02 outubro, 2006

Caetano Veloso, Seu Jorge e Think of One - Rock'n'Brasil, Brasil'n'Roll


Se a bossa nova foi uma junção mais que perfeita de música brasileira com o jazz (acabando por influenciar o rumo deste género nascido nos Estados Unidos), o tropicalismo foi - e é, porque o tropicalismo continua vivo... - a reunião de muito do que de melhor tinha a música brasileira e do melhor que tinha o rock. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes foram os pioneiros de uma fusão que deu frutos no Brasil e este país nunca mais deixou de estar virado para as linguagens pop/rock e seus derivados (com o movimento «contrário» a ser feito, também, por inúmeros artistas: David Byrne, A Certain Ratio, Liquid Liquid, Paul Simon, Sting, Everything But The Girl ou, mais recentemente, inúmeros projectos de música electrónica alemães, belgas, ingleses, japoneses, a irem ao Brasil buscar os ritmos que faltam nos computadores e sequenciadores). E, no Brasil, bom rock nunca faltou, de Rita Lee a Fernanda Abreu, dos Legião Urbana e Paralamas do Sucesso aos Sepultura, dos Ratos de Porão a Carlinhos Brown. Às vezes com mais Brasil, outras vezes com mais rock. Os álbuns de aqui se fala - Caetano Veloso (na foto), Seu Jorge e o colectivo belga-brasileiro Think of One - são bons exemplos, recentes, de como os dois universos estão tão próximos...


CAETANO VELOSO
«CÊ»
Universal Music

Um dos papas - o Papa? - do tropicalismo, Caetano Veloso, regressa aos álbuns de originais com um disco, no mínimo, surpreendente. Sem a «muleta» (muitas vezes uma bela muleta, diga-se) das orquestrações de Jaques Morelenbaum, Caetano atira-se a um álbum rock nas suas mais diversas coordenadas: o funk, o pós-punk, o punk, o psicadelismo, alguma coisa de noise e experimental. Mas, claro, também com outras referências aqui e ali. O segundo tema do álbum, «Minhas Lágrimas», tem essência de fado, perfume de ranchera, fragrância de alt.country e é de uma tristeza inacreditável. «Waly Salomão» é psicadelismo a dar mais para os cogumelos (com açafrão marinado em sitares indianas) do que para os ácidos. «Não Me Arrependo» é uma belíssima balada sixties com citação de «Walk On The Wild Side». «Odeio» faz lembrar... Xutos & Pontapés. «Porquê?» (a tal que tem sotaque português de Portugal e em que ele repete várias vezes «estou-me a vir» - talvez como eco onírico da sua inveja dos orgasmos múltiplos das mulheres na canção anterior, «Homem») é um divertimento inconsequente. «O Herói» é um rap sobre como crescer na favela com guitarras de Sonic Youth. Quer dizer, «Cê» é um álbum obviamente desequilibrado, mas com alguns temas lindíssimos e é mais interessante quando não é tão rock. Mas uma coisa continua a ser verdade: ninguém tem esta voz de veludo mais veludo não há, são raros os que têm esta capacidade de dizer mil coisas num jogo de três ou quatro palavras (seja a falar de sexo, de separações traumáticas, de atentados terroristas ou de desequilíbrios sociais) e são cada vez mais raros os artistas que, ultrapassados os 60 anos de idade, ainda conseguem fazer um álbum de que ninguém está à espera e que será motivo de discussão durante muito tempo. (7/10)


SEU JORGE
«THE LIFE AQUATIC STUDIO SESSIONS FEATURING...»
Hollywood Records/EMI

O último tema do novo álbum de Caetano Veloso, «O Herói», faz o raccord quase perfeito com a personagem que é Seu Jorge: cantor e actor nascido numa favela da Baixada Fluminense que escapou a um destino, digamos, previsível (Seu Jorge viveu nas ruas do Rio de Janeiro durante três anos) quando se revelou como compositor de talento nos Farofa Carioca ou, a solo, nos álbuns «Samba Esporte Fino» e «Cru». Curiosamente, em «The Life Aquatic Sudio Sessions Featuring Seu Jorge», o compositor apaga-se para realçar as capacidades interpretativas (re-interpretativas) do cantor Seu Jorge: neste álbum, Seu Jorge recria (nas inventivas letras em português e nos arranjos, só para voz e guitarra acústica) variadíssimos temas de sucesso de David Bowie - de «Rebel Rebel» a «Rock'n'Roll Suicide», de «Life On Mars» a «Changes», de «Ziggy Stardust» a «Suffragette City» -, com um amor, uma inventividade e um bom gosto inacreditáveis. Seu Jorge inventa aqui vários espécimenes musicais novos, do glam-samba à acid-bossa nova e ao pagode psicadélico, com letras que falam da realidade brasileira e de sentimentos pessoais, sempre com o truque adicional de incluir as palavras em inglês do título original (ipsis verbis ou ligeiramente adaptadas foneticamente) na canção. O último tema é um original divertido, «Team Zissou», e todos eles pertencem à banda-sonora do filme «The Life Aquatic with Steve Zissou», de Wes Anderson (filme em que Seu Jorge participa como actor, ele que se tinha dado a conhecer ao mundo em «A Cidade de Deus»). Pois é, falta «Heroes» para o raccord ser completamente perfeito. (7/10)


THINK OF ONE
«TRÁFICO»
Crammed Discs/Megamúsica

Os Think of One são uma divertidíssima trupe de Antuérpia que sempre procurou o cruzamento de inúmeras linguagens derivadas da música anglo-saxónica (o rock, o funk, o reggae, o jazz..) com muitas outras músicas. Editaram, entre outras aventuras, três álbuns de fusão da música ocidental com a música marroquina (especialmente gnawa e houara) no projecto Marrakech Emballage Ensemble e viraram-se, desde «Chuva em Pó», para a música brasileira. «Tráfico», o álbum mais recente, é um grande, grandíssimo, exemplo de coabitação (os Think of One gostam de lhe chamar «multiculturalismo) de muitas músicas «modernas» com o samba, o forró, o baião, o pagode, o cavalo-marinho ou o maracatú numa festa interminável que mete ao barulho, sempre de forma coerente e orgânica, funk, electrónicas, salsa, reggae e dub, punk ou uma estranhíssima citação do genérico do «Bonanza». É cantado em francês, flamengo e português, com músicos belgas e muitas colaborações de músicos brasileiros recrutados no Recife para o álbum e para os espectáculos (quem os viu em concerto em Loulé sabe que o resultado é absolutamente incendiário). E ouvir uma senhora velhinha - a extraordinária cantora D.Cila do Côco - apelar ao consumo de maconha e de cachaça em «Tirar Onda» é tão surpreendente quanto ouvir Caetano Veloso a dizer que se está a vir. Com a diferença de que aqui se dança mais... (9/10)

4 comentários:

Rini Luyks disse...

A saudar, este CD dos "Think of one". Vi e ouvi a banda duas vezes até agora: no ano passado em Bilbao no "Musikale", um festival de música de rua (onde actuei como elemento da entretanto, hélas, desaperecida Bigodes Band) e no verão passado no Parque Mayor em Lisboa. Gosto mais deles na rua, mas isto também pode ter a ver com as condiçôes da sala do Parque Mayor, uma plateia com uma inclinação de 30 graus ou mais, muito pouco dançavel...

Rini

Rini Luyks disse...

...quer dizer, Parque Mayer, claro, era bom se já fosse "do maior"...

Anónimo disse...

Olá. Estou fazendo um artigo sobre a internacionalização da música brasileira. Procurando sobre Think of One encontrei o seu blog. Quando citar a banda, colocarei o link pra essa sua resenha. Abraço.

António Pires disse...

Caro Jão:

Obrigado pela sua visita!! Pode citar o Raízes e Antenas sempre que quiser (e boa sorte para o seu novo blog)... Entretanto, há mais música brasileira por aqui...

Um abraço