25 janeiro, 2007

Músicas Mestiças em Lisboa - Espelhos de Espelhos de Espelhos


A Lisboa - cidade que foi durante séculos capital de um império colonial em África e na América do Sul - chegam todos os dias muitas pessoas vindas de países que falam português. Um português híbrido, vivo, mestiço, em constante mutação. Falado por gente de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Brasil... E, entre eles, muitos músicos que, em Lisboa e com outros músicos, africanos, brasileiros e portugueses, misturam as músicas de raiz dos seus países com muitos e variados géneros: jazz, funk, soul, disco, electro, tecno, hip-hop, drum'n'bass, reggae, tudo junto num caldeirão em ebulição permanente de criatividade e liberdade. Num jogo de espelhos interminável. Aqui em baixo fala-se do magnífico documentário «Lusofonia, A (R)evolução», do novo álbum dos Cool Hipnoise (na foto) e da caixa «Angola».


O recente documentário «Lusofonia, A (R)evolução» - produzido pela Red Bull Music Academy, com guião de Artur Soares da Silva e João Xavier - é um espelho perfeito de uma nova realidade que está em construção em Lisboa: a criação de uma música híbrida, viva, mutante, que vive dos cruzamentos e da fusão de músicas africanas com música portuguesa (nomeadamente o fado) e com géneros anglo-saxónicos. Produto óbvio de 500 anos de convívio, miscigenação e trocas entre Portugal, África e Brasil, a nova música feita na capital portuguesa, uma cidade cada vez mais cosmopolita, está aberta a centenas de influências e incontáveis fusões possíveis. No documentário fala-se de «hip-hop em crioulo, música de dança com samples de kuduro, letras em português sobre estruturas contemporâneas» e de muitas outras misturas em desenvolvimento em Lisboa e nos seus arredores onde se concentram as comunidades africanas.

Bons exemplos disso são o DJ, produtor e compositor Sam The Kid, português branco de sotaque africano, que inclui na sua música samples de música brasileira e africana, do fadista Carlos do Carmo e de James Brown; Sara Tavares, portuguesa de origem cabo-verdiana que foi recentemente nomeada na categoria Revelação para os Prémios World Music da BBC; ou os excitantes e recentes Buraka Som Sistema, um colectivo multicultural que faz aquilo a que eles chamam kuduro progressivo (ver crítica ao EP «From Buraka To The World» mais em baixo, neste blog). Os Buraka Som Sistema - que integram três angolanos, um português e um português de origem indiana e moçambicana - pegam no kuduro angolano (uma música urbana devedora do tecno, do hip-hop, do baile funk brasileiro e de ritmos tradicionais angolanos), limam-lhe as arestas mais duras, produzem-no, retiram-lhe parte da carga interventiva das letras de origem e servem-no de uma forma nova e extremamente atraente para os ouvidos ocidentais. Deste grupo faz parte Kalaf, poeta e «diseur» angolano e uma das vozes mais activas no circuito musical lisboeta - para além do seu projecto a solo e dos BSS tem participações em discos dos Cool Hipnoise, Spaceboys, Bulllet, 1-Uik Project (agora One Week Project), dos ingleses Up, Bustle & Out e no disco de spoken-word «Secret Voice, No Time For Silence» (ao lado de Ursula Rucker). E é também esta característica - de muita gente a colaborar com muita gente de origens diversas - que faz a actual riqueza da música produzida em Lisboa. Uma cidade que tem como símbolo musical o fado, música que muito provavelmente tem uma origem africana antes de passar pelo Brasil (o lundum) e se transformar, no séc. XIX, no português fado. No documentário, Sara Tavares diz logo a abrir: «no estrangeiro há muita gente que não sabe que há portugueses pretos». Assim como, geralmente, se desconhece, citando João Gomes, teclista dos Cool Hipnoise, que «toda a gente em Portugal tem contacto com o merengue, a marrabenta e com ritmos cabo-verdianos (mornas, coladeiras, funanás...). Qualquer lisboeta ouviu música diferente de alguém de Milão ou de Paris ou de outra qualquer cidade europeia».

Cool Hipnoise que foram, em meados dos anos 90, protagonistas de uma música de fusão que ia ao hip-hop e à soul, à música africana e brasileira e que têm agora um novo álbum, «Cool Hipnoise» (Metrodiscos/Som Livre), em que a mestiçagem de vários géneros está ainda mais presente que no passado. Oiça-se «Caótica República», em que há ecos de Manu Chao ou Amparanoia; o reggae-electro de «Dois Dias»; o ragga-soul (a carburar em steel-drums) de «Kita Essa Dama»; o funk-afro-beat de «Katinga»; o «blaxploitation» solarengo de «Dias da Confusão»; o disco-sound divertidíssimo e lá pelo meio infectado por África de «Escanifobética»; o funk ácido de «Tudo a Nu»; a súmula perfeita disto tudo que é «Dá-me Dá»; ou o delírio hip-hop hiper-realista da faixa-bónus... Os Cool Hipnoise - agora um colectivo alargado formado por Francisco Rebelo, Tiago Santos, João Gomes, Marga Munguambe, Milton Gulli, Marcos Alves e Hugo Menezes - tiveram no álbum a colaboração de Virgul (Da Weasel), Luís Simões (Saturnia/Blasted Mechanism), Sam The Kid, Regula e de membros da Tora Tora Big Band, entre outros.

Os Cool Hipnoise - que no seu projecto paralelo Spaceboys se atiram a misturas de kuduro, electrónica, funk e jazz - surgiram paralelamente ao explodir definitivo do hip-hop em Lisboa e arredores, feito por brancos e negros, através de nomes como General D (que cruzou sabiamente a música africana com o rap nos dois álbuns que editou antes de se desligar das lides musicais), Da Weasel (actualmente um dos grupos de maior sucesso em Portugal) e os grupos presentes numa colectânea pioneira, «Rapública», que deu a conhecer Boss AC (outro campeão de vendas em Portugal), Zona Dread (de onde saiu D Mars), Family (de Melo D, primeiro vocalista dos Cool Hipnoise) e os fugazes Black Company. E à constatação de que o reggae poderia ser uma música de sucesso, através dos Kussondulola e da sua mistura de ritmos jamaicanos com sembas e merengues angolanos.

Mas a presença da música africana em Lisboa vem muito de trás. Nos anos 60, artistas africanos como o Duo Ouro Negro ou Eduardo Nascimento têm enorme sucesso em Portugal. Nos anos 70, o cantor angolano Bonga salta para a ribalta e uma dinâmica comunidade artística cabo-verdiana começa a formar-se em Lisboa, no bairro de S.Bento. Dela emergem ao longo dos anos 70 e 80 nomes como Dany Silva, Tito Paris, Celina Pereira, Bana ou Ana Firmino (mãe do rapper Boss AC). Já na música portuguesa, a influência de África é notória em cantores como José Afonso, Fausto, Sérgio Godinho, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho ou da cantora de jazz Maria João. E no caso de Sérgio Godinho e de Maria João, a sua mistura também atinge muitas vezes o Brasil, também porto estético preferencial de Eugénia Melo e Castro e, mais recentemente, de JP Simões. Mas já antes, esse contacto existia intimamente: «Barco Negro» (uma das canções mais famosas de Amália Rodrigues, a diva do fado, é uma canção brasileira de Caco Velho). E o caminho inverso também aconteceu, com poetas e cantores brasileiros - Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Fafá de Belém, Joanna, Ney Matogrosso... - a comporem ou a incluírem fados no seu reportório.

Paradoxalmente, muita da música africana criada e nascida em Lisboa e arredores passou para o «formato» disco em editoras cabo-verdianas ou francesas, só muito raramente em editoras portuguesas - durante muitos anos as editoras nacionais tiveram a ideia de que «a música africana não vende». Um panorama que recentemente teve o seu contraponto, tanto mais irónico quanto raro, na fabulosa caixa «Angola - As 100 Grandes Músicas dos Anos 60 e 70», em que estiveram envolvidas a Valentim de Carvalho (que forneceu as fitas originais das canções), a Difference Music (que editou) e a Som Livre (que distribui). Uma caixa onde se encontram cem preciosos temas de artistas angolanos perdidos algures nos armazéns da VC e agora, felizmente, resgatados para a luz do dia. Possivelmente, muitos deles provocarão um sorriso aberto motivado pela ingenuidade dos arranjos presentes mas muitos outros (e até aqueles) têm lá dentro os germes de muita da música actual - e não só em Angola. A caixa inclui um livro com uma breve História de Angola, das suas línguas, da sua música. Só falta informação mais específica (e algumas fotos) sobre os artistas presentes.

Nos últimos anos, a proliferação de projectos híbridos, mestiços, multiculturais em Lisboa levou a inúmeros e incrivelmente diversos novos projectos onde há lugar para o novo-fado de Mariza (portuguesa de origem moçambicana e a maior embaixadora do fado na actualidade); a música cabo-verdiana modernizada de Lura e Sara Tavares; o hip-hop interventivo de Chullage, Nigga Poison, SP & Wilson ou Conjunto Ngonguenha; o reggae afro-jamaicano dos Mercado Negro e de Prince Wadada; a música brasileira de Cyz e dos Couple Coffee (Brasil que também está bem representado em Lisboa por dois espantosos músicos de jazz: o baterista Alexandre Frazão e o saxofonista Alípio Carvalho Neto); para um baterista como N'dú (da banda de Tcheka e Sara Tavares), que funde funk e drum'n'bass com ritmos africanos; para projectos híbridos e em que se juntam portugueses, africanos e músicos de outras nacionalidades como o grupo de Lindú Mona, os Terrakota, os Tama Lá ou os Djumbai Jazz; para a música angolana mas cada vez mais universal de Waldemar Bastos; ou para o n'gumbé excitante do guineense Manecas Costa.

Um dos momentos mais marcantes de «Lusofonia, A (R)evolução» acontece quando surgem imagens intercaladas da revolução de 25 de Abril de 1974 e das actuais festas comemorativas dessa revolução: DJs como Nel'Assassin e outros cruzam beats de hip-hop com velhas canções de intervenção e samples de transmissões radiofónicas do dia 25 de Abril. Quase logo de seguida, Johnny (da Cooltrain Crew) diz: «Estamos a assistir ao nascimento de algo novo». Uma nova revolução que, idealmente, pode atingir 220 milhões de pessoas que falam português. De Portugal ao Brasil e aos países africanos de língua portuguesa, sim, mas também de outros lugares: Galiza, Macau, Timor-Leste, partes da Índia e todas a comunidades portuguesas e lusófonas espalhadas pelo mundo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá António,

Posso só fazer um acrsecento? A editora do José da Silva, a Lusáfrica, está em Paris porqe ele não encontrou ninguém em Lisboa que quisesse investir nela. Agora ele edita a Cesária Évora, a Mayra Andrade, a Lura, grupos africanos e cubanos. Estamos todos cegos ou quê?

Abraço

Carlos Ramos

António Pires disse...

Olá Carlos!

Se calhar não é uma questão de cegueira - ou também é - mas de investimento, visão de futuro e... gosto. Durante muitos anos, as editoras portuguesas - e estou a referir-me principalmente às multinacionais - tiveram medo de investir em música africana de expressão portuguesa ou crioula. Com algumas excepções: lembro-me que o Nuno Faria levou grupos africanos para a então Polygram e que a EMI (na altura, EMI-Valentim de Carvalho) apostou em nomes como o Waldemar Bastos, os Kussondulola e o infelizmento desaparecido destas lides General D. Nós estamos mesmo nas margens do negócio (eu disse negócio) da música, e cada vez mais... Não interessa: o que é importante mesmo é que a boa música apareça, vinda ela de onde for, editada ela onde seja...

Grande abraço

Anónimo disse...

Eu amo a música e a voz da Sara Tavares!!é uma música polvilhada co cores de africa que se pintam num sol luminoso!!!lindo...