se seria assim tão óbvio. E a inclusão desses temas nos espectáculos teve uma razão pragmática: na altura tínhamos um reportório curto para um concerto. E nunca sequer nos passou pela cabeça gravá-las. Por outro lado, se as gravássemos estávamos a atraiçoar um bocadinho as pessoas que foram ver os espectáculos...

Luís Varatojo – Nós gostamos de tocar essas músicas, mas, mais do que isso, gostamos de fazer as nossas músicas.

J.A. – E não fazia muito sentido transformamo-nos numa espécie de mini-Resistência, com muitas versões. Se temos canções nossas para fazer, é natural que elas ocupem espaço neste disco...

Vocês incluem no livreto do disco três poemas que não estão no álbum...

M. – No disco também estão três faixas que não têm poema...

J.A. – A primeira faixa; a que faz a transição para as «Señoritas»; e a faixa escondida. São as faixas correspondentes a esses três poemas...

M. – E agora as pessoas podem adivinhar qual corresponde a qual...

L.V. – É quase um karaoke (risos).

Esta pergunta é mais para o João porque se refere ao novo disco do seu projecto Megafone: o álbum tem uma faixa em que se ouvem extractos de temas de várias bandas portuguesas, todas a cantar em inglês. Há aqui alguma espécie de crítica aos cantores portugueses que cantam em inglês?

J.A. – Não; é uma constatação. Apenas. Esse tema foi feito ligando a Antena 3, à quinta-feira, e gravando durante duas horas seguidas. E o que passou, de música portuguesa, é o que está lá. Com duas excepções, os Toranja e os Mind da Gap. E não é só música cantada em inglês, é música anglo-americana...

Fiz a pergunta porque neste novo álbum d'A Naifa vocês continuam a usar textos de poetas portugueses... Há alguma ligação escondida entre essa faixa do Megafone e o vosso trabalho sobre as palavras em português d'A Naifa?

J.A. – Nenhuma. A poesia que está neste disco é a poesia de que nós gostamos, que nós lemos nestes dois anos e que faz parte de nós.

L.V. – E que dá boas canções.

J.A. – Alguns desses poetas são uma espécie de membros honorários d'A Naifa. Mas, atenção, nós não queremos fazer colectâneas de nova poesia portuguesa...

Mas A Naifa também funciona como uma espécie de montra para alguns poetas...

L.V. – Não sei; o objecto principal aqui é a música.

M. – Isso poderá ser uma consequência, mas não é uma coisa premeditada.

J.A. – Até porque todos esses poemas estão editados em livro.

No novo álbum há várias histórias que correm mal. Histórias de faca e alguidar...

J.A. – Sim, há vários poemas de amor e desamor.

M. – Há mais melodrama.

E, pronto, lá tem que vir a palavra «maldita»: são mais...

L.V. – Fadistas (risos).

E, apesar de vocês em entrevistas sempre recusarem a ideia de que a vossa música tem como matriz o fado, não estarão agora, por via dessas letras, mais próximos do fado?

J.A. – Conheces algum fado que tenha um poema parecido com algum destes?

L.V. – As ideias que temos associadas ao fado são ideias que têm a ver com os portugueses, não são especificamente do fado. Tem a ver com a forma como sentimos as coisas. A nostalgia... Aquilo que nós sentimos quando fazemos esta música e principalmente quando estamos em cima do palco, sentimo-lo realmente. Não estamos ali como actores, não tem nada de artificial...

Num dos espectáculos que vi d'A Naifa, em Loulé, no Festival Med, estavam muitos estrangeiros que reagiram de uma forma muito curiosa ao vosso concerto. Primeiro estavam a olhar desconfiados, mas depois começaram a dançar um bocadinho e tudo isto no meio de muito silêncio... A pergnta é quase inevitável: para quando o salto d'A Naifa para o estrangeiro?

J.. – O salto lá para fora tem que ver com duas condições básicas: a primeira é ter controlo sobre o disco, que agora temos finalmente – com a mudança de editora [o novo álbum d'A Naifa é editado pela Zona Música, enquanto o primeiro foi editado pela Sony]- e a segunda é podermos disponibilizar tempo da nossa parte para poder trabalhar seriamente nisso. Não acredito muito naquelas carreiras internacionais de mandar um disco paa ali e ver o que acontece ou fazer espectáculos dispersos. A nós interessava-nos muito mais passar um mês em Espanha e dois meses na Bélgica, por exemplo, e até agora ainda não conseguimos reunir essas condições. E nunca seria para já, pois vamos ter uma digressão de vinte datas. Mas tem havido um fenómeno curioso, que é a «internacionalização» mão em mão. Não sabemos como, o primeiro disco foi parar ao Brasil, à Bélgica, a Holanda, a Espanha... E de todos esses sítios têm vindo reacções interessantes ao que nós fazemos...

Vocês mudaram de uma editora discográfica multinacional, a Sony, para uma independente. Sentiram-se mais livres a gravar este segundo álbum?

J.A. – A gravar não. Mas o que se passou foi outra questão de ordem prática: de facto, a Sony é a proprietária do primeiro disco.

L.V. – Isso, basicamente, não nos permitiu fazer contactos com editoras lá fora. Com a Sony tínhamos um contrato mundial que não nos permitia editar através de outras editoras no estangeiro. E o novo contrato, com a Zona, já nos dá possibilidades de negociarmos com outras editoras lá fora.

Vocês vão começar agora uma digressão que tem vinte datas em teatros de todo o país. Isto é muito bom...

M. – E isto foi uma grande vitória porque não caiu assim sem mais nem menos...
J.A. – Fomos nós que produzimos a digressão que se seguiu ao lançamento do primeiro álbum e, nessa digressão, sentimos que havia gente em todo o lado interessada na música d'A Naifa. E isso deu-nos a experiência para que agora, logo à saída do novo disco possa haver uma digressão com estas características. Isto também tem a ver com a ideia de que, nos tempos que correm, devemos ser cada vez mais autónomos. Não há nenhuma agênca neste país que nos proporcionasse uma digressão destas. E nós fazemo-la porque somos a nossa própria agência e trabalhamos nisso diariamente. É tentar com que cada vez menos haja coisas a escapar-nos das mãos. Queremos fazer os discos como entendermos e queremos apresentar a nossa música como entendermos.

3 comentários:

laura disse...

Gosto muito de A Naifa e tb tive o prazer de os entrevistar aquando do primeiro álbum. Tem-se feito muito boa música portuguesa. :)

António Pires disse...

Olá Laura... Tens razão: anda muito boa música por aí. E não só na renovação do fado ou na música tradicional... No BQCM dei de caras com os Dead Combo e o Legendary Tiger Man, de quem também gosto muito...

Anónimo disse...

Foi muito engraçado vê-los ontem em Aveiro
E depois do concerto, eles foram pra night e malharam uns valentes copos!
É sinal de que o concerto correu bem!