18 setembro, 2006

Né Ladeiras - A Voz


Se há uma voz que corporiza a tradição musical portuguesa (e a sua renovação, em muitos e variados caminhos), essa voz é a de Né Ladeiras. Pioneira da recuperação do cancioneiro tradicional com a Brigada Victor Jara, com uma passagem fugaz pelos Trovante, presença determinante na revolução da Banda do Casaco na viragem dos anos 70 para os 80, Né lançou-se depois numa carreira a solo enviesada, inaugurada com o maravilhoso EP «Alhur» e pontuada com demasiado poucos discos (e quase tão poucos concertos) para o que o seu talento e a sua voz exigem. O último, «Da Minha Voz», é de finais de 2001, altura em que esta entrevista foi publicada. E, passados quase cinco anos, ainda não há notícias de algum álbum novo a vir dos seus lados. Quem dera que houvesse...


NÉ LADEIRAS
COM QUE VOZES

Houve mulheres nos Descobrimentos portugueses. As que ficavam, quais personagens de Gil Vicente, e as que partiam: prostitutas ou grandes damas, uma ou outra até de espada na mão, degredadas de Portugal, escravas engajadas em África ou índias descobertas no Brasil. É destas mulheres, que raramente se cantam mas por certo cantavam, que Né Ladeiras - ainda e sempre uma das melhoras cantoras portuguesas - fala em «Da Minha Voz», o novo álbum.

«Da Minha Voz» é uma viagem por sons - o Brasil, o fado, a música céltica e hebraica e arménia, guitarras eléctricas, electrónica e também didgeridoos e gaitas-de-foles e sanfona e percussões e o canto da baleia-de-bossa - e pelas histórias, inventadas, adaptadas, alendadas, da História. A voz e a produção (e, às vezes, a letra e as músicas) são de Né Ladeiras. De outras vezes, muitas, a música é do brasileiro Chico César. E de outras vezes, também muitas, as letras são de Tiago Torres da Silva. Como músicos, um núcleo duro: Paulo Nunes da Silva (que já trabalhou com Paulo Bragança, Miguel Ângelo ou Ritual Tejo) nas teclas, Nuno Patrício (dos Dumdumba; ex-Boomerang) em vários instrumentos e Vasco Ribeiro Casais (dos Dazkarieh) também em montes de instrumentos. Convidados: Ney Matogrosso, Pedro Jóia, Carlos Guerreiro (dos Gaiteiros de Lisboa), Jorge Palma, Francesco Valente (dos Terrakota), José Luís Nobre e alguns mais... Um luxo.

A última vez que falei contigo foi num castelo perto de Coimbra, há quase três anos, estavas a gravar um novo álbum com o Hector Zazou, e aquilo deu para o torto...

Sim, estávamos a gravar na altura errada. Mas depois fizemos as pazes. Houve, na altura, um desentendimento de linguagem musical entre nós. Esse disco não saiu, mas há-de sair, com outras directrizes... Estou há bastante tempo em contacto com os Transglobal Underground no sentido de finalizarmos em conjunto esse álbum.

Mas é abusivo da minha parte dizer que esse trabalho com o Hector Zazou acabou por ter alguma influência, tempos depois, na gravação de «Da Minha Voz», em que há por vezes um maior investimento na pop e na electrónica?

Acho que sim. Vou beber muitas coisas àquilo que oiço. Não estou a falar de plágios, mas gosto de viajar por essas novas linguagens... e não gosto de estar parada no tempo. Há miúdos novos a pegar em máquinas e a fazer coisas fantásticas. As máquinas não substituem os músicos mas são uma mais-valia e sinto-me muito bem a usá-las.

Neste álbum tanto há canções muito descarnadas - só com guitarra portuguesa e viola, ou só piano, ou só cavaquinho, ou só sanfona e acordeão - como há canções muito mais orquestradas. Queres falar um pouco dessa «divisão»?

Isso tem a ver com o carácter de cada uma das mulheres. Quando canto uma índia, a canção não pode ter muitos artefactos nem artifícios. Ou «A Mulher do Granito Verde» (Nota: só com o piano de Jorge Palma e a voz), que está tão nua que não lhe podem tirar mais nada, nem a alma nem a dignidade nem o pensamento. Mas também há a guerreira, como na «Flecha» - a amazona, a princesa... -, que a obriga a ter um envolvimento musical mais produzido.

«Da Minha Voz» pode ser uma resposta, no feminino, ao «Por Este Rio Acima», do Fausto, um autor que admiras - e que homenageaste no álbum «Todo Este Céu» - e que, com esse disco, iniciou um ciclo de álbuns sobre os Descobrimentos?

Pode. E acho que é, mas no melhor sentido. Era urgente falar das mulheres que estiveram sempre na sombra, mas que foram muito importantes nos Descobrimentos portugueses... São histórias de mulheres que viveram naquela época...

Mas uma delas queria enviar e-mails...

Essa canção chama-se «Visionária» e alguém terá pensado nisso. Se, na altura, houvesse uma forma de comunicação mais rápida, não estaria tanto tempo nesse vazio, sem notícias dos que partiram...

Neste álbum gravaste um fado pela primeira vez na tua vida, «Memórias Antigas»...

E não é bem um fado. Não é assumido... mas há um cheirinho de fado. O disco começa com esse «fado», no Ocidente, e viaja depois para Oriente. Começa pela mulher actual, nas «Memórias Antigas», e termina na Arménia, no «Vou Num Rio». Todas elas são marcadas pelos Descobrimentos, no bom e no mau sentido, mas quis fazer uma ficção minha, um resgate das mulheres que muitas vezes ficam no anonimato mas são as grandes obreiras da nossa sociedade, desde sempre. É a minha maneira de ler a História.

Mas como é que fizeste efectivamente esse trabalho? Criaste imagens, sons, para as «personagens»?

Sim, exactamente. Tudo o que aparece no disco não é por acaso. Há um caso que é o do som das baleias de bossa, que têm o canto mais sedutor que já ouvi. Se aquele marinheiro não volta há que mostrar porque é que não volta: porque se deixou seduzir pelo canto das baleias... E depois, a baleia de bossa é um animal em vias de extinção...

Há sempre um animal «protegido» pela Né Ladeiras. Depois dos lobos...

As baleias de bossa... (risos)

Quem é que teve a ideia deste disco?

Fui eu. Depois falei com o Chico César, que adorou a ideia e o Tiago Torres da Silva propôs-se para fazer as letras. Eu já tinha alguns esboços, mas o Tiago investigou, fez pesquisa e criou as letras.

Porque é que o Chico César, apesar de compor a maioria das músicas, acaba depois por aparecer «fisicamente» muito pouco?

Sim, com aquela voz belíssima no «Por Um Cristo Nagô»... Porque o trabalho foi feito cá, numa quinta da Beira, em comunidade com os meus músicos e não era possível, fisicamente, tê-lo cá. Houve a ideia de ele produzir o disco, mas eu achei que poderia ser capaz de fazer eu esse trabalho. Isso era uma coisa que tinha que resolver comigo própria. Fiquei a gostar do trabalho.

Como é que escolheste os músicos para este trabalho?

Dois deles, o Vasco e o Nuno, trabalharam comigo no espectáculo em que estava eu, a Pilar e a Anamar (Nota actual: esse espectáculo foi depois editado em disco, «Anamar, Né Ladeiras, Pilar - Ao Vivo», em 2002). O Paulo veio depois. E foi um encontro muito feliz: andava ansiosa por encontrar gente nova, de uma geração diferente da minha. E com eles, foi amor à primeira vista. Os outros todos foram escolhidos, também, por amor... São músicos que admiro e que respeito. Foi óptimo trabalhar desta maneira, sem pressão, podendo optar por me rodear por quem queria. E senti que também fui muito respeitada.

Tens, neste momento, alguns outros projectos a andar...

Tenho, tenho vários. Há esse disco meu que os Transglobal Underground têm entre mãos, e espero que o milagre aconteça agora, porque a minha mudança de editora (Nota: Né gravava para a Sony antes de se transferir para a Zona Música) facilitou muito o processo... Um disco de cantares da Beira. Há outro, «Escritos no Deserto», e ainda um disco sobre a pintora mexicana Frida Kahlo...

Vais ter que deixar crescer o bigode!

Sim, e unir as sobrancelhas (risos). Ela é maravilhosa. Mas é melhor ir com calma, senão fica tudo embrulhado.

Continua a haver muita música dentro de ti...

Sim, e se isso deixar algum dia de acontecer é porque está prestes a dar-me alguma coisa muito má. Agora vivo numa aldeia da Beira, estou muito tempo sozinha, caminho, leio, oiço muita música. E vêm-me muitas ideias à cabeça. Algumas são um disparate. Mas há outras que eu digo: nem que leve cem anos, eu vou concretizá-las.

8 comentários:

Anónimo disse...

Uma paixão comum... De facto, esta voz deixa saudades mal se acaba de ouvir. Depois, há as pérolas esquecidas... Um "Alhur" que nunca se viu reeditado em CD.
Queremos mais...

António Pires disse...

Alma Om:

Tão estranho!!! Um comentário a este post um ano depois :))) E sim!!!, é uma paixão comum!!! Gosto muito, tanto!, da Né Ladeiras e é uma pena que ela não esteja no activo - ou então está, secreta como ela é... E sim, o «Alhur» é um disvo maravilhoso. Tenho-o em vinil, guardado em mil cuidados :) Quem és tu, Alma Om, que não há link para eu seguir??...

Um beijo ou um abraço...

António Pires disse...

Edit: disco, não disvo...

Anónimo disse...

Da Biografia de NL:

Em finais de 1989 edita, finalmente, "Corsária", com produção e arranjos de Luís Cília. Também aqui Né Ladeiras compõe todas as músicas, cabendo a responsabilidade dos textos a Alma Om, uma amiga muito especial, que se estreia como autora.

Infelizmente, o (in)sucesso deste álbum fica directamente ligado à sua editora, a Transmédia, que abre falência pouco tempo após o lançamento de "Corsária".

Anónimo disse...

Não será tão estranho comentários decorrido 1 ano (neste caso serão 14 meses) porque para isso é que existem as etiquetas

António Pires disse...

MC (ou Alma Om?)...

Sejas lá quem fores, obrigado por vires até aqui e me visitares... E o «Alhur» já existe em CD, graças a Deus!!! Já escrevi sobre ele na Time Out e, repito, é um dos melhores discos de sempre!!! Obrigado a ti, sejas lá quem fores :))

E um grande abraço!!!

Anónimo disse...

Sou apenas um fâ da Né Ladeiras

E nem tenho o prazer de conhecer quer a Né Ladeiras quer a "Alma Om"

Se fizer "Alma om" no google vai ver diversas referências a "Alma Om" (normalmente comentários em diversos blogs que falaram sobre Né Ladeiras)

Existe inclusivé um blog http://almaom.blogspot.com/

Como referi "Alma Om" foi responsável pelas letras de "Corsária"

António Pires disse...

Caro MC:

Primeiro que tudo, o meu agradecimento era mais que sincero!!! Obrigado, a sério, por me visitares!!!

Depois, eu sei que a (ou o) Alma Om era a (ou o) autor das letras de canções do álbum «Corsária». Mas gostei de fazer este jogo que te envolve a ti (fã MC - repito, seja lá quem fores, homem ou mulher), à (ao) Alma Om e à própria Né Ladeiras, cde quem precisamos tanto para (toda) a música portuguesa!!!

Um grande abraço, MC, e obrigado por aqui vires...