18 outubro, 2006
José Peixoto - Para Além dos Madredeus
Agora que o futuro dos Madredeus está em aberto - a sua agência espanhola, Syntorama, anunciou o final do grupo e o início da carreira a solo de Teresa Salgueiro; Pedro Ayres Magalhães nega o fim mas confirma 2007 como «ano sabático» dedicado aos projectos individuais dos seus integrantes -, recupero aqui duas entrevistas com José Peixoto, o genial guitarrista dos Madredeus e o mais prolífico dos seus músicos, e com os seus dois companheiros nestas aventuras: o igualmente Madredeus Fernando Júdice (com José Peixoto, na foto) no projecto que deu origem ao álbum «Carinhoso» (2002) e a cantora Filipa Pais no duo que produziu «Estrela» (2004). Entre os dois ficou «Aceno» (2003) e, depois disso, o guitarrista também já nos ofereceu «Cacus», em parceria com o violinista Carlos Zíngaro (2005), e «Pele», em parceria com a cantora Maria João (2006).
CARINHOSO
UM CHORINHO (FELIZ)
Dentro de uma viagem podem coabitar muitas viagens. No caso destes dois músicos, o guitarrista José Peixoto e o baixista Fernando Júdice, as viagens dos Madredeus também lhes serviram para iniciar uma outra, rumo à música de Pixinguinha e de outros chorinhos brasileiros. No regresso a casa, há um disco, «Carinhoso», onde ao lado de vários instrumentais surgem três temas cantados (Maria João, Manuela Azevedo, dos Clã, e Luís Represas são as vozes presentes). Um disco de amor com final feliz.
Como é que dois músicos portugueses se apaixonam pela música de um compositor brasileiro?
Fernando Júdice - Isso acontece um bocado por acaso. E o factor «acaso» é importante na génese deste projecto. O que nós queríamos de início era alguma coisa que nos entretivesse nas nossas viagens, nos tempos livres. Nós vamos ocupando os tempos livres a tocar, nos quartos de hotel...
Não vão para os copos e coisas assim?
José Peixoto - Não, não. Se o fizéssemos não podíamos depois trabalhar de manhã.
F.J. - E temos famílias. A nossa vida é mais virada para o dia do que para a noite, senão quando chegamos a casa o choque é muito grande. E precisávamos de praticar nas guitarras... Depois de muito procurar, sem encontrar nada que nos agradasse, estávamos em S. Paulo, no Brasil, e o Zé apareceu com um livro de chorinhos. Tinha dois do Pixinguinha, mas o resto não era dele. Pegámos em duas músicas ao acaso e começámos a tocar. Um deles chama-se «Chorando em S.Paulo», o que fazia sentido, e imediatamente sentimos empatia com aquela música e que era uma boa matéria-prima. Aquilo dava-nos espaço para imaginar coisas e funcionava bem com os nossos dois instrumentos. No meio do livro estava o «Carinhoso», do Pixinguinha, e isso foi definitivo. O tema bateu de uma maneira! No dia seguinte voltámos à mesma loja e comprámos um livro só com coisas do Pixinguinha. Isto foi o início do processo.
J.P. - A revelação dessa música fez-nos procurar mais coisas dele. Não houve qualquer ideia prévia, do género «vamos tocar Pixinguinha».
Querem falar um pouco da importância do Pixinguinha no contexto da música brasileira? A obra dele, cá, não é muito conhecida...
J.P. - E nós também fomos constatando a sua importância à medida que íamos descobrindo a música dele. O Pixinguinha é uma figura incontornável na música brasileira, sendo considerado por muitos como o pai da música popular brasileira. Antes do Pixinguinha, a composição e orquestração eram muito importadas da Europa ou da América. E o Pixinguinha deu-lhe um carácter regional, brasileiro, que até aí não tinha. Há como que uma divisão temporal - Antes de Pixinguinha e Depois de Pixinguinha.
Pode dizer-se, então, que o Pixinguinha deu «brasileiridade» à música brasileira?
J.P. - Exacto. E ele conjugava esse talento de compositor e orquestrador com o de instrumentista. De tal maneira que influenciou definitivamente muitos outros músicos brasileiros nestas três áreas. Também era muito bom improvisador. Ele sintetizou o choro, a forma do choro, naquilo que ele se tornou, estando também na génese de vários movimentos musicais, como a bossa-nova. Todos foram beber ao Pixinguinha. O Hermeto Pascoal, o Egberto Gismonti... E até um compositor erudito como o Villa-Lobos dizia que o mestre dele era o Pixinguinha.
F.J. - O Villa-Lobos dizia que tinha sido formado na Universidade de Pixinguinha. Ele foi o primeiro brasileiro a levar a música brasileira para fora do Brasil. Com excelentes críticas em França - era para ficar a tocar um mês em Paris, ficou seis.
Vocês encontram algum ponto de contacto entre o chorinho e a música portuguesa, nomeadamente o fado?
F.J - Não, não me parece. Há muitas teorias sobre a génese do fado e há uma, especificamente, sobre as ligações do fado ao Brasil. Mas provavelmente o fado não tem uma origem, tem várias. E não há nenhuma teoria definitiva.
J.P. - Mas talvez essa ligação exista em termos emocionais. A saudade, a tristeza, o fado dos portugueses degredados no Brasil podem ter estado presentes na origem do chorão, que deu origem ao choro e ao chorinho. Só os nomes dizem tudo. Há quem defenda que o choro é uma música negra com uma melodia branca. Pode haver uma raiz comum...
F.J. - Mas se isso existe é dessa forma subliminar. Musicalmente não há uma ligação directa, nem uma derivação directa. A música vem da alma e, a esse nível, pode sempre haver ligações.
No álbum não surgem apenas temas do Pixinguinha. Há dois ou três de outros compositores...
J.P. -- Um é o «Chorando em S.Paulo», porque foi o primeiro que tocámos e se revelou uma música extraordinária. E o outro é o célebre «Tico Tico no Fubá», que apesar de não ser do Pixinguinha, ele gravou em dueto: o Pixinguinha no saxofone e o Lacerda, flautista.
Como é que vocês passaram de «estudos de técnica instrumental» - como referem os vossos press-releases - para uma obra de arte, que é o disco?
F.J. - Foi uma coisa que aconteceu com naturalidade. A nossa ideia não era fazer um disco, mas quando nos centrámos naquelas músicas, começámos a gravá-las, até para referência nossa, quando tínhamos o arranjo de cada música feito. E começámos a gostar daquilo que estávamos a fazer, para além de termos recebido opiniões entusiásticas de amigos nossos a quem nós mostrávamos aquilo. A ideia do disco foi crescendo gradualmente, derivando do resultado do nosso trabalho. A própria ideia dos cantores só surgiu quando já estávamos quase a começar a gravar o álbum...
Porque é que convidaram aqueles cantores e não outros para colaborar? A Maria João trabalhou muitas vezes com o José Peixoto; o Luís Represas e o Fernando Júdice foram colegas nos Trovante durante muitos anos. A Manuela Azevedo é que é uma surpresa.
J.P. - Foi fácil. Como eram três canções, eu escolhi um, o Fernando escolheu outro, e o terceiro escolhíamos os dois. E foram um bocado óbvias as nossas escolhas pessoais, por causa do passado comum da Maria João comigo - apesar de há dez anos não fazer nada com ela - e do Luís Represas com ele. Com a Maria João havia a certeza de que o resultado iria ser bom...
F.J. - E para mim era óbvio que só podia ser a voz do Luís que cabia naquela canção («Lamentos»). Sempre o ouvi cantar música brasileira, como segunda paixão, fora do Trovante.
J.P. - Entretanto, descobrimos que quer eu quer o Fernando éramos grandes admiradores da voz da Manuela Azevedo. Nós não a conhecíamos pessoalmente mas desafiámo-la e ela aceitou. E foi ela que decidiu que ia cantar a música («Carinhoso») em português de Portugal e não do Brasil, ao contrário dos outros dois que cantaram naturalmente em «brasileiro». Achámos um pouco estranho, mas ela fez o primeiro «take» e ficou - estava tão bom que não era preciso dizer mais nada.
Porque é que não convidaram a vossa colega de Madredeus, Teresa Salgueiro? E, já agora, o que é que os outros pensam disto? Acham bem? Acham mal?
F.J. - Não sei se acham bem ou mal, mas naturalmente acham bem.
J.P. - Acham bem, quanto mais não seja porque há um ano e meio que levam connosco nos camarins a tocar estas coisas (risos).
F.J. - A questão da Teresa... A Teresa é uma cantora extraordinária. E é uma pessoa com quem dá um prazer enorme ter a cantar ao lado. Mas isto foi uma coisa feita num contexto perfeitamente marginal ao nosso trabalho nos Madredeus. E quando se pôs a questão dos cantores, já muito tarde neste processo, todo este universo musical estava construído e definido. Quando começámos a falar em cantores, quisemos, quase naturalmente, puxar isto para um contexto exterior ao nosso universo normal de trabalho. Não evitámos a Teresa.
J.P. - Não há nenhuma obrigação, dentro dos Madredeus, de estarmos sempre a trabalhar uns com os outros. E uma das coisas mais gratificantes da actividade artística é podermos descobrir coisas novas e trabalhar com pessoas diferentes. Se temos o privilégio de trabalhar, quase diariamente, com a Teresa, não é uma rejeição não trabalharmos com ela numa coisa destas.
Apesar de já terem tocado com muita gente e passado por estilos diferentes, vocês têm os dois formação de jazz. Como é vocês se sentem num projecto com pauta escrita? Houve algum espaço para a improvisação neste trabalho?
J.P. - Houve espaço para a composição do arranjo. Improvisação não, porque até chegar àquela forma cristalizada já o Pixinguinha devia ter feito todas as improvisações possíveis. Nós tínhamos uma linha melódica e uma cifra, e não nos desviámos disso - tocámos exactamente o que lá estava -, mas com essa criatividade nos arranjos.
F.J. - Apesar de haver uma melodia escrita e uma cifra harmónica, podemos ter um espaço de manobra considerável, que é o tal espaço em que se constrói o arranjo; em que se pode seguir a harmonia que ali está mas também se pode alterar ligeiramente de acordo com a construção do arranjo que vai sendo construído. Tu ouves um disco genuíno de choros brasileiros, e o nosso não se parece nada com eles, porque a linguagem é outra, a instrumentação é outra, a nossa alma é outra. Aquilo surge na nossa cabeça de uma maneira particular.
O José Peixoto também é compositor, o Fernando Júdice - tanto quanto eu sei - não tanto. Porque é que avançaram para um disco de versões em vez de fazer um de originais?
J.P. - Porque os livros que nós comprámos já lá tinham a música escrita. Se estivessem em branco (risos)... Isso tem a ver com a primeira pergunta. Isto tem tudo a ver com o facto de querermos qualquer coisa com que nos entretêssemos a tocar. Nunca nos passou pela cabeça fazermos uma coisa de raiz, de originais. Não era esse o objectivo.
Como é que está a carreira a solo de José Peixoto?
J.P. - Está boa. Em princípio, vou gravar um novo álbum agora. E apesar de ser uma coisa marginal e com pouca visibilidade, enquanto eu tiver saúde vai continuar.
E haverá alguma vez um álbum de Fernando Júdice?
F.J. - Essa é uma questão que não se põe.
Vai haver continuidade para este projecto? Concertos? Um novo disco?
J.P. - Não sabemos. Assim como não pensávamos fazer um disco, também ainda não pensámos o que vai ser o futuro. Não há espectáculos pensados.
F.J. - Vai ser difícil fazermos espectáculos, até pelo tipo de ocupação que nós temos, com os Madredeus. E isto é uma coisa pequena, especial, com pouco reportório...
J.P. - Isto tem um carácter amador. A eventual profissionalização deste projecto iria mudar tudo, mas isso não está no nosso horizonte.
SINTETIZADOR
FILIPA PAIS/JOSÉ PEIXOTO
Trabalharam juntos na Lua Extravagante, cruzaram-se fugazmente no álbum Aceno, encontraram-se agora a tempo inteiro para um álbum completo: «Estrela».
«Estrela» é um álbum de canções compostas por José Peixoto (guitarrista dos Madredeus e dono de uma já considerável discografia a solo) que só precisavam de uma voz. E a escolha do músico recaiu em Filipa Pais (que foi da Lua Extravagante e editou dois álbuns a solo; nos últimos anos também envolvida em espectáculos do grupo de teatro O Bando). Diz Peixoto: «Conhecemo-nos nos concertos e na gravação do disco da Lua Extravagante [início dos anos 90]. E houve logo ali um entendimento que deu pistas para a vontade futura de fazermos qualquer coisa em conjunto. Essa vontade existiu sempre, mas o encontro foi sendo sucessivamente adiado... até que aconteceu», e acrescenta Filipa: «Voltámos a encontrar-nos para o álbum dele, "Aceno", em que canto dois temas... E no final do ano passado começámos a trabalhar neste álbum, "Estrela"».
Pergunto a Peixoto se existiu desde o início da composição destes temas a consciência de que estas seriam canções para uma voz e não instrumentais. Diz que sim: «Tenho logo a noção de quando uma peça é instrumental e quando não é. A própria estrutura melódica conduz-me à forma canção ou não». Já Filipa, diz ela, sentiu-se «muito confortável nestas canções. Aqui estou a cantar num registo mais grave, mais intimista, mas há muito tempo que queria experimentar este registo da minha voz». Pelo meio do processo surge também o poeta João Monge (autor de letras para os Trovante, Ala dos Namorados e Rio Grande), responsável pelos textos cantados em «Estrela» - Filipa conta, arrepiada com a coincidência, que só descobriu depois que vive na mesma casa em que Monge passou a sua infância e juventude.
Outros cúmplices activos no processo foram o produtor Mário Barreiros e os outros músicos participantes: Mário Delgado (guitarra, steel-guitar, sitar eléctrica...), Yuri Daniel (contrabaixo) e Quiné (percussões). Peixoto diz que «já tínhamos trabalhado com todos eles, mas nunca tínhamos estado todos juntos como estamos aqui. E já sabia que trabalhando com eles ia ter boas surpresas. São pessoas criativas, que acrescentaram coisas e optimizaram aquelas canções».
O álbum vive de universos sonoros bastante variados - da música tradicional ao psicadelismo, do jazz à pop, de ambientes de Norte de África ao Brasil... E não é nada fácil «encaixá-lo» em prateleiras ou géneros. José Peixoto diz que não se preocupa muito com isso, «mas é capaz de caber naquele grande saco, lato e abrangente, da world music. Se formos por exclusão de partes, isto não é jazz, não é música tradicional, não é música erudita...». Já Filipa diz, divertida, que chama a esta música «pop cota». E Peixoto acrescenta entre risos que o próximo disco dos dois será o «pós-cota». Outra promessa: as canções do álbum já foram «testadas» ao vivo em showcases nas FNACs e num festival em Castro Verde, mas haverá mais concertos assim que as agendas dos dois - ou dos cinco - o permitirem.
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