03 outubro, 2006
Rão Kyao - Fado do Oriente
Mestre no jazz, pioneiro - entre nós - na integração de músicas de outras paragens (Índia, África, Brasil, norte de África) na sua música, fusionista do fado, Rão Kyao editou em 2004 o álbum «Porto Alto», dedicado à rota mítica «do pão, do azeite e do vinho»... Antes lançou «Fado Virado a Nascente», no qual foi em busca das eventuais raízes perdidas do fado. Aqui fica a recuperação de uma entrevista com Rão Kyao a propósito deste disco, publicada originalmente em Março de 2002...
RÃO KYAO
NÓS NÃO TEMOS UM FADO, TEMOS CEM
Em «Fado Virado a Nascente», Rão Kyao regressa ao canto tradicional urbano lisboeta para o levar para outras paragens. Onde, se calhar, muitas vezes já lá estava e pouca gente o admite: o Magrebe, aquele norte de África que está só a alguns quilómetros de nós mas é muitas vezes esquecido. Por questões históricas, políticas, culturais, religiosas... só Deus (ou Alá, outra maneira de dizer Deus) sabe. Em «Fado Virado a Nascente», Rão une as suas flautas de bambu indianas à guitarra portuguesa e à viola, a percussões e violinos marroquinos, à voz fadista de Deolinda Bernardo e, num tema, de Teresa Salgueiro, numa viagem de ida e volta do fado à música árabe.
A primeira ligação óbvia de Rão Kyao - na altura já figura de proa do jazz nacional - ao fado foi a gravação, em 1979, de «Mocinha dos Caracóis», para o álbum «Goa», em 1979, gravação que acabou por ficar de fora do disco. Mas em «Fado Bailado» (1983) já todo o álbum era composto por temas tradicionais do fado, com o saxofone a substituir a voz: «Já tocava certas músicas que tinham que ver com o lamento do fado, mas não lhe chamava fado porque não tinha guitarra e viola. No "Fado Bailado" a aproximação foi efectiva. Para mim, o fado não é a maneira de tocar ou cantar. É a alma. E o resto vem atrás». Muitos anos depois, surge «Viva o Fado» (de 1996) em que é a flauta a «cantar» o fado. E em 2001, «Fado Virado a Nascente», em que, pela primeira vez, ao lado de Rão surgem vozes a cantar o fado: «As pessoas identificam sempre o fado com uma voz. Quando pensei fazer o disco não o pensei com voz, como ainda não tinha a ideia de ir buscar os músicos ao norte de África. Mas tive que pensar numa maneira de apresentar esta ideia de uma forma mais interessante para as pessoas, de modo a que a ideia não se perdesse - e aí foi o Pedro Ayres Magalhães (dos Madredeus) que me ajudou muito. A Deolinda Bernardo foi uma grande surpresa. Ela canta o fado, mesmo».
«Fado Virado a Nascente» é um disco de tese: «Para mim não há dúvida nenhuma que o fado apanhou muitas influências diferentes. Nós não temos um fado, temos cem. Por exemplo, a Maria Teresa de Noronha tem a ver com um canto mais palaciano, mais do norte, e a Amália Rodrigues tem muito mais a ver com o sul, com os árabes - e ela própria dizia isso. O fado que é inspirado nas ladainhas, nos pregões, vem do norte de África. O Alfredo Marceneiro compunha fados a ouvir os pregões. Quem ouve a Argentina Santos vê-se no deserto. É esse canto, esse lamento, que não tenho dúvidas de onde vem. Isso perdeu-se um bocado, está muito "canção" e virou as costas ao choro, à melopeia... O Gazi (violinista marroquino que participa no álbum) toca e o espírito do fado está lá».
Rão Kyao não se sente integrado em qualquer «movimento», de renovação do fado ou outro qualquer: «Incomoda-me o fado-canção, onde há cantores muito bons mas não são fadistas. E há óptimos fadistas a quem não se liga nenhuma. Sinto-me mais identificado com fadistas como o Manuel de Almeida, que era de uma intensidade emocional constante. A Argentina Santos, que é uma lenda-viva, representa o fado verdadeiro. E este disco aponta para esse lado. Se o resto é renovação ou não, já não me cabe a mim dizer».
Depois de ter passado pelo jazz, Rão já passou por variadíssimas paisagens que lhe serviram de inspiração (Índia, África, China, Brasil, o flamenco, o fado...). E Rão acha que «o maior contributo do jazz, para mim, foi a abertura para outros sons e para outros lugares. Libertei-me do fraseado do jazz, mas a abertura, a liberdade, a vontade de investigar ficou».
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